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4 UMA IMERSÃO NA SALA DE AULA

4.1.8 O apoio da comunidade

Os educandos atendidos pela Escola Amarela se enquadram em situações de fragilidade econômica, pois muitos necessitam de programas sociais como o Bolsa Família para viver com um mínimo de dignidade. Vimos que a escola foi criada para atender as exigências do Governo Federal para obtenção dos programas sociais.

Intrinsecamente à fragilidade econômica, os moradores da região vivem em uma situação de extrema fragilidade social. O prolongado abandono da região pela prefeitura e pelo governo estadual nas últimas duas décadas criou um ambiente propício para o surgimento de um Estado paralelo comandado pela organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), responsável por organizar tanto o tráfico de drogas na Zona Norte quanto a vida dos moradores que vivem perto de suas bases. Os moradores relatam que o PCC melhorou a segurança da região, acabando com a criminalidade e com os latrocínios que assolavam a população, além de contribuir para o bom funcionamento das escolas e das unidades de Pronto Atendimento médico no entorno da favela.

Todos os que chegam para trabalhar na escola precisam ser apresentados ao traficante responsável pela segurança – cujo grupo é chamado de “Associação de Moradores”. Os educadores são muito bem tratados pelos traficantes, com uma gentileza igual à dispensada aos pastores evangélicos.

No segundo ano de minha pesquisa, um traficante que visitava a escola aceitou me conceder uma entrevista rápida para saber como ele enxergava a relação da escola com os seus negócios53. Transcrevo aqui nossa conversa, observando que ele se denomina parte da Associação de Moradores.

Pesquisador (P): Como você descreveria sua relação com esta escola? Associação de Moradores (AM): Gostamos do trabalho realizado nesta escola [Amarela], toda comunidade a respeita. É melhor que a escola vizinha, mais organizada. Ele é importante para os moradores.

P: Você está aqui desde a fundação dela?

AM: Não. Quando cheguei aqui há uns cinco anos ela já existia. P: Como você acha que ela funciona?

53 A entrevista com o traficante foi realizada no dia 2 de fevereiro de 2015. Não tomei notas no momento da entrevista para não criar um clima desfavorável. O que se segue são as anotações de memória que fiz no mesmo dia, em casa.

96 AM: O ensino é puxado, dificilmente são dispensados mais cedo. A Associação de Moradores protege este local, os alunos. Quando a gente vê um menor de camiseta amarela54 andando na rua nós damos uma bronca e o conduzimos novamente à escola. Quem não quer estudar procura a outra escola [vizinha].

P: Estes alunos se envolvem com drogas fora daqui? AM: Não. Traficante não vende droga em escola pública. P: Por quê?

AM: Primeiro porque eles não têm dinheiro, segundo porque dá B.O. Quando o aluno está drogado e faz bobagem envolve muita gente. Polícia Militar, Civil, Conselho Tutelar, até mídia. Vendedor que se mete com escola pública é punido.

A entrevista com o traficante revela algumas percepções importantes que a comunidade tem sobre a Escola Amarela. Ele a compara com a escola vizinha, que, segundo seu ponto de vista, não é séria e nem organizada. Ele utiliza o termo “puxado” para se referir à qualidade da escola, mas não fica claro se faz referência ao conteúdo ministrado pelos educadores ou à pouca ocorrência de aulas vagas.

A escola sofre com falta de docentes e com aulas vagas, porém, todo corpo de educadores decidiu não deixar os estudantes irem embora mais cedo. Na escola há uma vice-diretora, Laura, e uma coordenadora pedagógica, Solange, que, junto com a diretora Letícia, assumem as aulas vagas. Em disciplinas nas quais não há docentes (química, inglês e biologia), Solange desenvolve atividades na biblioteca/laboratório de informática e na quadra de esportes. Quando os educadores regulares faltam, Laura e Letícia pegam os diários de classe, identificam o último conteúdo ministrado, pegam a apostila ou o livro didático e passam exercícios para os educandos fazerem em classe e entregar. Como a maioria dos educadores mora perto da favela, há pouca incidência de falta. Por causa da localização, dificilmente aparecem estagiários para ajudá-los.

O traficante afirma que eles protegem a escola, fato que constatei inúmeras vezes. Isso não se restringe somente ao tráfico, mas a toda comunidade de pais, que se empenha em vigiar a escola e garantir o bem-estar dos alunos. Um exemplo do engajamento comunitário é um acordo feito entre os pais e a diretora da escola sobre o uso obrigatório

54 Os estudantes da escola têm como uniforme obrigatório camisetas e agasalhos amarelos, uma estratégia da diretora para que eles sejam identificados pela comunidade.

97 do uniforme (camisa ou agasalho amarelo, de qualquer marca). A diretora escolheu o amarelo por dois motivos simples: a cor é facilmente percebida na multidão e é associada à escola. Legalmente não se pode obrigar um estudante a utilizar o uniforme para frequentar as aulas nas escolas estaduais de São Paulo, porém todas as partes envolvidas apoiam este procedimento. Quando a família demonstra não ter recursos, a Associação de Pais e Mestres doa três camisas amarelas para o estudante utilizar. Quando um educando vai para a escola sem a camiseta, a direção pede para ele vestir uma camisa amarela XGG para tornar a experiência desconfortável e, assim, pressioná-lo a trazer sua camisa.

Durante minha pesquisa de campo, eu constatei inúmeras ocorrências nas quais os moradores da comunidade ou os traficantes conseguiram ajudar a escola por causa do uniforme. A primeira vez foi logo no início das aulas em 2014, quando uma estudante tinha sido atropelada a duas quadras da instituição. Por causa da camisa amarela, os traficantes levaram a menina para o Pronto Atendimento e os moradores foram avisar a secretaria da escola. Algumas semanas depois, um grupo de mães que estava colocando roupas no varal notou que três jovens de camisa amarela estavam jogando bola na escola vizinha e ligaram para a direção – eram estudantes matando aula. Um dos casos mais marcantes aconteceu em maio de 2015, quando os traficantes notaram que quatro jovens de camiseta branca entraram na escola no intervalo. Eles rapidamente os enquadraram e constataram que estavam portando facas – queriam se vingar de um jovem da Escola Amarela, mas não consegui saber o motivo e nem o que fizeram com os jovens.

Apesar de muitos pais trabalharem, eles comparecem às 6h30 para falar com a coordenação antes de irem para o trabalho. Pedem informações sobre as notas do filho, levam atestados médicos, documentos dos programas sociais e conversam com os educadores sobre eventuais problemas de comportamento.

Nas entrevistas, os pais relataram um grande contentamento com a escola; muitos deles até participaram das manifestações pela construção da unidade. Entrevistei uma mãe que tem dois filhos no ensino médio e ela explicou os critérios utilizados para colocar um filho na Escola Amarela e o outro na Escola Vizinha: idade e empenho nos estudos – o mais novo tinha 14 anos, precisava de um cuidado maior e nunca repetiu, por isso estudava na Amarela; o outro filho tinha 19 anos e era repetente, estudava na Vizinha por esta ser mais fácil e menos exigente.

É digna de nota uma recorrente manifestação discursiva dos pais sobre uma escola onde alguns gostariam de matricular os seus filhos: a “escola da 72 DP”. No momento

98 das entrevistas, não fazia sentido a combinação de números e letras, mas, quando perguntei para as secretárias da Escola Amarela, elas disseram que esses pais estavam se referindo a um colégio estadual que dá fundos para uma Delegacia da Polícia Civil, longe dali. Em minhas pesquisas, constatei que aquela escola não tinha um desempenho muito melhor no Enem, mas o fato de ter uma delegacia de polícia ao lado povoava o imaginário daqueles pais, que acreditavam em uma boa educação fiscalizada pela polícia.

No universo discursivo de pais e educandos, podemos constatar que a boa educação está relacionada com valores como “ordem”, “autoritarismo” e “punição”. Veremos nos próximos tópicos deste capítulo que os educadores mais admirados e respeitados são aqueles que se utilizam desses três importantes valores em suas práticas docentes – mesmo não gostando de exercer esse papel. Uma outra interpretação possível é considerar esse discurso como uma manifestação inconsciente de desconforto por morar em uma região comandada pelo crime organizado; um desejo latente de serem reconhecidos pelo Estado.