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3.1 Um olhar ao saber: considerações iniciais

3.1.1 Aprendendo observar outros caminhos para reencontrar a sensibilidade

Para se querer pensar no ensinar e aprender a ser e fazer Enfermagem, é necessário mergulhar-se no passado por um motivo bem simples: a sensibilidade tem raiz milenar. É preciso despertá-la, porque a reflexão autoriza acreditar novamente no conviver e no diálogo no mundo. A atitude reflexiva da volta ao passado abre uma esperança de reaver todo um tempo que ficou atrás e nos faz crer na possibilidade de reencontrarmos a sensibilidade para construir outros caminhos para a Enfermagem.

Pensando assim, posso afirmar que foi um desafio percorrer as leituras da Filosofia, tendo em vista não ter uma formação específica nessa área. Esse desafio exigiu de mim, além do compromisso com ensinar e aprender a ser e fazer Enfermagem, também a minha criatividade para encontrar alternativas possíveis com base em outras compreensões para auxiliar na sustentação deste estudo. Em geral, tenho observado os referenciais que estão sendo utilizados nas pesquisas e constato que ainda são centrados em enfoques racionais e científicos específicos da área em

detrimento de uma visão crítica e mais ampla da realidade. Comecei a questionar esses referenciais para tentar entender os motivos que levaram a ciência a excluir a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura do mundo, da vida e do ensino. Por isso, considerei fundamental dialogar com vários estudiosos da Filosofia, como Lorenz (1986), Santin (1993), Schiller (1995), Merleau-Ponty (1999), Aranha e Martins (2003), Andery (2004), Buzzi (2004), Chauí (1999, 2004, 2005), Cotrim (2006), Aranha (2006), de modo que suas idéias contribuíssem na fundamentação da minha proposta. Ao interagir com os textos desses autores, observei que a sensibilidade tomou diferentes conotações no decorrer da história desde os gregos até a contemporaneidade.

Em virtude disso, busco em Aranha (2006) subsídios para compreender os fatos como aconteceram desde a Grécia, onde ocorreram grandes transformações nas relações tanto sociais como políticas. Observo a passagem do mundo mítico para a reflexão mais racionalizada; o nascimento das cidades-estados (polis) e o aparecimento dos primeiros filósofos, os quais foram os responsáveis por trazer outra visão do mundo e do ser humano. Com as polis, modificam-se a vida social e as relações humanas. Em virtude disso, é inaugurada a lei escrita, a qual deixa de ser a vontade imutável dos deuses ou da arbitrariedade dos governantes, para ser uma criação humana, sujeita à modificação e à discussão. Quando ainda não havia a escrita, a educação era ministrada pela própria família, conforme a tradição religiosa recebida dos seus ancestrais.

Na medida em que se organizava a política das polis, também estava se formando um grupo intelectual que iria dirigir a vida da sociedade grega. Então, as polis abrem espaço para a palavra humana da individualidade, da argumentação e do conflito, mas esquecem a palavra mítica. Com isso, o indivíduo, longe dos desígnios divinos, vai à busca do debate político e começa a delinear seu próprio futuro.

Diante desse berço histórico, a filosofia nasce ligada às polis, à lei, à escrita, às instituições políticas e ao cidadão. Decorre daí a passagem do pensamento mítico para o racional e filosófico. Pode-se dizer que a filosofia surge porque inicia a discussão de uma realidade que antes não era questionada pelo mito.

um grupo de jovens da sociedade grega. Mas, de acordo com a polis, a educação enfatizava o conformismo, o militar ou a concepção humana livre nutrida por diferentes experiências acompanhadas pela orientação moral e estética, inclusive culturais e antropológicas. Com o tempo, a educação foi se aproximando cada vez mais de uma formação intelectual, porque os jovens gregos precisavam, na política, convencer pela palavra. Por isso, começaram a ter uma formação que exigia métodos de repetição e memorização. No entanto, na medida em que se desenvolviam os estudos teóricos, esses jovens foram sendo afastados do seu cotidiano, no qual eram contempladas outras experiências, tais como a pintura, música, poesia, dança e declamação. Com isso, outros temas foram inseridos na sua educação, como, por exemplo, a ética, que foi aos poucos substituindo as questões metafísicas e políticas.

Na metafísica, desenvolveram-se os instrumentos da lógica, ou seja, a distinção sujeito e objeto, bem como as relações entre eles. Desse modo, a razão vai se tornar o projeto da filosofia, pois é preciso aperfeiçoar a capacidade de conhecer, isto é, o conhecimento. Com o passar dos tempos, o uso da razão foi adquirindo primazia no controle dos sentidos, e a metafísica torna-se sempre mais lógica, isto é, ciências matemáticas. A lógica que iniciou na filosofia da Grécia Antiga foi largamente usada e ensinada pelos medievais, inclusive para provar a existência de Deus. Ela se desdobra como possibilidade da razão. Essa é a grande obra da Modernidade de ciência e, por esse motivo, a metafísica (ciência do ser) cedeu lugar (ciência da razão). Então, a ciência passa a dedicar-se à racionalidade, alicerçando-se a ela a técnica, a fim de encontrar o instrumental necessário para fornecer respostas (BUZZI, 2004).

Nesse caso, o conhecimento apresentado na Modernidade é regido pela inteligência, fundamentado na ordem, medida, certeza, precisão e realidade. Mas o corpo também não passa despercebido pela ciência. Ele começa a ser considerado objeto de estudo da ciência; ao passo que a mente era objeto somente da filosofia. Dessa forma, a razão tem o domínio absoluto, apresentando o conhecimento mediato, demonstrativo e a essência das coisas, no qual o sujeito pensante passa a ser “o princípio de todas as evidências” (ARANHA; MARTINS, 2003, p.132). Assim, o mundo passa a conhecer o modelo mecanicista que serviu para explicar o funcionamento do corpo humano (SANTIN, 1993; ANDERY, 2004).

A razão começa a descobrir as relações entre os fenômenos e, com isso, inicia- se o reinado das ciências. Ao herdarmos essa visão de mundo, o ser humano passa a ser compartimentalizado: a subjetividade e a objetividade, o entendimento e a sensibilidade, o pensamento e a existência (ANDERY, 2004). Aos poucos, a ciência começa a excluir a ética, a estética, a sensibilidade, os valores, a consciência, a intuição, a criatividade por terem sido considerados insuficientes à compreensão dos fenômenos físicos.

A ciência trouxe com ela as ciências ditas da saúde. Começa o desenvolvimento de diversos artifícios para conseguir melhorar ou substituir partes do corpo. Essa concepção trouxe repercussões profundas que até hoje estamos sentindo, pois ignora o contexto da realidade no qual estamos inseridos, afasta o ser humano das suas relações e interações com o outro e com o meio ambiente. Foi com esse olhar que a Enfermagem desenhou seu futuro, ou seja, um ensino e uma assistência baseada numa visão reducionista. Então, o ensino, para dar conta dessa visão, busca referenciais fundamentados na doença, que é considerada um dano mecânico e precisa ser reparada. Junto a isso aprendemos os procedimentos técnicos com a finalidade de prestar assistência ao ser humano. Essa visão reducionista passou a ser o foco de todo aprendizado ao longo desses anos, em que os docentes foram adotando a maneira como foram ensinados, e os discentes foram considerados incapazes de pensar, sentir e criar.

Essas idéias tiveram grandes repercussões durante o século XX. Entretanto, começaram a ser consideradas insuficientes as posições unilaterais do sujeito e do objeto. Para superá-las, será preciso outra concepção mais dinâmica, ou seja, uma relação mais intrínseca entre sujeito e objeto.

Essa concepção começa a ser observada a partir da noção de intencionalidade, pois se passa a compreender que não há consciência separada do mundo. Toda consciência é consciência de alguma coisa. Isso acontece porque a reflexão é própria do ser humano. Sendo assim, é sempre um sujeito que dá um significado ao objeto. Dessa maneira, inicia-se uma nova discussão fundada na compreensão da existência humana, na qual a sensibilidade é observada a partir da experiência concreta da realidade em que o ser humano tem a possibilidade de reconhecer-se e expressar-se no

mundo. Assim, o corpo passa a ser compreendido como algo sensível, que exerce uma comunicação vital com o mundo e se torna presente em nossa vida (MERLEAU- PONTY, 1999).

Com essa noção, o mundo passa a ter outros sentidos que não aqueles atribuídos pelas dimensões científicas, pois é preciso sentir a necessidade de recuperar-se um ser humano sensível (LORENZ, 1986), no qual a sensibilidade representa a volta do sujeito e da subjetividade na produção do conhecimento humano. Mas é necessário que isso aconteça em duas dimensões: “enquanto conhecimento válido e enquanto vida afetiva”, porque “trata-se de conciliar razão e sensibilidade, subjetividade e objetividade” (SANTIN, 1998, p.23).

Essas concepções nos mostram que a compreensão da sensibilidade passa por diferentes épocas. A sensibilidade, com os gregos, está ligada às questões estéticas, aistheisis (em grego). Ela relaciona a capacidade de contemplar e criar a beleza e a harmonia através das artes. Na Modernidade, ela está vinculada à epistemologia; relaciona-se à possibilidade de, por meio dos sentidos, terem-se sensações sensíveis diante da realidade. Esses dados sensíveis seriam a base sobre a qual se constroem os conhecimentos inteligíveis ou as idéias enquanto representações mentais da realidade sensível. Na contemporaneidade, a sensibilidade é uma maneira de conhecer, ela é compreendida como uma forma de saber. Fora das epistemologias racionalistas, nós temos a intuição, o conhecimento sensível. Na atualidade, a sensibilidade aproxima-se do valor humano, ou atitude humana. Ela é tomada, principalmente, como uma qualidade especificamente humana, caracterizada pelas atitudes de compreensão, de solidariedade e de afetividade. Então, a sensibilidade torna-se uma expressão profunda da existência humana. Por isso, diz-se que é sensível quem se comove com os sentimentos de outras pessoas (ABBAGNANO, 2003), porque tem a “faculdade de experimentar sentimentos de humanidade, ternura, simpatia, compaixão” (FERREIRA 1986, p.1570).

Diante desse contexto, observo que a Filosofia foi se estabelecendo como uma filosofia reflexiva, do sujeito que procura por ele mesmo conhecer-se. No entanto, a ciência fundou-se excluindo o sujeito do objeto do conhecimento, ou seja, “é hábil para aprender todos os objetos a ela externos, não dispõe de nenhum para se conhecer

e se pensar”. Dessa maneira, tudo que se refere aos problemas do sujeito não tem relação com o conhecimento científico, pois, ao se extrair a objetividade dos dados e dos fenômenos, torna-se um conhecimento que reflete a realidade. Em decorrência dessa situação, acontece uma separação decisiva entre a filosofia reflexiva, ou seja, a oportunidade de o sujeito pensar e refletir, e a objetividade científica. Com isso, o “conhecimento científico está sem consciência reflexiva e também subjetiva” (MORIN, 2003, p.20).

Por isso, estamos sentindo a necessidade de revisar a maneira de ensinar e aprender a fazer Enfermagem e também de recuperar um ser humano sensível, porque a melhor escola para “se aprender que o mundo tem sentido é o trato imediato com a própria natureza, a convivência com ela” (LORENZ, 1986, p.189). Essa convivência será capaz de aproximar o discente do processo de construção do seu próprio conhecimento, em que possa pensar, sentir, criar, construir e reconstruir seu caminho, assim como está descrito na párabola que nos fala do rio. O rio traz a possibilidade de aprender a observar, porque ele escolhe seu próprio caminho pelo prazer da beleza da natureza. Ainda, desperta o nosso olhar para os vales, as montanhas e cultiva o amor pelos seres vivos. Para agirmos como os rios, precisamos, como docentes, resgatar o ser humano indissociável do seu contexto e do mundo em que vive, mas reconhecendo outros valores fundados no diálogo consigo, com o outro, com a natureza, buscando outros ambientes de ensinar e aprender centrados na pessoa dos discentes, para que sejam capazes de encontrar um equilíbrio entre a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica, a racionalidade moral-prática da ética e do direito e a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura.