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Encerrada a coleta de dados e a transcrição das entrevistas, chega o momento de analisar os dados e destacar as evidências mais relevantes para o estudo. Tendo em vista que o Método Clínico propicia justamente descobrir o que não está evidente no que os sujeitos fazem ou dizem (DELVAL, 2002), a análise dos dados coletados, por sua vez, não poderia ser um momento fácil. Foi necessário olhar criticamente para os dados e verificar caminhos possíveis antes de tomar

decisões quanto aos rumos da análise. Nesse momento, revisitou-se as proposições e os objetivos da pesquisa para delimitar o olhar sobre os dados e evitar o desvio do foco da investigação, uma vez que são numerosos e interessantes. Desse exercício, elaborou-se duas categorias de análise que serão apresentadas na sequência.

4.4.1 Relação com as regras

Em seus estudos sobre a moral Piaget (1994) verificou que a prática antecede a consciência da regra e que a forma como a criança opera com elas pode ser reencontrada em outras fases da vida. Portanto, entende-se que esse estudo auxilia na compreensão de como o adolescente se relaciona com as normas de trânsito.

No estágio prático da regra, foram identificadas nas crianças condutas motoras; egocêntricas, decorrentes da coação externa e de cooperação; que correspondem, respectivamente, às regras motoras; ao respeito unilateral e ao respeito mútuo. Cumprir a regra, no estágio prático, é um dever para com a autoridade, em geral, pais e professores, porém, a criança pode transgredi-la em função de seu estado egocêntrico. No estágio da consciência da regra, conforme a cooperação sucede a coação, o sujeito dissocia seu pensamento do dever de obedecer e passa a internalizar as regras, diferenciando o que lhe foi imposto do que é ideal seguir e passa a obedece-las por livre vontade e até mesmo, questioná- las quanto a serem boas ou não. Assim, o respeito unilateral dá lugar ao respeito mútuo e o comportamento heterônomo, ao autônomo. (PIAGET, 1994).

Quanto à noção de justiça, com o avanço da idade, o sujeito tende a distinguir o que é justo do que é imposto autoritariamente. Enquanto há moral da heteronomia a noção de justiça é retributiva, ou seja, é justo aquele que obedece a regra imposta pelo meio, sem questioná-la e deve ser punido quem não a observa. As sanções mais justas, nesta etapa, são as expiatórias por seu potencial de reparar o prejuízo causado e impedir a reincidência. Já, na moral da autonomia, a noção de justiça é distributiva e tende à solidariedade e à reciprocidade. As sanções mais justas são as que levam em consideração às intenções e as medidas destinam-se a ruptura do elo social e a fazer o culpado compreender as consequências de seus atos. São as sanções por reciprocidade. É possível encontrar, também, nos sujeitos de qualquer idade, características da noção de justiça imanente, ligada ao realismo moral, na

qual se acredita que um acontecimento ruim pode ter relação com uma falta cometida, como uma sanção divina. (PIAGET, 1994).

Com base nesses conceitos piagetianos, procura-se verificar como os adolescentes operam com as normas de trânsito e se as consideram importantes. Acredita-se que é possível compreender tal relação investigando quais normas de trânsito os jovens conhecem, quais estão mais presentes em seu cotidiano, como construíram suas noções sobre essas normas, se há equívocos nessa construção que possam comprometer sua segurança e dos demais partícipes do trânsito e que tipo de respeito, unilateral ou mútuo, está presente em seus argumentos. Dessa forma, é possível verificar em qual noção de justiça os jovens apoiam seus argumentos.

4.4.2 Descentração e noção de justiça

Entende-se, com base na teoria piagetiana, que a forma como as pessoas interagem no trânsito está diretamente relacionada ao seu desenvolvimento moral. E, para que sejam justas, depende-se, necessariamente, de estarem pautadas em respeito mútuo. Como o desenvolvimento moral ocorre em um processo longo no sentido da autonomia, as relações podem variar entre justas e injustas conforme o nível de descentração dos partícipes. Entende-se que o jovem, como parte do trânsito, quanto mais assume tarefas e responsabilidades que demandam deslocamentos, mais interage nesse contexto, seja qual for o papel o desempenhado enquanto partícipe. Acredita-se que sua participação no trânsito tende a ser mais ou menos consciente da importância de respeitar o outro a medida que consegue se descentrar e avaliar as demandas circunstanciais.

Na adolescência, segundo Piaget (2014), torna-se possível uma série de transformações cognitivo-afetivas que podem auxiliar o jovem a constituir-se como ser social e desenvolver-se no sentido de uma consciência moral autônoma. Para o teórico, inicialmente manifesta-se o desenvolvimento do pensamento formal que aos poucos possibilita ao jovem raciocinar não mais sobre o real, mas sobre hipóteses. Esse avanço é fundamental para que o jovem consiga descentrar-se e passe a considerar outros pontos de vista além do próprio. Portanto, acredita-se que os participantes desta pesquisa tenham condições de raciocinar sobre as hipóteses levantadas acerca do tema.

Nessa perspectiva, esta categoria terá como foco verificar como os participantes coordenam diferentes pontos de vista frente a situações criadas com base em realidades de trânsito e como compreendem as relações interpessoais envolvidas enquanto justas ou injustas. Analisar-se-á a questão a partir do interesse e da vontade que orientam as escolhas, da capacidade de descentração e dos sentimentos e valores presentes nos argumentos dos adolescentes.

Segundo Piaget (2014) o interesse desencadeia a ação do sujeito, assim, toda conduta tem um fator quantitativo de interesse que determina a força energética que faz o sujeito agir para conquistar um determinado fim e tem um aspecto qualitativo que é o valor que o sujeito atribui ao que é de seu interesse. A força energética, ou a vontade, faz com que o sujeito se descentre modificando a tendência mais forte, aquela que tem relação com o contexto atual na qual pode prevalecer uma satisfação pessoal, tornando-a mais fraca em relação a tendência moral, na qual prevalece o princípio do bem-estar coletivo.

Para desenvolver a noção sobre o que é justo ou injusto no trânsito, entende- se que é necessário colocar-se tanto do ponto de vista de quem pratica a ação, quanto de quem sofre com a conduta do outro e avaliar segundo as intenções. A descentração torna possível essa coordenação de pontos de vista uma vez que, segundo Piaget (2014, p. 247), possibilita ao sujeito “superar um campo limitado no qual uma tendência é forte” e “recolocar o problema em um campo de comparação mais amplo em que se lance mão de valores permanentes nos quais se acredita”. Assim, busca-se verificar se o adolescente coordena diferentes perspectivas ao refletir sobre as situações propostas e como opera a partir delas.

Com base na teoria estudada, acredita-se que os jovens menos descentrados tenderão a analisar as situações a partir do próprio ponto de vista sem considerar os demais e os mais descentrados terão maiores condições de coordenar outros pontos de vista além do próprio. Como não se tem informações sobre seu nível de desenvolvimento cognitivo e moral, espera-se encontrar diferentes níveis de descentração nos argumentos, inclusive em um mesmo participante, uma vez que para Piaget (1930/1998) pode-se encontrar nos indivíduos, indícios das duas morais. Feitas essas considerações, passa-se à análise propriamente dita.

5 ANÁLISE DE DADOS

A análise dos dados teve início juntamente com as transcrições, pela pesquisadora, de cada uma das entrevistas. Segundo Delval (2002), a análise dos dados inicia-se durante a coleta, buscando-se verificar as recorrências e singularidades apresentadas. Das manipulações dos dados e diferentes tentativas em organizá-los e agrupá-los por relevância diante do objetivo da pesquisa que é “investigar o juízo de adolescentes sobre justiça nas relações interpessoais no trânsito e como as compreendem enquanto justas ou injustas nesse contexto”, surgiram tabelas e descrições. Esse exercício prévio auxiliou a pensar uma lógica de apresentação dos dados que, juntamente com a revisão das proposições teóricas e dos objetivos da pesquisa, deram origem a duas categorias de análise apresentadas na metodologia e desenvolvidas nas próximas seções.

Para auxiliar nesta análise, retomam-se os objetivos específicos da pesquisa, quais sejam, verificar a partir do relato dos jovens: a) se conhecem normas de trânsito e qual seu interesse sobre o assunto; b) como coordenam pontos de vista e como compreendem o que é justo ou injusto no trânsito; c) quais sentimentos e valores compõem seus argumentos quanto às relações interpessoais no trânsito e quais são favoráveis à cooperação para um trânsito mais justo para todos; d) Que fatores podem contribuir para sua vulnerabilidade no trânsito.

Definidas as categorias, Relação com as regras e Descentração e justiça, apresentadas na metodologia de pesquisa, as entrevistas foram revisitadas para o levantamento e seleção de extratos a serem utilizados no decorrer da análise. Procurou-se diferenciar e selecionar os argumentos conforme o nível de descentração das respostas.

Ao iniciarem-se os primeiros levantamentos sobre as entrevistas, ficou evidente uma diferenciação de contexto envolvendo a participação dos adolescentes no trânsito. Identificaram-se dois grupos, sendo um deles formado por jovens que pouco circulam fora do bairro onde moram e onde se localiza a escola e o outro composto por jovens que circulam, não só em seus bairros de residência, mas também, em bairros mais distantes e região central da capital.

A partir disso, a questão que suscita é: há diferenciação de noção de justiça no contexto das relações interpessoais no trânsito entre o grupo de jovens que circula mais, em função de suas atividades extraescolares e o que circula menos? É

possível antecipar com base na manipulação inicial dos dados que os argumentos de nível mais descentrado, com mais elementos contextuais e exemplos espontâneos, encontram-se em um dos jovens do grupo que circula mais e o argumentos de nível menos descentrado, em um jovem do grupo que circula menos. Outras constatações serão verificadas ao longo das análises.