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Apresentação da hipótese; sonhos e desafios adaptativos; realismo onírico e eficácia cognitiva; criação de memórias

II – Simulação onírica, sociabilidade, linguagem e comunicação

2.1. Apresentação da hipótese; sonhos e desafios adaptativos; realismo onírico e eficácia cognitiva; criação de memórias

e insights

Percepções de ameaças válidas no ambiente ancestral [no qual evoluiu a espécie

humana] ativaram integralmente o sistema de simulação de perigo, e um sistema

de simulação de perigo ativo levou ao maior sucesso reprodutivo.32 (VALLI e REVONSUO, 2009, pág. 33)

Mesmo sem pretensão comprobatória de identificação de vínculos causais, esta pesquisa tem como objetivo apontar nexos plausíveis e passíveis de investigação empírica, entre os sonhos e a comunicação social.

Estou ciente de que essa intenção pode soar como um contrassenso. Sem entrar no universo do pensamento místico ou exotérico, sem adotar concepções de fenômeno comunicativo que se afastam das delimitações do campo de estudos da Comunicação Social – como a “comunicação” que poderia ocorrer entre instâncias psíquicas de um mesmo indivíduo – ou apelar, por exemplo, para a mera presença de lembranças oníricas como assunto de conversas ou tema de relatos, como seria possível associar um fenômeno que só ocorre na mente adormecida dos indivíduos a ações externalizadas em vigília?

Descartando os expedientes acima, e à luz das evidências e teorias expostas no capítulo I e de formulações que serão abordadas ao longo deste capítulo, sustentarei a razoabilidade e a existência de possibilidades investigativas e teóricas promissoras desta minha hipótese central:

Os sonhos são simulações que reforçam e aperfeiçoam aptidões valiosas para o

32

Valid threat cues in the ancestral environment fully activated the threat simulation system, and an active threat simulation mechanism led to enhanced reproductive success.

enfrentamento de desafios adaptativos característicos do contexto evolutivo da espécie. Desenvolvem nossas habilidades sociais e suscitam ações comunicativas.

Iniciarei a construção dessa sustentação, neste subcapítulo, com uma síntese de formulações e evidências presentes em trabalhos de Antti Revonsuo, Sidarta Ribeiro e Robert Stickgold, apresentadas na última parte do capítulo I. Mostrarei que, em conjunto, as pesquisas desses autores e de seus colaboradores embasam uma concepção do sonho como simulação propiciadora de aprendizado e treinamento capaz de ajudar o sonhador a enfrentar diversos tipos de desafios adaptativos. Em seguida apresentarei evidências de que, assim como aptidões associadas ao enredo predador/presa, a noções de espacialidade e a respostas motoras, os processos adaptativos no contexto evolutivo da espécie humana demandaram aprendizados relativos aos “jogos da sociabilidade”, associados a enredos e situações também muito frequentes nos sonhos.

Nos subcapítulos seguintes, mostrarei como certas características dos sonhos complexos típicos da REM permitem vincular seu estudo a linhagens das ciências da cognição e da linguagem que descrevem o desenvolvimento da linguagem verbal e de aptidões ligadas à comunicação social como processo evolutivo gradual determinado por mecanismos de seleção natural, e identificam relações intrínsecas fundamentais entre habilidades linguísticas e experiências sensório-motoras. Mostrarei como esses nexos, por sua vez, permitem novas frentes e caminhos de diálogo entre os estudos dos sonhos e a psicologia profunda, sobretudo em sua vertente psicanalítica. Apresentarei, por fim, novas formulações do campo de estudos da Comunicação que oferecem fundamentos teóricos para uma abordagem do sonho como instância integrante de processos comunicativos.

Antes dar início às etapas descritas acima, esclareço que, a partir deste ponto, trabalharei preferencialmente com uma definição mais específica de sonho.

No capítulo I, adotei uma definição ampla de sonho, adequada às questões abordadas e ao nível de generalização então pretendido, contemplando todas as produções e experiências mentais vividas durante as diversas fases do sono. Agora, como preferem ou sugerem vários autores já mencionados (FANAGAN, 1995; HOBSON, 2002; LINDEN, 2007), passarei a tratar especialmente dos sonhos que se enquadram numa categoria de fenômenos mais complexos, que incluem o desencadeamento de enredos, a presença de cenários, situações e personagens, típicos

do sono REM.

***

Os resultados dos experimentos realizados por Sidarta Ribeiro e colaboradores expostos no subcapítulo 1.5 permitem ampliar o escopo de aptidões passíveis de reforço e aperfeiçoamento durante o sono e os sonhos em relação ao proposto por Revonsuo em sua Teoria da Simulação de Perigo. É certo que, como propõe Revonsuo, tanto os ratos que aprendem dormindo a lógica das sucessivas mudanças de localização da comida quanto os jogadores de Doom deparam com tipos de desafios similares aos encontrados ao longo da história evolutiva de suas espécies, e tanto as situações simuladas quanto as habilidades treinadas durante o sono – e especialmente durante os sonhos, como podemos afirmar, com mais segurança, no caso dos humanos – vinculam-se a espacialidade e motricidade. Mas nem os ratos nem as pessoas que assumem o papel de caçador no videogame deparam com situações ameaçadoras que requerem respostas do tipo “fugir ou lutar” conforme descrito por Revonsuo:

O sistema de produção de sonhos é altamente sensível a situações críticas para a sobrevivência física e para o sucesso futuro do indivíduo: ataques violentos, ser perseguido por estranhos ou animais, encontrar invasores em seu território, perder valiosos recursos materiais, ser rejeitado socialmente, deparar-se com forças naturais indomadas ou animais perigosos, envolver-se em acidentes ou infortúnios. Esses conteúdos oníricos envolvem, do ponto de vista biológico, percepção de ameaça, evitação de perigo, comportamentos de defesa diante de predadores, e estratégias de enfrentamento de ameaças.33 (REVONSUO, 2000, pág. 889)

Ainda que situações de ameaça sejam especialmente propícias para estimular ou “disparar” a função adaptativa dos sonhos, pesquisadores como Ribeiro e Stickgold vêm apresentando evidências de funções cognitivas do processo onírico que não se limitam ao aprendizado de reações ao perigo. Entre os tipos de desafios que podem ser enfrentados de forma mais eficaz depois de uma noite de sono e sonhos parecem estar

33 The dream-production system is highly sensitive to situations critical for the physical survival and

future success of the individual: violent attacks, being chased by strangers or animals, finding intruders in one’s private territory, losing valuable material resources, being socially rejected, encountering untamed natural forces or dangerous animals, being involved in accidents, and misfortunes. Such dream contents involve, from a biological point of view, threat perception, threat avoidance, antipredatory behavior, and coping strategies against threats.

alguns relacionados a atividades que raramente integram os enredos oníricos (DOMHOFF, 1999; HARTMANN, 2000), como o problema de cálculo apresentado aos voluntários do experimento descrito no subcapítulo 1.2 (WAGNER, GAIS, HAIDER, VERLEGER e BORN, 2004). Fenômeno que pode estar relacionado à forma muitas vezes fragmentada, indireta, implícita ou metafórica com que se apresentam nos sonhos elementos associados a atividades que tendemos a desempenhar melhor quando sonhamos com elas, mesmo que dessa maneira aparentemente vaga ou imprecisa, como indicam os resultados recém-publicados sobre o experimento com o labirinto virtual realizado pela equipe de Stickgold e expostos no subcapítulo 1.3 (WAMSLEY et al, 2010).

O fato de, como atesta Hartmann, raramente sonharmos que estamos escrevendo, digitando, lendo ou calculando, por exemplo, não significa que nossas capacidades de cálculo, de memorização, análise e produção de textos não possam ser reforçadas e aprimoradas com auxílio das simulações oníricas, nas quais conteúdos emocionais, visuais ou simbólicos associados a essas atividades podem ter presença muito mais frequente do que as atividades literalmente reproduzidas.

Daí se conclui que o realismo das simulações da mente adormecida, tão frisado por Revonsuo com referência às situações ancestrais de ameaça e resposta corporais, nem sempre se mostra um requisito indispensável à eficácia do “treinamento onírico”.

À luz das teorias que frisam a importância da intensidade emocional (sobretudo quando de teor negativo) para a consolidação de memórias e eficácia de processos de aprendizado oníricos (LINDEN, 2007; HOBSON, 2002; REVONSUO, 2000), pode-se argumentar que, mesmo sem ter necessidade de reproduzir literalmente uma atividade para propiciar aprendizados a ela vinculados, o sonho precisa produzir modelos de mundo suficientemente realistas para manter a ilusão do sonhador, que, experimentando os eventos oníricos como se fossem reais, com toda a carga emocional muito frequentemente implicada nessa credulidade, teria mais chance de aprender com eles.

Falta, entretanto, pôr à prova os vários elos dessa cadeia argumentativa. Seriam os sonhos mais bizarros vividos, em geral, com menor envolvimento emocional? Teriam eles menor repercussão cognitiva do que sonhos mais realistas? E quando, nos chamados “sonhos lúcidos”, o sonhador sabe que está sonhando, o teor e a intensidade emocionais da experiência onírica seriam, respectivamente, alterações e reduções notáveis?

sonhadora”, menor potencial cognitivo? Ribeiro e Nicolelis especulam em sentido contrário:

Apesar da abundância de relatos subjetivos sobre o uso de sonhos lúcidos para melhorar o desempenho de diversas habilidades na vida real, o potencial cognitivo de tais sonhos ainda precisa ser investigado pela ciência. O uso de sonhos lúcidos no aprendizado simulado consciente, se confirmado e tornado accessível ao público em geral, pode representar um avanço revolucionário na futura evolução da consciência humana.34 (RIBEIRO e NICOLELIS, 2007, pág. 9)

No mesmo artigo, os dois autores assim definem “insight” e sua relação com os sonhos:

O insight (...), também conhecido como abdução (...), corresponde a criação de novas memórias não trivialmente derivadas de memórias preexistentes. Apesar de poderem ocorrer em vigília (...) insights são grandemente facilitados pelo sono.35 (RIBEIRO e NICOLELIS, 2007, pág. 6)

Com os dois experimentos descritos no subcapítulo 1.5, Ribeiro e seus colaboradores deram um passo adiante na compreensão de processos associados ao insight, a capacidades antecipatórias e prospectivas a que se dedica o cérebro adormecido. Ao demonstrar a presença, durante o sono e os sonhos, de padrões de atividade neuronal associados não apenas ao reforço de comportamentos bem-sucedidos no dia anterior, mas sobretudo a comportamentos que não repetem o que deu certo ontem, e que, postos em prática hoje, propiciam melhor desempenho, essas pesquisas dão um sentido mais poderoso à concepção do sonho como evento novo e único de Foulkes. Nessa nova perspectiva, o sonho passa a ser também, graças a complexas associações probabilísticas de memórias preexistentes, potencialmente antecipatório de condições futuras e gerador de novas ideias, ações e comportamentos.

34

Despite the abundance of subjective reports on the use of lucid dreams to improve performance on a variety of real life skills, the cognitive potential of such dreams also remains to be investigated by science. The use of lucid dreams for conscious simulation-based learning, if confirmed and made accessible to the general public, may represent a breakthrough for the future evolution of human consciousness.

35

The insight (…), also known as abduction (…), corresponds to the creation of new memories and ideas not trivially derived from pre-existing memories. Although insights may occur during waking (...) they are greatly facilitated by sleep.

2.2.

Contexto evolucionário, aprendizado onírico e aptidões