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Apropriações e reinvenções da professora de literatura brasileira

Este trabalho em classe com os jovens e professores encerrou uma jornada, porém não encontrou o seu final e sim o seu reinício. Isto foi bastante significativo para todos nós, uma vez que fortalecemos o método trabalhado nesta dissertação, que se fez em meio à apreensão do hibridismo das culturas juvenis – de recorte e colagem, apropriação e recombinação – e, ainda, experimentamos a possibilidade encontrada pela professora de literatura brasileira, de articular a cultura escolar e as culturas juvenis.

A seguir relataremos o trabalho de uma professora que parece ter se apropriado do método que construímos in locus, reinventou-o de acordo com sua história e experiência de vida e recombinou-o com a matéria de sua responsabilidade na escola, literatura brasileira. Esta professora, afro-brasileira, envolveu-se de tal maneira com a literatura de cordel, com os alunos, suas denúncias e suas histórias, que este passou a ser, inclusive, o tema de sua monografia de pós-graduação latu sensu.

Dentre as várias atividades que realizou em sala de aula com os jovens, desencadeadas pelo grupo de estudos e pelas intervenções em classe, das quais ela participou, citaremos os momentos que nos foi possível acompanhar.

A professora leu o romance de cordel “As três Marias”, de Wilson Freire (2002), que depois serviu de roteiro para um filme com o mesmo título, dirigido por Aluísio Abranches. Um livro que foi construído a partir de 12 folhetos de cordel e resultou em um romance de 400 páginas. O tema do romance é bem típico do sertão pernambucano:

brigas de famílias, vinganças, a questão da honra. O interessante é que embora esse costume de vingar a honra fosse algo essencialmente masculino, a história é narrada do ponto de vista feminino. Uma vingança que é planejada por Filomena Capadócio e é seguida por suas três filhas. A história demonstra coragem, força e segundo, a professora, um “desejo incomum” entre as mulheres de lutar pela honra de suas famílias.

O objetivo de uma de suas aulas foi contar a história desse romance de cordel aos alunos e em seguida, assistir ao filme, para que o tema central, que girava em torno da vingança/violência, fosse o mote para a construção de novos cordéis em formato de sextilha.

Em um outro momento, a professora deu uma aula envolvente sobre o Cordel. Algumas das questões levantadas foram: Vocês já estudaram poesia? Qual a diferença entre poesia e poema? Como é construído um poema? Qual a diferença entre verso e estrofe? O que são rimas?

Conforme ia obtendo as respostas dos alunos, completava-as com novas informações. Como observou que os alunos tinham uma boa noção do que era poesia e de seus elementos básicos, verso, estrofes e rimas, colocou-os em círculo e fez uma atividade grupal. Primeiro, dependurou na lousa papel craft com poesias na métrica das quadras para serem completadas pelos alunos que receberam as palavras que estavam faltando na poesia. O aluno que tivesse a palavra que estava faltando, levantava e preenchia o verso. Assim a professora trabalhou a rima e a métrica de modo bastante interativo.

Depois, com o objetivo de tratar da questão da violência e do preconceito denunciados pelos alunos, a professora trouxe para a sala de aula alguns folhetos de cordel e se pôs a ler com os alunos “A chegada de lampião no inferno”, de José Pacheco. A professora disse ter se surpreendido com o interesse dos alunos pela história, querendo ouvi-la até o fim; lamentavelmente, a prática de contar histórias na escola não era muito comum, embora, como pudemos observar, os alunos demonstrassem apreciar a leitura feita pela professora.

Em outro momento, a professora apresentou o filme “Ele dança, eu danço” (Anne Fletcher, 2006), cujo personagem central é condenado a prestar serviços à comunidade, depois de ter destruído com sua gangue o auditório de uma escola de artes, até que ele

descobre a dança. Como estivesse muito acostumado com o break, sua tendência era de menosprezar o ballet clássico, mas depois de conhecer uma garota que era bailarina clássica, descobriu o prazer de criar um novo estilo de dança misturando os dois estilos.

Na discussão com os alunos, priorizou-se o tema do respeito às diferenças e ressaltou-se que o preconceito, além de étnico e social, poderia se referir a qualquer aspecto da vida do qual estamos distantes.

No final desta intervenção, conversaram sobre os diferentes ritmos de dança e de música e, no final, fizeram um paralelo entre o cordel e o hip-hop. Perceberam que entre um e outro havia diferenças, mas muita identidade também. Segundo eles: os dois eram modos de expressão artística (estética) de um grupo social, além de ser uma forma de as pessoas oriundas das classes populares, ou com elas identificadas, se expressarem e denunciarem os problemas sociais e políticos.

Conforme avaliação feita pela professora em seu relatório, esta foi uma oportunidade de construir com os alunos uma “educação problematizadora”, capaz de articular o conhecimento acumulado com uma leitura crítica da situação vivida pelos alunos. Nesta mesma direção Amaral (2010) põe em cheque a validade das propostas de formação continuada ou mesmo de projetos de ensino dirigidos aos professores, implementados pelo Estado, por serem, muitas vezes, alheios às reais necessidades dos professores em suas múltiplas e variadas experiências nas unidades da rede pública de ensino em São Paulo. Assm, consideramos importante nos ater a “uma educação que problematiza a situação vivida pelos alunos”, como salienta a pesquisadora Amaral (2010).

Esta professora parece ter encontrado sentido na “multivocidade” dos interesses culturais dos alunos e, por meio de seu olhar, interesse, experiência e repertório, análises interpretativas, proximidade e didática, converteu o projeto “Cordel Rap e Repente” em sua própria realidade de trabalho em sala de aula. Ao contrário de um projeto que chega de cima como, por exemplo, da Secretaria de Educação do Município, esta apropriação e recombinação se apresenta como uma maneira muito mais eficaz de se promover a melhoria do ensino público. Afinal a atividade foi elaborada a partir da história e experiência dos maiores interessados: alunos e professores, escola e comunidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS