• Nenhum resultado encontrado

Apropriando-se de um conceito de presença

1 PRESENÇA NA EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

1.1 Entre o sentido e a presença

1.1.2 Apropriando-se de um conceito de presença

Ainda que a tarefa de colocar-se em uma perspectiva pós-metafísica seja vista como uma realidade distante, para uma possível aproximação à presentificação na experiência estética, acreditamos que podemos nos apoiar, de certa maneira, na sugestão do que Gumbrecht (2010, p.106) chama de um “repertório não exclusivamente hermenêutico de conceitos de análise”. Esse repertório, imaginado a partir da análise de antigas culturas em contraste com o início da cultura moderna, propõe a visualização de diferenças entre a “cultura de presença” e “cultura de sentido”. Por acreditarmos ser mais adequado à abrangência dessas reflexões, chamaremos de noções, ao invés de conceitos, cada tópico desse repertório.

Acreditamos que essa tipologia binária, ainda que possa parecer simplificadora ao dividir tais noções de maneira estanque, torna-se um método concreto de aproximação a um aspecto que pode ainda parecer-nos muito fugidio.

Também entendemos que tal divisão permite-nos perceber algumas possíveis articulações de linguagem que podem contribuir mais para sua presentificação do que para uma relação exclusivamente interpretativa. Ou melhor: aproxima-nos de articulações que se construam a partir de um tensionamento entre essas duas categorias.

Voltando ao repertório de análise, que possui dez posicionamentos sugeridos, torna-se necessária a apresentação de como entendemos cada um, uma vez que serão parcialmente norteadores em nosso contato com os aspectos dos filmes analisados. As noções desse repertório, serão explicadas de maneira introdutória nos próximos parágrafos.

A autorreferência humana, em uma cultura de sentido é o pensamento, enquanto, em uma cultura de presença, a autorreferência é o corpo.

O lugar dos seres humanos no mundo – da maneira como se entendem – em uma cultura de sentido, é o de serem excêntricos a esse mundo, possuindo papel central. Já em uma cultura de presença, o ser-humano percebe-se como sendo parte das “coisas do mundo” – que possuem sentido inerente –, considerando-se integrante nessa existência.

O conhecimento em uma cultura de sentido é obtido através da interpretação, onde se extraem sentidos mais profundos de superfícies que são puramente materiais, enquanto em uma cultura de presença o conhecimento é tipicamente revelado, não partindo do sujeito, e não possuindo, portanto, somente um valor conceitual.

A ideia de signo, em uma cultura de sentido, possuiria como central a “’estrutura metafísica’, que Ferdinand de Saussure defende ser a sua condição universal: a união de um significante puramente material com um significado (ou ‘sentido’) puramente espiritual” (GUMBRECHT, 2010, p.108). Em oposição a essa concepção de signo, em uma cultura de presença, a forma (para o autor) seria mais aproximada da definição aristotélica, que possuiria a junção de “uma substância (algo que exige espaço), e uma forma (algo que torna possível que a substância seja percebida)”.

Enquanto a relação com o mundo, em uma cultura de presença, seria o da inserção dos corpos no ritmo da cosmologia que lhes envolve, em uma cultura de sentido a transformação do mundo, a partir das ações humanas, seria a principal motivação.

A dimensão em que se negociam as relações – seja entre seres humanos, ou entre seres humanos e as “coisas do mundo” – em uma cultura de sentido é o tempo (por uma associação entre consciência e temporalidade), enquanto em uma cultura de presença, essa dimensão é a do espaço.

Sendo o espaço a principal dimensão em uma cultura de presença, a violência – entendida aqui como bloqueio do espaço pelos corpos – teria um valor mais direto em algumas transformações, enquanto em uma cultura de sentido essa violência se tornaria oculta e encoberta7.

O conceito de evento, em uma cultura de sentido, é ligado ao valor de surpresa e inovação, quando em uma cultura de presença, seria necessário pensar uma ideia de evento desconectada dessas categorias, e mais relacionada a uma ideia de descontinuidade8.

A ficção, em uma cultura de sentido, seria um conceito quando os participantes possuem ideia limitada das motivações que lhes orientam o comportamento, criando “regras” na ausência dessas motivações. Em uma cultura de presença, uma vez que o comportamento humano não determinaria as ações, não seria possível a produção de um equivalente dos conceitos de lúdico e ficção.

Finalmente, a diferenciação entre os debates parlamentares como um ritual adequado nas culturas de sentido, e a eucaristia, na cultura de presença. Essa diferenciação é feita para ilustrar a prática de se intensificar uma presença divina, no caso da eucaristia, sendo algo que pode, de certa forma, ser quantificado nessa cultura, ao contrário dos debates parlamentares, que seriam encenados como se as decisões dependessem exclusivamente da capacidade intelectual dos argumentos de seus participantes.

Essas noções, que não buscam valorizar uma cultura sobre a outra, nos auxiliarão para que se possa imaginar equivalências em nossa cultura atual, facilitando a busca de possíveis ocorrências da oscilação entre esses campos no cinema. No decorrer da análise, voltaremos a refletir sobre algumas dessas colocações.

                                                                                                                7

Importante lembrar que a violência é vista aqui mais como um aspecto de determinadas culturas de presença, que se relacionam a ela de maneira ampla, ao invés de se colocar como um elemento necessário para a presentificação dos objetos estéticos na contemporaneidade.

8

O autor dá o exemplo das notas de uma orquestra, que sabemos que tocará em determinado horário, mas que, ainda assim, suas primeiras notas nos “tocam”, produzindo um efeito de “eventividade” (GUMBRECHT, 2010, p.111).