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Capítulo 3 – A indústria lítica de Arapouco

3.4 Arapouco: análise sintética de um concheiro

3.4.1 Ponto prévio: comparações com trabalhos anteriores

A investigação de um sítio pressupõe sempre uma análise comparativa com outros sítios considerados de relevo para o investigador e para a leitura do conjunto. Estas comparações, ainda que se podendo realizar dentro de um mesmo sítio através de uma leitura espacial diferenciada ou de momentos cronológicos distintos, ou até mesmo de análises posteriores sobre um espólio já estudado, nem sempre é costume realizarem-se análises de um espólio distinto, supostamente da mesma cronologia, incidindo num mesmo espaço.

É precisamente isso que acontece aqui. Como já referido, vários são os períodos de investigação dos concheiros do Sado, como tal, surgem assim prospecções e análises quer de espólios recentes quer de espólios antigos. O que sucede em Arapouco é a análise do espólio lítico das escavações de Manuel Heleno por Mariana Diniz e Diana Nukushina em 2014, donde provém um artigo (Diniz e Nukushina, 2014).

Desse artigo provém uma série de informação que, para o presente estudo se torna útil em dois pontos: a percentagem dos núcleos face ao conjunto (quer no conjunto Heleno quer no conjunto Sado-Meso, ambos próximos do 2,5%) e a morfologia das lascas (com excepção dos acidentes de talhe que a presente análise confirma em quase 30% destas peças e a anterior afirma não serem frequentes [idem, p. 32]) mas não a sua dimensão que, apesar de cair dentro dos desvios-padrões, se apresenta nesta análise de maior tamanho.

A diferença do volume do espólio estudado pode ser o factor principal desta diferença, tendo em conta que o total aqui analisado corresponde a somente 4,5% do espólio esudado pelas autoras referidas, ou seja 172 peças contra 3841. Apesar da notória diferença percentual no uso das matérias-primas e em grande parte das classes tipológicas a semelhança morfológica das lascas pode ser um importante sinal comparativo.

Independentemente de tal, o que aqui se apresentará são os dados recolhidos na escavação realizada entre 2014-2016, conforme referido anteriormente, sendo que posteriormente se reflectirão sobre essas diferenças, ainda que a comparação seja bastante

reduzida e a incorporação destes dados nos dados anteriores seria reduzir à leitura quase integral dos dados do artigo de Diniz e Nukushina tendo em conta o diferente volume das duas colecções.

3.4.2 Talhe local e gestão das matérias-primas

O espólio lítico do concheiro de Arapouco permite logo à partida suster dois factos: a presença de todas as etapas da cadeia operatória e a presença de uma larga variedade de matérias-primas.

A presença completa da cadeira operatória permite pois supôr a realização de talhe local, no qual a presença de núcleos e de material residual atestam tal hipótese. A presença, ainda que fraca, de peças corticais, ainda que possa ser indicativo dessa mesma presença de talhe local pode também fazer supôr uma debitagem parcial na área de recolha dos volumes como forma de averiguação da qualidade de talhe dos blocos de matéria-prima, dá também a entender esse carácter local de debitagem.

Observando a matéria-prima, a larga variedade observada no conjunto corresponde à paisagem litológica envolvente, levando a aceitar uma obtenção local dos blocos de debitagem (Pimentel et al, 2015). Ponto de apoio é também a frequente presença de cascalheiras e afloramentos rochosos que facilitariam uma obtenção diversificada de blocos de talhe. Esta obtenção de matéria-prima, na qual a presença de blocos de diversos tamanhos parece ser o comum, incide, contudo, especialmente tendo em conta o volume de objectos correspondentes no conjunto, a uma maior apropriação de quartzito, que atinge 40% do total empregue. Já o segundo maior grupo corresponde aos pórfiros, na qual 20% das peças foram realizadas, sendo que o cherte e o quartzo têm ambos quase 10%, sendo as restantes matérias residuais, sempre abaixo dos 5%. Ainda que a presença de quartzito seja considerável, não se pode excluir que este resulte essencialmente de uma recolha casual e não ponderada dessa matéria-prima, que neste concheiro, o mais perto da foz do rio Sado e das zonas dunares, se vê obrigado a mais a montante de uma matéria- prima mais adequada para o talhe (Pimentel et al., 2015).

Relativamente a uma gestão diferenciada da matéria-prima não é observável a existência de cadeias operatórias diferenciadas. Observa-se somente a utilização do cherte

para a produção dos utensílios (somente duas peças são utensílios retocados), mas tal facto pode ser justificado mais pelo reduzido volume do espólio do que por uma exclusividade da utilização desta matéria-prima para a produção de utensilagem. Por outro lado, apesar de 40% do conjunto consistir em peças de quartzito e aí não surgir nenhum utensílio pode deixar transparecer uma preferência por outras matérias-primas para a sua criação.

3.4.3 Objectivos de debitagem

Pode afirmar-se que o objectivo de debitagem de Arapouco é a produção de lascas. Esta produção não teria o objectivo de obter uma forma regularizada tendo em conta a diferença morfológica entre as peças, mas sim simplesmente a obtenção de lascas enquanto produto bruto.

Desta produção indiscriminada de lascas a análise funcional pôde atestar para as de cherte a sua utilização como utensílios a posteriori, juntamente com outras peças, devendo ter-se em conta de que o total de peças analisadas é muito reduzido ainda que corresponda ao total de peças em cherte. Dessa análise destaca-se a presença de peças utilizadas de forma expedita para fins precisos, não existindo uma padronização morfológica paras as peças utilizadas nem correspondência de formas-padrão para usos específicos. Utilizações estas que incidiam na sua maioria na acção de raspar/cortar em madeiras secas/duras e matérias moles, provavelmente de origem animal (carne), no que pode ser interpretado como tratamento de madeira e carne para usos alimentares ou outros não percepcionados.

A ausência genérica de peças retocadas parece assim ser colmatada, pelo menos referente ao cherte, pela utilização de peças brutas como supressão das necessidades em utensilagem, potenciada pela produção preferencial de lascas.

3.4.4 Dinâmica da debitagem

Em Arapouco o método de debitagem preferencial aparenta ser o método “aleatório”, conforme descrito por A. F. Carvalho (1998), no qual a maior presença de

núcleos com formas-tipo não-regulares (com excepção de um prismático), da ausência de regularização quer das extrações quer do próprio núcleo e das próprias extrações serem realizadas em múltiplas direcções e sem aparente padronização aparenta indicar essa metodologia de talhe. Ainda que apareçam alguns elementos de preparação e de reavivamento, estes parecem indicar mais uma vontade de rentabilização do núcleo do que propriamente de regularização das plataformas de debitagem de forma a serem extraídos elementos mais regulares.

3.4.5 Utilização do espaço

Não foi possível identificar um padrão de utilização do espaço referente ao cabeço onde se insere o concheiro de Arapouco. A ausência de informação representativa das ocupações, quer horizontal quer verticalmente, impede a leitura espacial deste concheiro, sendo que somente se pode destacar o carácter aparentemente mais central (ou melhor conservado) da Sondagem 1.

3.4.6 Leitura sintética

O concheiro de Arapouco aparenta ser, sem esquecer o reduzido volume de peças recolhidas e analisadas relativamente à análise funcional das peças em cherte e o estado de conservação do sítio, uma área com fraca presença de indústria lítica. Esta actividade aparenta cingir-se à transformação indiscriminada dos blocos de matéria-prima, cuja representatividade do quartzito é notória (40%), em lascas cuja utilidade quanto ao cherte aparenta ser o de tratamento expedito e objectivo de madeiras e carnes, provavelmente com propósitos alimentares.