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Capítulo IV Argumentação, Retórica e Razão

4.2. Argumentação e Dissenso

A diversidade dos estudos contemporâneos sobre retórica e sobre argumentação não representa um campo unificado de investigações (Breton & Gauthier, 2001, p. 93), nem conduziu a uma teoria universalmente aceite: “O atual estado da arte é caracterizado pela coexistência de uma variedade de abordagens, diferindo consideravelmente em termos de conceptualização, alcance e nível de refinamento teórico” (van Eemeren, 2001, p. 12).

Não procuraremos, por estar além do alcance desta dissertação, sintetizar essa miríade de perspetivas, mas antes balizar, concretamente, a perspetiva teórica que adotámos, em coerência quer com o conceito fundamental em torno do qual se desenvolve esta investigação – o espaço público -, quer com a opção metodológica resultante da especificidade do nosso objeto de estudo – a cobertura noticiosa da denominada crise iraquiana e, especificamente, aquele que é o seu corpus nuclear: os editoriais do jornal “Público”. O espaço editorial distingue-se não só pela natureza argumentativa dos discursos, característica que partilha com os textos opinativos dos colunistas, mas, sobretudo, pela natureza perlocutória dos mesmos, devido à autoridade institucional de que se encontram investidos os seus autores: o diretor do jornal e demais membros da Direção Editorial.

Nesta dissertação, consideramos a argumentação como a atividade discursiva que “usa a linguagem para defender ou refutar um ponto de vista, com o objetivo de assegurar a concordância de opiniões” (van Eemeren, Grootendorst, Jackson, & Jacobs, 1997, p. 208). Nesta conceção, a argumentação é uma atividade verbal, que decorre por meio da linguagem; é uma atividade social, já que se dirige a outras pessoas e é uma atividade racional, baseada em justificações fundamentadas racionalmente. Crucial é o facto de respeitar a um ponto de vista particular por envolver sempre uma tomada de posição (standpoint) em relação ao assunto em causa. “A argumentação

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visa convencer o ouvinte ou o leitor da aceitabilidade do ponto de vista [standpoint]”

(van Eemeren & Grootendorst, 2004, p. 2).

Como a argumentação é uma tentativa de convencer o auditório da aceitabilidade ou inaceitabilidade de uma opinião expressa, e convencer é um ato perlocutório, consideramos que argumentar “é um ato de fala constituído por uma constelação de declarações concebidas para justificar ou refutar uma opinião expressa” (van Eemeren & Grootendorst, 1983, p. 18). Um ato de fala numa situação de argumentação específica é complexo já que comporta uma ilocução (o aspeto comunicativo), no caso da argumentação, e uma perlocução (aspeto interativo), no caso do convencimento (van Eemeren & Grootendorst, 1983, pp. 49-50) que são realizados num determinado contexto. Nem todas as expressões verbais proferidas numa interação comunicativa exprimem pontos de vista (standpoint); para que tal aconteça, devem cumprir uma determinada função num contexto específico. Uma afirmação verbal ou escrita expressa um standpoint apenas se indicar a posição favorável ou contrária de quem a exprime em relação ao assunto em debate, bem como um conjunto de frases só são consideradas como um argumento se forem usadas em conjunto para justificar ou refutar uma proposição (van Eemeren & Grootendorst, 2004, p. 3).

Distinguimos entre argumentação e argumentatividade, considerando que a primeira é uma atividade comunicacional interativa que implica uma oposição e um conflito de opiniões, enquanto a segunda é uma caraterística da própria linguagem. A argumentatividade inerente ao discurso pode ser vista em três aspetos: como uma força projetiva (mecanismos de orientação enunciativa) inerente ao uso da língua, como uma força configurativa (mecanismos de influência discursiva) inerente ao discurso e como uma força conclusiva ou ilativa (esquemas de raciocínio) (Grácio, 2011, p. 122).

Uma interação comunicativa torna-se uma argumentação quando esse processo é dissensual, ou seja, “uma conversação envolvendo desacordo” (Willard, 1986, p. 145) entre as partes envolvidas em relação ao assunto em questão. A noção de argumento de Charles Arthur Willard combina os dois sentidos do termo: o de um raciocínio com uma finalidade persuasiva e o de uma disputa de opinião. A

184 argumentação é, em simultâneo, o confronto de pontos de vista opostos e as justificações que os apoiam. Neste sentido, verifica-se “um certo resvalar da retórica para a dialética ou antes uma certa integração da dialética na retórica” (Breton & Gauthier, 2001, p. 120). A argumentação é uma interação baseada numa situação caracterizada pela existência de uma oposição entre discursos (interação entre pelo menos dois argumentadores), a alternância de turnos de palavra polarizados num assunto em questão (tendo em conta as intervenções dos participantes) e uma possível progressão para além da argumentação inicial, em que é visível a interdependência discursiva (Grácio, 2011, pp. 122-123).

A situação argumentativa não pode ser vista como definida à partida, nem como permanecendo constante ao longo da interação; trata-se antes de um conjunto de acordos provisórios que podem ser alterados, rejeitados ou renegociados: “A consequência mais radical torna-se aparente se assumirmos que os falantes moldam as suas ações aos seus sistemas cognitivos – aos seus sistemas construídos em uso num dado momento” (Willard, 1991, p. 103). A relação entre a interação discursiva e o contexto revela-se mais complexa do que a ideia de que quem argumenta se adapta ao contexto ou de que o contexto determinada a comunicação; existe antes uma interação dialética entre o contexto e a comunicação, que muda ambos, formando uma nova realidade. Para Willard, os contextos são, em aspetos importantes, epifenómenos de processos cognitivos e acordos públicos, isto é, são uma interface entre o individual e o coletivo porque são formados pelas nossas preferências, pelas nossas expetativas e pelas realizações interpessoais nas relações com os outros: “Têm tanta racionalidade narrativa como queremos ou somos capazes de dar-lhes; as suas questões são de tal ordem que se encaixam nas nossas respostas disponíveis” (Willard, 1991, p. 103). A relação com o contexto depende da competência comunicativa de quem argumenta.

Na nossa definição da argumentação, seguimos Frans H. van Eemeren e Robert Grootendorst, autores de uma das mais influentes teorias argumentativas contemporâneas, a “Pragmadiálética”: pragmática porque concebe a argumentação num contexto comunicacional em que os autores tentam resolver as suas diferenças de opinião através de atos de fala e dialética porque o processo persuasivo se baseia

185 no intercâmbio racional de argumentos. A teoria é não só descritiva, mas também normativa: o modelo de “discussão crítica” permite aferir da validade racional dos argumentos. De natureza procedimental, a “discussão crítica” comporta quatro fases: confronto, abertura, argumentação e conclusão; ao longo da discussão, os argumentadores (que assumem a função de protagonista e antagonista) devem respeitar 10 regras que apresentam bastantes semelhanças com a ética de discurso habermasiana, como a de que “os protagonistas não devem impedir-se um ao outro de assumir e de contestar decisões”, a de que “um protagonista que assume uma posição é obrigado a defendê-la a pedido do opositor” ou, entre outras, a de que “um protagonista só deve defender uma posição fornecendo argumentação relacionada com ela” (van Eemeren & Grootendorst, 2004, p. 52 e ss.; Breton & Gauthier, 2001, pp. 122-126).

Uma crítica a este modelo é avançada por G. Thomas Goodnight que, na linha da tradição aristotélica, considera que esta abordagem não opera uma ligação adequada entre a dialética e a retórica. O termo “Nova Retórica”17 utilizado por

Goodnight não deve ser interpretado como uma proposta teórica inteiramente nova, representando antes um contributo para, por um lado, suprir uma lacuna na “Nova Retórica” de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca e, por outro, como uma nova ligação à “Pragmadialética”. No primeiro caso, a retórica perelmaniana apresenta-se como insuficientemente baseada numa dialética sistemática. Apesar da defesa de que a retórica argumentativa é racionalmente validada pelo auditório a que se destina, a falha reside na improbabilidade desse auditório, nomeadamente o auditório universal, alguma vez se reunir efetivamente, o que significa que, na prática, não há uma dialética que regule ou teste criticamente as pretensões apresentadas por quem argumenta.

“Na ausência de uma base dialética que a informe, não há lugar para o desenvolvimento de uma prática retórica teoricamente informada. Assim, as técnicas, os esquemas e as preocupações retóricas sobrepõem-se e desenvolvem-se de modo algo idiossincrático” (Goodnight, 1993, p. 330).

17 Optaremos, para evitar confusões terminológicas, pela designação, também seguida pelo autor, de “retórica responsável”.

186 No segundo caso, G. Thomas Goodnight discorda da insuficiente relação entre a dialética e a retórica que entende caraterizar a proposta da “Pragmadialética” e propõe uma “Nova Retórica” (“retórica responsável”) que a estabeleça. Quer os argumentos retóricos quer os argumentos dialéticos utilizam o discurso de modo racional para se dirigir a um Outro, cujas dúvidas sejam manifestas em relação ao assunto em questão. Na dialética, o locus da razão está numa situação externa, num conjunto de procedimentos que regem as regras de alcançar um acordo; na retórica, por seu turno, esse encontra-se num padrão implícito e específico de um determinado público, que muda consoante a audiência e que restringe o domínio dos argumentos aceitáveis. “A Pragmadialética convida convicções criticamente testadas; a retórica comanda a persuasão” (Goodnight, 1993, p. 332); mas a sua separação, embora tão antiga quanto a polémica platónica com os sofistas, enfraquece ambas, como sustentou Aristóteles, para quem os argumentos práticos e os argumentos teóricos podem reforçar-se mutuamente.

Que “Nova Retórica” pode então ser adequada à “Pragmadialética”? É possível formular uma teoria da retórica argumentativa informada por uma dialética baseada em atos de fala e na ética da comunicação?

A resposta implica conceptualizar a argumentação retórica como um discurso situado num fórum público, produzido quando uma comunidade trata assuntos que são urgentes para todos e que conduz uma ação informada:

“Essa retórica assume a ética do discurso como a dialética que a informa, ao recolocar o argumentador como alguém que é obrigado quer a falar quer a ouvir efetivamente ao serviço da causa e também a manter-se aberto, mesmo a reforçar, a razão comunicativa” (Goodnight, 1993, p. 333).

Numa prática retórica deste tipo, o orador não é visto apenas como a fonte de uma única mensagem destinada a provocar a conformidade na audiência, mas como uma voz entre muitas num momento de controvérsia pública, como aquela que carateriza a deliberação pública sobre a melhor solução para a crise iraquiana. Um argumento situado é o discurso que emerge como uma preocupação para as pessoas que se revezam como oradores e público; é produzido num contexto de expectativas

187 históricas que resultam da tradição que cada comunidade de interlocutores tem no debate dos seus assuntos. Esse debate ocorre num fórum público, caraterizado pela abertura, acessibilidade e paridade: todas as opiniões com mérito (racionais) têm a possibilidade (potencial) de serem expressas, de serem ouvidas e de serem debatidas.

“Para o processo argumentativo não falhar o seu objetivo, a forma comunicativa do discurso tem de ser de molde a que, se possível, todas as explicações e informações relevantes se expressem e sejam ponderadas de tal modo que a tomada de posição dos participantes possa ser motivada de modo intrínseco, ou seja, unicamente pela capacidade de revisão dos motivos em flutuação livre” (Habermas, 2010, p. 153).

A argumentação tem de obedecer a quatro pressuposições pragmáticas: a) publicidade e inclusão: ninguém que possa dar um contributo relevante relativamente a uma pretensão de validade controversa deve ser excluído; b) igual direito comunicativo: a todos é dada a mesma oportunidade de se pronunciarem sobre o assunto; c) exclusão do engano e ilusão: os participantes devem pretender aquilo que dizem e d) ausência de coação: a comunicação tem de ser livre de restrições que impeçam que o melhor argumento se faça ouvir e determine o resultado do debate.

“As pressuposições a), b) e d) impõem ao comportamento argumentativo regras de um universalismo igualitário que na consideração de questões

prático-morais, têm por consequência que os interesses e as orientações

valorativas de qualquer afetado sejam tidas em pé de igualdade” (Habermas, 2010, p. 153).

Embora cada fórum público dependa das tradições de debate de cada comunidade, toda a argumentação pública partilha uma caraterística comum: a obediência à norma habermasiana de um discurso crítico-racional para avaliar e testar alternativas para a ação (Habermas, 2000, pp. 25-26; Goodnight, 1993, p. 334).“Sobre qual é o argumento que convence, não decidem opiniões particulares, mas as tomadas de posição, reunidas no acordo racionalmente motivado, de todos os que participam na prática pública da troca de motivos” (Habermas, 2010, p. 152).

188 Os argumentos retóricos caraterizam-se pela “urgência comum” e por representarem “ação informada”. A “urgência comum” de um público, resultante da preocupação com assuntos ou acontecimentos que mudam a vida da comunidade, é definida através de argumentos que identificam (1) as limitações materiais e os recursos necessários e as ações limitativas, e (2) as possibilidades e as alternativas para decisões comuns: “O argumento retórico, muitas vezes refere-se à avaliação dos meios e fins para medir o sucesso futuro e avaliar as consequências das ações” (Goodnight, 1993, p. 334). Como vimos anteriormente, quando aplicamos o Índice de Qualidade do Discurso à análise dos textos opinativos dos colunistas do jornal, este tipo de argumentos é um indicador da qualidade do discurso argumentativo, permitindo avaliar se uma argumentação é justificada invocando interesses particulares ou interesses comuns, sejam estes definidos de acordo com o princípio utilitarista do “maior bem para o maior número” ou em termos do princípio da diferença, invocando grupos desfavorecidos da sociedade. Na análise dos editoriais, que apresentamos adiante, analisamos também qual o tipo de justificação que é apresentada na defesa do standpoint do autor perante a crise iraquiana. Por ação informada, entende-se o

reconhecimento do Outro, no sentido hegeliano (e também perelmaniano) do termo -

dirigir-se ao Outro é agir em relação a esse Outro. Por um lado, implica a necessidade de desenvolver uma discussão aberta com o Outro para basear as decisões em razões mutuamente entendidas e aceites; por outro, implica considerar a sensibilidade e a necessidade da audiência em causa.

“A retórica responsável é aquela cujas práticas argumentativas consideram, no caso particular, quer a necessidade de gerar resultados deliberativos eficazes, quer a necessidade de preservar as relações comunicativas que fazem com que tal ação seja significativa para todos os envolvidos” (Goodnight, 1993, p. 335).

Esta proposta situa a retórica na sua função tradicional persuasiva, mas reorienta-a através da sua ligação à dialética: para que a persuasão seja eficaz, a argumentação retórica tem de reger-se por uma dialética fundamentada na ética do discurso habermasiana. A principal alteração prende-se com a posição de quem argumenta: este passa a situar-se como um entre vários no seio de uma controvérsia e

189 tem de criar reflexivamente uma mensagem que seja eficaz para poder envolver a comunidade numa determinada ação e, simultaneamente, que reforce ou, pelo menos, cause danos mínimos às regras e às práticas comunicativas. “Uma retórica responsável, vinculada a uma ética do discurso, estaria assim aberta à discussão crítico-racional ao mesmo tempo que prosseguia os objetivos da ação efetiva” (Goodnight, 1993, p. 336).

Esta proposta de uma “retórica responsável”, vinculada à ética discursiva habermasiana, afigura-se-nos como perfeitamente adequada ao nosso estudo que se desenvolve em torno do conceito central do espaço público e tem como objetivo, nesta fase da dissertação, analisar a dimensão crítico-racional da argumentação dos membros da direção editorial do jornal “Público” perante a denominada crise iraquiana. A “retórica responsável” fornece-nos um enquadramento metodológico complementar ao da “Nova Retórica” de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, que nos serviu de instrumento para inventariar os referidos esquemas argumentativos, ou seja, as “formas mais ou menos convencionais de ligar uma premissa a um ponto de vista [standpoint]” (van Eemeren, 2009, p. 111); inventariação que permitiu identificar as linhas argumentativas seguidas por cada um dos editorialistas, entendidas como os argumentos aduzidos em favor ou contra um determinado standpoint. Seguimos uma análise retórico-pragmática, tendo em conta as dimensões ilocutória e perlocutória dos atos de fala (Austin, 1962, p. 108), situando o discurso editorial na sua relação com as audiências (leitores, elites políticas), já que as opiniões expressas em editoriais “são habitualmente formuladas para servirem como base avaliativa para um ato de fala como o de aconselhar, recomendar ou avisar, que define o âmbito pragmático ou a conclusão de um artigo de opinião” (van Dijk, 2005, p. 220).

Identificámos os esquemas de ligação, os argumentos quase-lógicos (incompatibilidade, definição, regra de justiça, reciprocidade, transitividade, relação de inclusão, divisão, adição, comparação, relação de frequência), argumentos baseados na estrutura do real (causalidade, pragmático, probabilidade, retrospetiva, coexistência entre a pessoa e os seus atos, coexistência entre a essência e as suas manifestações) e argumentos que fundam a estrutura do real (exemplo, ilustração, modelo, analogia, metáfora), indicados por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca

190 (2002, p. 217). Identificámos igualmente os esquemas de dissociação (rotura de ligação e dissociação de noções) que estruturaram o discurso editorial (Perelman & Olbrechts-Tyteca, 2002, pp. 468-469), permitindo-nos perceber as linhas argumentativas que configuraram um padrão de enquadramento (framing) do conflito, presente em vários editoriais. Na exposição dos resultados, optámos pela apresentação dessas linhas argumentativas no seu conjunto, em detrimento de mostrarmos a análise retórica individual de cada editorial, já que consideramos que o conjunto de editoriais de cada autor constitui um bloco textual coerente, que deve ser interpretado na sua globalidade; em cada um dos editoriais, os diretores do jornal analisam as várias dimensões da crise iraquiana e as razões (argumentos) com que justificam os seus standpoints são comuns aos vários textos, configurando um padrão de enquadramento da temática no âmbito da deliberação pública em curso na fase que antecedeu a guerra. É à luz deste quadro interpretativo (frame), que confere sentido às situações, “construídas de acordo com os princípios de organização que governam os eventos – pelo menos os sociais – e o nosso envolvimento subjectivo nele” (Goffman, 1986, pp. 10-11), e tendo como base a ética de discurso habermasiana, que problematizamos o significado destes discursos na gestão da comunicação do espaço público e, concretamente, dos processos de dissensão de opinião.

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