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Se o Executivo e o Legislativo representavam a população porque eleitos diretamente para isso, o que o Judiciário representava, para os Estados Unidos da década de 1960? Um corpo técnico, o único poder formado exclusivamente por membros hauridos de uma faculdade (ainda por cima, a de Direito).

A justificativa de um poder propositalmente não-eleito, técnico na área jurídica e que levasse adiante o cacoete da imparcialidade, porque afastado da arena político-eleitoral e partidária, sempre pareceu bastante plausível, contudo, na prática, aquele terceiro poder se arvorou nas funções de um verdadeiro Poder Moderador – sequer conhecido nos Estados

Unidos da América, que nunca abrigou institucionalmente um rei em seu território 64.

Os juízes passaram a “desafiar” as decisões tomadas pelo Poder Executivo, algo delicado e problemático, eis que, pela interpretação constitucional reinante até então, a autoridade do Chief Executive seria inquestionável – um guardião das vontades do povo americano. No entanto, a efervescência não era repentina. Durante a política interna do New

62 No dizer de Continentino: “O ser a Constituição do povo, verdadeiro documento público, não deve representar mero elemento retórico ou “icônico” de legitimação. Antes, ostenta a tomada da Constituição como ordem jurídica de um processo público livre (Law in public action), que aponta para o futuro. Significa criar uma comunidade aberta de intérpretes a fim de evitar, nas palavras do professor Menelick de Carvalho Netto, que a Constituição venha a ser arbitrariamente “doada” a algum órgão, porquanto sua interpretação é atividade que, potencialmente, diz respeito a todos”. CONTINENTINO, Marcelo C. Revisitando os fundamentos..., ob. cit., p. 91.

63 O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ [entrealisieren] a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência – “notre bon peuple”. MÜLLER, Friedrich. Quem é o

povo?..., ob. cit., p. 55.

64 Quando em sua pré-história (enquanto Estados Unidos da América), ainda ao tempo de Confederação de Colônias, o país se subordinou à rainha da Inglaterra, porém, a distância transoceânica para a metrópole lhe diluía a possibilidade de conhecer a verdadeira intensidade de um Poder Moderador.

Deal alguns episódios com o Judiciário pareciam um prenúncio sobre o que, décadas mais

tarde, aconteceria 65.

A maior democracia do mundo começou a entender que não poderia funcionar se os juízes não estivessem harmonicamente conectados aos outros poderes. O controle das políticas públicas se espraiou para além da atuação das atividades estatais diretamente eleitas pelo voto.

Earl Warren, Presidente da Suprema Corte daquele período, que se tornou referência em matéria de ativismo judicial, havia sido governador da Califórnia, compreendendo, perfeitamente, por que frestas institucionais o Judiciário poderia alcançar limites que o deixariam em igualdade de ações com o Executivo e, por vezes, mais relevante que o Legislativo. E assim fez: as decisões da mais alta instância judicial americana deram a última palavra em diversos assuntos que perturbavam os poderes eleitos. Como vimos, o término da segregação racial (nas escolas e transportes públicos), a legalização do aborto, o direito à liberdade de expressão, dentre outros direitos civis (peculiarmente) do povo estadunidense foram conquistados graças ao trabalho de sua Suprema Corte, entre 1953-1986.

Não obstante, a indagação que inquietava os constitucionalistas e politólogos de outrora permaneceu reverberando: o que legitimaria esses indivíduos a deliberar sobre todos os pontos centrais da discussão pública? Esse ainda continua o ponto de virada das teorias sobre o tal argumento contramajoritário. É dizer, perguntam-se os estudiosos sobre a legitimidade de apenas alguns indivíduos, por mais qualificados que sejam, de se encarregarem a determinar todas as veredas para o futuro da sociedade, no tocante à política, à economia, à religião, à moralidade, à sexualidade, à ética, enfim, a todos os temas que deveriam ser alvo de intenso e prolongado debate público.

Apenas para completar a referência história, deve-se lembrar o que aconteceu depois da onda ativista até 1986. A Suprema Corte americana iniciou a Era Rehnquist, um Chief Justice igualmente ativista, porém de lado inverso do jogo político – um juiz tendente ao conservadorismo. Até a morte de William Rehnquist, em 2005, a Corte luziu tons bem

65 Medidas intervencionistas do New Deal, como a Lei de Recuperação da Indústria Nacional (National Industrial Recovery Act [NIRA]) e a Lei de Ajustamento Agrícola (Agricultural Adjustment Act [AAA]), ambas de 1933, foram declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana, que, a esta altura, refletia a inquietação dos republicanos conservadores, ocupantes da Presidência da República durante toda a década anterior.

diferentes que aqueles tingidos nas décadas de 1960 e 1970. Por óbvio, as discussões preocupantes também se modificaram sensivelmente, mas, a política profissional não precisava mais se preocupar em demarcar seu território ante o da Suprema Corte.

A Justiça, no uso da discricionariedade autorizada pela Constituição americana, foi deixando de lado julgamentos que envolvessem questões extremamente delicadas, que poderiam ser solvidas no âmbito do Executivo e/ou do Legislativo.

Hoje, sob nova presidência (Chief Justice John G. Roberts) – e em composição de matizes políticas mescladas – a US Supreme Court permanece um tanto silenciosa, muito embora, aqui e acolá, ainda abale as estruturas democráticas, como, por exemplo, em sua recente decisão a respeito dos limites para doações em campanhas políticas, sacramentando a possibilidade de qualquer cidadão ou companhia (americana ou não) doar o quanto lhe

aprouver de seu patrimônio líquido para financiar candidatos 66 nas eleições. O certo é que os

embates causados pelo Tribunal durante seus dias de ativismo progressista não se repetem 67.

A ideia de autocontenção do ativismo conservadorista sepultou no passado aquelas decisões- códigos de leis e trabalha, agora, na clássica definição de Judiciário garantidor de procedimentos (e não definidor de conteúdos), além de compreender o Estado americano como tipicamente liberal e, portanto, acima de tudo, as liberdades negativas é que devem sobressair, não as prestações sociais (direitos de segunda geração, que, em regra, obrigam a Administração Pública a um fazer).

Conquanto toda essa lembrança do exemplo americano seja valorosa, é preciso esclarecer que esta pesquisa se distancia dessa linha de raciocínio, e de modo bem simples: não considerando o Judiciário como ameaça ou como Poder que extravasou suas reais possibilidades de atuação. Ao contrário, pensamos que a Justiça também sofreu (e está sofrendo) com essa expansão, porque representa uma ampliação forçada, um fenômeno exógeno tanto quanto (ou mais que) endógeno. Dito de outra maneira, o Judiciário não é protagonista à toa desta confusão de papéis democráticos. Não houve uma revolução um-a-um dos juízos, a fim de que tomassem o poder estatal todo para si: é na ausência e na lacuna (de

66 08-205 U.S. Citizens United vs. FEC (Federal Election Commission), 21.1.2010.

67 GRIFFIN, Stephen M. The Age of Marbury…, ob. cit., p. 64. “Nesse mundo anti-Carolene, a razão da nota de rodapé número quatro, que uma vez embasou vigorosa revisão das classificações legislatives, agora corre na direção contrária”. Tradução livre de: “In this anti-Carolene world, the footnote four rationale that once supported vigorous review of legislative classifications now runs in the opposite direction.”

legitimidade, inclusive) dos outros dois poderes que se projeta ao Judiciário a possibilidade de

resolver os problemas do Estado 68.

O fenômeno não é natural e encadeado: como se as decisões de cada juiz tivessem, pouco a pouco, formado uma mentalidade de incluir a Justiça no núcleo das decisões democráticas de toda a sociedade. Essa tendência crítica, que enxerga cada sentença “ativista” como uma partícula de uma oscilação toda programada (quase um boicote do Judiciário aos outros poderes), é perceptível naqueles que advogam o argumento contramajoritário. Porém, pensamos que há comportamentos e ideologias mais profundos envolvidos nessa temática (dos quais cuidaremos em momento próprio). Mas, apenas para que se complete o raciocínio, notamos que a dificuldade contramajoritária norte-americana não trata da apatia cidadã e do déficit da educação em prol da participação e da preocupação sobre os rumos políticos traçados para o futuro nacional. Assim sendo, o argumento opta por alinhar a questão toda em diversos simbolismos, nos quais o povo não passa de instância de legitimidade através do voto.

Dessa maneira, a dificuldade contramajoritária simplesmente considera que o Judiciário não é legitimado a tratar de questões políticas, por não ser eleito pelo povo, no entanto, esquece de declinar com precisão quais questões seriam puramente políticas, quais seriam puramente jurídicas e, além daí, esquece de manifestar que, embora “eleitos”, nem Legislativo nem Executivo estão quites com o povo em matéria de legitimidade, logo, é necessário responder quem é legítimo para questões políticas, já que o Judiciário não é.

Ora, por certo, estas respostas nunca virão, satisfatoriamente. Todas as tentativas doutrinárias para separar as searas política e jurídica falharam, por utilizarem premissas meramente alegóricas, que contradizem a realidade de que as normas jurídicas são elaboradas por políticos profissionais e que, nesse compasso, a aplicação delas nunca pode eliminar o

68

Agra comenta, em particular, o caso do Legislativo: “Os fatores que mais contribuem para o arrefecimento da atuação do Poder Legislativo são: a pluralidade de fontes jurídicas, a imperiosa necessidade de adequação legal aos ditames de uma sociedade pós-moderna e o processo de globalização. Em decorrência desses fatores, o Direito substancialmente apresentado pelos códigos não preenche mais as expectativas da sociedade porque é inerte. (...) A falta de representatividade e de sintonia do Legislativo junto ao segmento organizado da sociedade e à população de modo geral também contribuem para arrefecer sua legitimidade”. AGRA, Walber de Moura. A

reconstrução da legitimidade do Supremo Tribunal Federal: densificação da jurisdição constitucional brasileira.

aspecto político imposto pela própria vida em sociedade e a ambiência político-partidária em

que foram gestadas 69.

Quanto ao mais, se a população e os próprios políticos profissionais é que acodem ao Poder Judiciário como árbitro da cena político-democrática, esperar que o pretório não atue é confabular contra seu dever institucional (de responder as demandas). Nesse sentido, o povo e seus representantes é que devem qualificar e resolver, por si, o debate das ideias democráticas – e não remetê-las ao Judiciário e criticar duramente quando este as responde.

Se a tão propalada crise de legitimidade assolou o Legislativo (na verdade, assolou a crença na democracia indireta, na democracia exclusivamente representativa) do mundo inteiro e o Executivo de vários países, o Judiciário serviu como válvula de escape desse processo, eis que legitimado pela própria Constituição, na maioria dos ordenamentos jurídicos e eis que o povo começou a se sentir mais representado nas decisões dos juízes do que nas atitudes (públicas e privadas) dos congressistas e dos chefes de governo.