10. Voltemos ao dogma das penas eternas. Eis o principal argumento invocado em seu
favor: “É doutrina sancionada entre os homens que a gravidade da ofensa é proporcional à qualidade do ofendido. Por exemplo, o crime de lesa-majestade (o atentado à pessoa de um soberano), sendo considerado mais grave do que seria em relação a qualquer súdito, é, por isso mesmo, mais severamente punido. E sendo Deus muito mais que um soberano, pois é Infinito, deve a ofensa a Ele ser infinita, como infinito o respectivo castigo — isto é, eterno”.
Refutação: Toda refutação é um raciocínio que deve ter seu ponto de partida, uma base
34 Ortodoxo: religioso conservador, preso às tradições, rigoroso. O não-ortodoxo, portanto, é o contrário desta
ortodoxia; não-conservador e não-rigoroso – N. E.
35 Deísmo: ideia de que nos asseguramos da existência de Deus somente pela razão, sem levar em conta os
ensinamentos ou a prática religiosa – N. E.
36 Ceticismo ou cepticismo: ideia de que não podemos chegar a nenhuma verdade, descrença, dúvida
permanente – N. E.
37 Panteísmo: filosofia que defende que o Universo é uma extensão do corpo de Deus, bem como cada pessoa é
um pedaço do Pai. O Espiritismo nega essa ideia, pois não admite que a criação não pode ser o mesmo criador (Deus), uma vez que foi a obra é posterior ao seu idealizador – N. E.
sobre a qual se apoie, argumentos, enfim. Tomemos esses argumentos aos próprios atributos de Deus; — único, eterno, imutável, imaterial, onipotente, soberanamente justo e
bom, infinito em todas as perfeições.
É impossível entender Deus de outra maneira, visto que, sem a infinita perfeição, poderíamos conceber outro ser que fosse superior a Ele. Para que seja único acima de todos os seres, é preciso que ninguém possa superá-lo ou sequer igualá-lo em qualquer coisa. Logo, é necessário que seja de todo Infinito.
E porque as qualidades divinas são infinitas, elas não sofrem aumento nem diminuição, sem o que não seriam infinitas e Deus tampouco seria perfeito. Caso se tirasse a menor parcela de um só dos seus atributos, não haveria mais Deus, por isso que poderia coexistir um ser mais perfeito. O infinito de uma qualidade exclui a possibilidade da existência de outra qualidade contrária que pudesse diminuí-la ou anulá-la. Um ser
infinitamente bom não pode ter a menor parcela de maldade, nem o ser infinitamente mau pode ter a menor parcela de bondade. Assim também um objeto não seria de um
negro absoluto com a mais leve tonalidade de branco, e vice-versa. Estabelecido este ponto de partida, oporemos aos argumentos supra os seguintes:
11. Só um ser infinito pode fazer algo de infinito. O homem — que é finito nas virtudes,
nos conhecimentos, no poderio, nas aptidões e na existência terrestre — só pode produzir coisas limitadas.
Se o homem pudesse ser infinito no mal que faz, igualmente seria no bem, igualando-se então a Deus. Mas se o homem fosse infinito no bem não praticaria o mal, pois o bem absoluto é a exclusão de todo o mal.
Admitindo-se que uma ofensa temporária à Divindade pudesse ser infinita, Deus, vingando-se por um castigo infinito, seria logo infinitamente vingativo; e sendo Deus infinitamente vingativo não pode ser infinitamente bom e misericordioso, visto como um destes atributos exclui o outro. Se não for infinitamente bom não é perfeito; e não sendo perfeito deixa de ser Deus.
Se Deus é insensível para o culpado que se arrepende, não é misericordioso; e se não é misericordioso, deixa de ser infinitamente bom. E por que daria Deus aos homens uma lei de perdão, se Ele próprio não perdoasse? Resultaria daí que o homem que perdoa aos seus inimigos e que lhes retribui o mal com o bem seria melhor que Deus, surdo ao arrependimento dos que o ofendem, negando-lhes por todo o sempre o mínimo carinho.
Achando-se em toda parte e tudo vendo, Deus deve ver também as torturas dos condenados; e se Ele se conserva indiferente aos gemidos por toda a eternidade, será eternamente impiedoso; ora, sem piedade, não há bondade infinita.
12. A isto se responde que antes da morte o pecador arrependido tem a misericórdia de
Deus, e que mesmo o maior culpado pode receber essa graça. Quanto a isto não há dúvida, e compreende-se que Deus só perdoe ao arrependido, mantendo-se inflexível para com os teimosos; mas se Ele é todo misericordioso para a alma arrependida antes da morte, por que deixará de ser assim para quem se arrepende depois dela? Por que a eficácia do arrependimento só durante a vida, um breve instante, e não na eternidade que não tem fim? Predeterminadas a um dado tempo, a bondade e misericórdia divinas teriam limites e Deus não seria infinitamente bom.
13. Deus é soberanamente justo. A soberana justiça não é absolutamente inflexível, nem
leva a complacência ao ponto de deixar todas as faltas impunes; ao contrário, pondera rigorosamente o bem e o mal, recompensando um e punindo outro proporcionalmente, sem se enganar jamais na aplicação.
Se por uma falta passageira, resultante sempre da natureza imperfeita do homem e muitas vezes do meio em que vive, a alma pode ser castigada eternamente sem esperança de clemência ou de perdão, não há proporção entre a falta e o castigo — não há justiça. Reconciliando-se com Deus — arrependendo-se, e pedindo para reparar o mal praticado — o culpado deve viver para o bem, para os bons sentimentos. Mas, se o castigo é irrevogável, esta subsistência para o bem não frutifica, e um bem não considerado significa injustiça. Entre os homens, o condenado que se corrige tem a sua pena reduzida e às vezes mesmo perdoada; e, assim, haveria mais equilíbrio na justiça humana que na divina.
Se a pena é irrevogável, o arrependimento será inútil e o culpado, nada tendo a esperar de sua correção, persiste no mal, de modo que Deus não só o condena a sofrer perpetuamente, mas ainda a permanecer no mal por toda a eternidade. Nisso não há nem bondade nem Justiça.
14. Sendo em tudo infinito, Deus deve abranger o passado e o futuro; ao criar uma alma,
deve saber se ela virá a falir, muito gravemente para ser eternamente condenada. Se não souber disso, a sua sabedoria deixará de ser infinita, e Ele deixará de ser Deus. Sabendo- o, cria voluntariamente uma alma desde cedo condenada ao eterno suplício, e, nesse caso, deixa de ser bom.
Uma vez que Deus pode conferir a graça ao pecador arrependido, tirando-o do
inferno, deixam de existir penas eternas, e o juízo dos homens está revogado.
15. Conseguintemente, a doutrina das penas eternas absolutas conduz à negação, ou,
pelo menos, ao enfraquecimento de alguns atributos de Deus, sendo incompatível com a perfeição absoluta, donde resulta este dilema: Ou Deus é perfeito e não há penas eternas, ou há penas eternas e Deus não é perfeito.
16. Também se invoca a favor do dogma da eternidade das penas o seguinte argumento:
“Se a recompensa conferida aos bons é eterna, a punição aos maus também deve ser eterna. É justo proporcionar a punição à recompensa”.
Refutação: Deus criou as almas para fazê-las felizes ou desgraçadas?
Evidentemente o objetivo do Criador deve ser a felicidade da criatura, ou Ele não seria bom. Ela atinge a felicidade pelo próprio mérito e não mais o perde porque o adquiriu. O contrário seria a sua degeneração. Então, a felicidade eterna é a consequência da sua imortalidade.
Porém, antes de chegar à perfeição, tem lutas a sustentar, combates a travar com as más paixões. Não tendo sido criada perfeita, mas capaz de assim ser — a fim de que tenha o mérito de suas obras — a alma pode cair em faltas, que são consequentes à sua natural fraqueza. E se por esta fraqueza fosse eternamente punida, era caso de perguntar por que Deus não a criou mais forte?
A punição é antes uma advertência do mal já praticado, devendo ter por propósito reconduzi-la ao bom caminho. Se a pena fosse irremissível, o desejo de melhorar seria supérfluo; nem o fim da criação seria alcançado, porque haveria seres predestinados à felicidade ou à desgraça. Se uma alma se arrepende, pode regenerar-se, e podendo se regenerar, pode esperar a felicidade.
E Deus seria justo se lhe recusasse os respectivos meios?
Sendo o bem o fim supremo da Criação, a felicidade deve ser eterna, pois é o seu prêmio; e o castigo — como meio de alcançá-la — é temporário. A noção mais miúda da justiça humana prescreve que se não pode castigar perpetuamente quem se mostra desejoso de praticar o bem.
17. Um último argumento a favor das penas eternas é este:
“O temor das penas eternas é um freio; anulado este, o homem nada temeria e se entregaria a todos os abusos”.
Refutação: Esse raciocínio se justificaria caso a temporalidade das penas de fato
importasse na eliminação de toda confirmação penal.
A felicidade ou infelicidade futura é consequência rigorosa da justiça de Deus, pois a identidade de condições para o bom e para o mau seria a negação dessa justiça. Mas, em não ser eterno, nem por isso o castigo deixa de ser temeroso, e tanto maior será o temor quanto maior a convicção.
Por sua vez, esta será tanto mais profunda quanto mais racional a procedência do castigo. Uma penalidade em que se não crê não pode ser um freio, e a eternidade das penas está nesse caso.
Como já informamos, a crença nessa penalidade teve a sua utilidade, a sua razão de ser em dada época; hoje, não somente deixa de impressionar os ânimos, mas até produz descrentes.
Antes de defendê-la como necessidade, seria necessário demonstrar a sua realidade. Além disso, seria forçoso observar a sua eficácia junto àqueles que a defendem e se esforçam por demonstrá-la. E, desgraçadamente, entre esses, muitos provam pelos atos que nada temem das penas eternas.
Assim, impotente para reprimir os próprios defensores, que império poderá exercer sobre os descrentes e refratários?