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3. MITOCRÍTICA E MORTE

3.3. Arquétipo, símbolo e mitos

A noção de arquétipo, embora muito antiga, ganhou destaque ao ser abordada, com mais rigor científico, pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung, como algo inerente ao inconsciente coletivo. Segundo ele, “O arquétipo representa essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta.” (JUNG, 2000, p. 17)

Será com base na manifestação do arquétipo que serão criados os símbolos a ele correspondentes. Por exemplo, a Grande-mãe é uma ideia central que pode se manifestar em diferentes culturas em tempos distintos. Na Grécia Antiga, temos essa figura retratada por meio de deusas como Atena, pela sua característica de deusa da fertilidade do solo; Ártemis, por estar ligada aos animais como defensora deles; e Deméter por ser deusa da agricultura. De certo modo, várias divindades femininas gregas carregam o arquétipo de Grande-mãe. Assim, símbolos como a serpente estarão associados à Ártemis, já que representa a fertilidade.

Quanto à definição de símbolo, Jung traz de modo mais claro em O homem e seus símbolos (2008), o qual diz se tratar de “um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida cotidiana, embora possua conotações

especiais além do seu significado evidente e convencional.”(JUNG, 2008, p.18). Segundo Jung, o símbolo é uma manifestação do inconsciente:

uma palavra ou uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa além de seu significado manifesto. Esta palavra ou imagem tem um aspecto “inconsciente” mais amplo, que nunca é precisamente definido ou inteiramente explicado. E nem podemos ter esperanças de defini-lo ou explicá-lo. Quando a mente explora um símbolo, é conduzida a ideias que estão fora do alcance de nossa razão. (JUNG, 2008, p. 19)

Essa afirmação do estudioso de não podermos explicar o símbolo consiste no fato de não termos como comprovarmos sua existência de modo concreto limitado, já que ele existe de modo imaginativo em nossa mente e é por isso que utilizamos o símbolo quando não entendemos algo, a exemplo da criança que possui uma linguagem simbólica para falar de coisas as quais ela desconhece.

Em Os arquétipos e o inconsciente coletivo (2000), Jung fala sobre o cristianismo e as religiões chinesas e ressalta o poder do símbolo para o homem oriental que inconscientemente se sente atraído pela simbologia cristã, assim como o homem ocidental interessa-se pela simbologia chinesa, por exemplo:

Render-se ou sucumbir a estas imagens eternas é até mesmo normal. É por isso que existem tais imagens. Sua função é atrair, convencer, fascinar e subjugar. Elas são criadas a partir da matéria originária da revelação e representam a sempre primeira experiência da divindade. Por isso proporcionam ao homem o pressentimento do divino, protegendo-o ao mesmo tempo da experiência direta do divino. Graças ao labor do espírito humano através dos séculos, tais imagens foram depositadas num sistema abrangente de pensamentos ordenadores do mundo, e ao mesmo tempo são representadas por uma instituição poderosa e venerável que se expandiu, chamada Igreja. (JUNG, 2000, p. 20)

Ademais, Jung fala sobre a repetição do fato, em qualquer lugar, em qualquer época, como condição para a produção de um arquétipo, assim o que irá se diferenciar serão os símbolos. Em O mito do eterno retorno (1992), Mircea Eliade fala de um modelo exemplar, o qual não está relacionado ao inconsciente coletivo e pode ser percebido na repetição dos ciclos. Embora sejam noções um pouco diferentes, ambas defendem a tese de uma ideia central verificada em diversos lugares e em diferentes tempos. É nessa perspectiva que o mito é recuperado.

Para Eliade, em Mito e realidade (1972), a melhor definição de mito é a que está associada à ideia de uma história sagrada a qual narra como determinada sociedade ou um dado fato passou a existir. Dessa forma, o homem só é como é hoje devido ao mito:

após a cosmogonia e a criação do homem, ocorreram outros eventos, e o homem, tal qual é hoje, é o resultado direto daqueles eventos míticos, é constituído por

aqueles eventos. Ele é mortal porque algo aconteceu in illo tempore. Se esse algo não tivesse acontecido, o homem não seria mortal — teria continuado a existir indefinidamente, como as pedras; ou poderia mudar periodicamente de pele, como as serpentes, sendo capaz, portanto, de renovar sua vida, isto é, de recomeçá-la indefinidamente. Mas o mito da origem da morte conta o que aconteceu in illo tempore, e, ao relatar esse incidente, explica por que o homem é mortal. (ELIADE, 1972, p.13)

Por isso, o mito é importante na atualidade, sem contar que todo mito contém ritos que são celebrados até hoje pelo ser humano, tais como o rompimento da mãe com a filha, o casamento, a perda de um ente querido, entre outros com os quais o homem convive diariamente.

Logo, o mito relaciona-se com a poesia, pois, de acordo com Ana Maria Lisboa de Mello,

a lírica recupera os mitos através da sintaxe de imagens que guardam ressonâncias das narrativas primordiais, sem retomar, na maioria das vezes, a totalidade do argumento mítico. A lírica captura dos mitos as suas mensagens essenciais, como indagações relativas a: origem do mundo, significado do estar- no-mundo, eterno retorno de tudo e destino final do ser humano. É da sintaxe imagética que ressumam, no texto lírico, as “verdades” enunciadas pelos mitos. (MELLO, 2007, P. 16)

Assim, a poesia de Dora Ferreira da Silva resgata os mitos, inserindo-os na realidade do homem contemporâneo na medida em que essas histórias sagradas ajudam o indivíduo a pensar sobre sua condição no mundo. Ao mesmo tempo, serve para que a própria poeta possa refletir sobre seu processo criativo em poemas, como “Orfeu”, em que, em sua segunda parte, o eu lírico enuncia “Colheu a flor - o Poema - / arrancou-o à resina da vida/ e entre as páginas prendeu-o/ debatendo-se, vivo.” Numa clara referência ao personagem mítico Orfeu, famoso pela musicalidade de sua lira e pela aventura que travou com a morte.

Além disso, já estão aí implicados os ciclos de nascimento, crescimento, morte e ressurreição, pensando no percurso que Orfeu passa para resgatar sua amada e pelos quais a palavra passa antes de ser colocada na página, pois ela precisa nascer na mente do poeta, tomar forma, “crescer” junto com as outras e morrer no papel, mas essa morte não é definitiva, já que a cada nova leitura, um novo sentido renasce. Esse trabalho poético foi tema no poema “Órfica” que diz “Não me destruas, Poema,/ enquanto ergo/ a estrutura do teu corpo/ e as lápides do mundo morto.” O que representa esse embate entre criador e criatura, o qual pode ser relacionado com a morte.

A pesquisadora Enivalda Nunes Freitas e Souza faz uma análise sobre os aspectos que Jung aborda sobre a relação do inconsciente e a obra de arte e de acordo com ela:

Jung declara que os conteúdos inconscientes não permanecem inativos, são manifestos pelos sonhos e pela arte, e que esta não é apenas um produto derivado de tais e tais circunstâncias individuais, mas que se eleva “para além do efêmero do apenas pessoal” (SOUZA, 2015, 224-225)

Ao se elevar torna-se duradouro por meio da escrita, tal como será verificado pelas análises posteriores que mostram que o trabalho poético vence a morte e o esquecimento.