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4 A IDEOLOGIA DO CONSUMISMO E O PAPEL DAS EMPRESAS

4.2 MECANISMOS GERAIS DE REPRODUÇÃO DA IDEOLOGIA DO

4.2.3 Arquitetura da Escolha

Originalmente, o conceito está descrito em Nudge: Improving Decisions About

Health, Wealth, and Happiness, livro de 2007 de Richard Thaler em parceria com

Cass Sunstein. Na obra, a arquitetura da escolha é descrita, grosso modo, como o contexto dado a pessoas submetidas a determinada série de escolhas. Nesse contexto, as escolhas concedidas a quem deve tomar uma decisão não são negadas: são variadas, inclusive em oposição umas às outras. No entanto, nudges (“intervenções”, em tradução nossa) acontecem dentro daquele sistema de escolhas com a intenção de modificar o comportamento dos usuários10.

Vaidhyanathan se utiliza do conceito de arquitetura da escolha para estabelecer uma relação com a maneira pela qual empresas de dados como a Google desenham o sistema de escolhas de seus usuários para que estes optem por alternativas que, sem deixar de (em tese) serem boas para o usuário, são muito úteis para a empresa. Nesse sentido, defende Zuboff:

As práticas de entrega do capitalismo de vigilância superam qualquer discussão sensata sobre "optar por entrar" e "optar por sair". Não há mais folhas de figueira11. Os eufemismos do consentimento não podem mais desviar a atenção dos fatos: sob o capitalismo de vigilância, a entrega é tipicamente não autorizada, unilateral, gulosa, secreta e descarada. (ZUBOFF, 2019 p. 229-230, tradução nossa).

É, portanto, uma falsa sensação de liberdade, e um exemplo claro é a falta de facilidade para um usuário dos serviços da Google modificar suas configurações de entrega de dados. Por padrão, para que se possa mitigar a entrega de informações pessoais, o usuário Google tem que entrar nas configurações de sua Conta Google e, selecionando abas e opções ali escondidas, modificar os padrões de entrega de dados. Por exemplo, o normal é que todos os usuários que possuem uma Conta Google automaticamente já estejam entregando à empresa seu “histórico de

10 “Uma intervenção, como será usado o termo, é qualquer aspecto da arquitetura de escolha que altera o comportamento das pessoas de maneira previsível, sem proibir nenhuma opção ou alterar significativamente seus incentivos econômicos” (SUNSTEIN; THALER, 2008, p. 6, tradução nossa) 11 Metáfora para indicar o encobrimento de uma situação constrangedora.

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localização” completo12, sua “atividade na web e de apps” e seu histórico do

YouTube”. Naturalmente, a empresa usa esse enorme estoque de dados privados13

(alimentado diariamente) para vender anúncios cada vez mais qualificados, induzindo uma expansão do consumo e aumentando seus lucros.

Está claro que a Google entende o poder da arquitetura de escolha. É do interesse da empresa definir todos os padrões de preferência do usuário para coletar a maior quantidade de dados utilizáveis na maioria dos contextos. Por padrão, a Google coloca um cookie no navegador da web para ajudar o serviço a lembrar quem você é e o que pesquisou. Por padrão, a Google rastreia suas pesquisas e cliques; ele retém esses dados por um período especificado e os usa para direcionar anúncios e refinar os resultados de pesquisa. A Google nos dá o poder de desativar todos esses recursos. Ele também fornece vídeos explicando como fazer isso. Mas, a menos que você os altere, as configurações padrão da empresa constituem suas escolhas. (VAIDHYANATHAN, 2011, p. 88-89, tradução e grifo nossos).

Vaidhyanathan trata especificamente da Google em seu livro, mas as demais empresas de dados também se utilizam da arquitetura da escolha. O “Facebook geralmente tem acesso total a dados demográficos diretos sobre nós, como onde moramos, trabalhamos, nos divertimos, quantos amigos temos, o que fazemos em nosso tempo livre e nos filmes em particular, livros e músicos que gostamos” (MARR, 2016, p. 70, tradução nossa). O Facebook é quase tão gigante, na internet, quanto a Google. E, da mesma maneira que com a Google, os bilhões de usuários da rede social também têm a opção de negar alguns acessos ao Facebook - no entanto, tal como com a Google, é necessário algum conhecimento e bastante interesse em fazê-lo14. Por exemplo, um repórter do site Vice fez o download dos

dados que o Facebook detinha sobre ele. E, em consequência disso, constatou que a empresa, por um padrão preestabelecido, detinha informações que ele jamais imaginava:

[...] informações como os dados brutos do seu rosto vem junto nesse pacotão. Pode parecer meio bizarro, mas sabe aquela opção aparentemente inofensiva que permite que o Facebook reconheça e tagueie você nas fotos dos outros? Os dados brutos estão aí e podem ser usados

12 Considerando que uma enorme parcela da população mundial utiliza celular; que dentro dessa grande parcela grande parte usa o sistema operacional Android; e que poucos utilizam seus celulares com a função de GPS desabilitada; a Google tem acesso, literalmente, a todos os passos de uma grande parcela da população mundial.

13 Na próxima seção, são descritos mecanismos mais específicos através dos quais as empresas de dados conseguem vender em grande escala seus anúncios e, em consequência, reproduzir a ideologia do consumismo.

14 Além disso, os dados coletados até a negação de acesso permanecem de posse da empresa (MARCHETTI, 2018)

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por ele no futuro. (MARCHETTI, 2018)

A Amazon também se beneficia do mecanismo. A empresa usa um “mecanismo de recomendação” para alcançar mais e mais clientes através da “filtragem colaborativa” (MARR, 2016). Tal mecanismo é alimentado com dados oriundos da navegação no site da Amazon, por exemplo, o que é o padrão da internet e do mercado de dados, como visto, e não constituiria por si só um exemplo de arquitetura da escolha, dado que, no caso da navegação no site, não é dada ao usuário a possibilidade de escolher quais dados ele quer entregar ou não. Porém, é fato que a Amazon paga trabalhadores humanos15 para escutar as conversas dos

usuários próximas a sua assistente do lar Alexa e que a configuração padrão do serviço, nos termos de privacidade, é a de permitir a gravação e coleta desses áudios (DAY et al., 2019), configurando-se essa em uma prática típica de arquitetura da escolha.

Já as brokers, como empresas que agem com menos exposição pública, coletando dados da navegação em geral, se beneficiam da estrutura de “políticas de privacidade” e de “uso de cookies” adotadas por padrão em toda a internet. Em alguns sites, se o usuário tiver interesse, é possível abrir opções acerca da entrega de dados e/ou do uso de cookies e negar, ao menos, alguns acessos. Mas, por padrão, a entrega de dados é repleta, e as brokers então se beneficiam desse rastreamento para formar perfis mais diretos de usuários e, posteriormente, vendê- los a empresas interessadas. O sistema já está arquitetado para privilegiar as transnacionais com a entrega da moeda mais valiosa para elas. Além disso, as políticas de privacidade que acabamos aceitando por funcionalidade tendem a ser bastante permissivas, o que facilita o trabalho das brokers.

A naturalização característica da ideologia do consumismo aqui é bastante evidente. O usuário, posto que acostumado com a prática, não vê problema no fato de que, por padrão, ele está entregando seus dados pessoais para que uma empresa os use com a intenção de atingi-lo com anúncios, ferramenta discursiva clássica de tal ideologia. A sensação de liberdade gerada pela possibilidade de escolha sobre entregar informações ou não faz com que o usuário acabe presumindo que a empresa, seja qual for, é bem-intencionada, dado que abre a ele a opção de negar. Além disso, outro aspecto da naturalização da ideologia do

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consumismo é que o usuário, mesmo que ciente da possibilidade de recusar a entrega de dados, pode aceitar entregá-los para receber anúncios mais personalizados, aceitando a indução ao consumo.