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Arquitetura: teoria, crítica e reconhecimento

No documento Preexistência, patrimônio e projeto (páginas 94-161)

Não há, portanto, nem uma arquitetura pura cuja unidade, simplicidade e constância substancial poderiam ser tocadas pela empiria imediata, nem um pensamento impermeável às determinações novas advindas da experiência. Em cada interface, a arquitetura revela uma de suas faces. Seu Ser não se fixa e o teórico que se propõe a dar conta dele se vê logo numa contextura de relações que se multiplicam. Cumpre-lhe deter-se em algumas delas e assenhorar-se de como a arquitetura ali se decanta, sabendo que em outros compostos e contextos ela poderá se apresentar de forma diversa.

Carlos Antonio Leite Brandão

Talvez o pensamento arquitetônico não exista. Jacques Derrida

A gênese da arquitetura

Apoiado na análise etimológica do termo arquitetura, Masiero (2003,p.36) conclui que ela é a arte de ordenar e dar forma à terra que o homem habita, uma técnica de construir coisas na trajetória histórica da “passagem do necessário ao supérfluo”, percurso no qual Deleuze e Guattari (1992,p.247) reconhecem duas instâncias de criação humana: o “plano de composição técnica” e “plano de composição estética”. Toda realização arquitetônica é caracterizada pela rebeldia, é “um ato de coragem contra Deus” (CABRAL FILHO,2005,p.70-71), o orgulho de afirmar a capacidade humana de subverter os desígnios da natureza em benefício próprio. É ação intencional, realiza-se na sua concretude, e opera na regulação das relações entre o homem e as contingências físicas e culturais (sociais, econômicas e políticas), construindo um ambiente protegido das adversidades para proporcionar condições favoráveis à realização de atividades. É o meio “onde as relações sociais se tornam possíveis, se “espacializam”, e que se revela ao interagir com os seus usuários (MALARD,2006,p.13).

A arquitetura é um dos mais amplos e contundentes fatos culturais presentes em todas as civilizações: organiza espacialidades, transforma temporalidades, transmuta natureza em cultura, terra de ninguém em mundo de possibilidades. Por ser realização humana de realçadas dimensões materiais, complexidade espacial e dinamismo funcional, é uma arte predisposta à utilização coletiva

(BENJAMIN,1998,p.231), na criação, na realização construtiva, na fruição como objeto real, construído.

A matriz da arquitetura é a casa, o habitar; o ser humano separa-se do exterior despersonalizado, delimita uma geografia qualificada em moradia e cria uma territorialidade interior que lhe é própria e única. Ressemantiza o espaço preexistente, instaura o lugar da privacidade, da identidade e ambiência, e passa a controlar as interações com o resto do mundo a partir do espaço arquitetural das expectativas realizadas. O interior é proteção, conforto, adequação, funcionalidade e plasticidade, enquanto que o exterior é representação e afirmação identitária. Desde as origens a arquitetura é de lenta e extensa elaboração material, estrutural e compositiva, os edifícios eram erguidos para sobreviver aos seus construtores, para assinalar às futuras gerações os feitos do passado, para garantir a percepção e a continuidade das tradições. Não havia a consciência do tempo cronológico moderno apoiado nas noções de passado, presente e futuro; percebido como único e uniforme, o tempo era circular e contínuo, e o fazer arquitetônico era aberto e dinâmico, um “exercício de formatividade” que, segundo Pareyson, caracteriza o fazer que é, concomitantemente, “invenção do modo de fazer” (1997,p.31).

As edificações abriam-se às possibilidades do dia a dia no canteiro, advindas das contribuições dos mestres e operários e da incorporação seletiva dos acasos, acolhiam mudanças introduzidas de maneira quase imperceptível, na plasticidade, espacialidade e funcionalidade, e nos contextos que integravam. Não havia diferença entre ser edifício e estar em construção, a história era a própria realização cotidiana e o fazer-se era contemporâneo à existência. Um tipo de situação que remete a uma evocação memorialística de Saramago (2006,p.124):

Naquelas épocas e naqueles lugares, o que parecia, era, e o que era, parecia.

No percurso de vir a ser a arquitetura carrega o duplo comprometimento: a instauração de lugares com atmosfera acolhedora e escala humana, e a criação de um marco referencial para o entorno. Ao ocupar o espaço e criar um lugar, “permite a identificação, não só dos sujeitos, como também dos espaços; converte em determinado (reconhecível) ao indeterminado, em distinto o indistinto da natureza” (MASIERO,2003,p.25). O que leva Derrida (1989,p.115) a comentar:

A questão da arquitetura é de fato o problema do lugar, de ter lugar no espaço. O estabelecimento de um lugar que até então não havia existido e que está de acordo com o que sucederá ali um dia: isso é um lugar.

As atividades vinculadas à competência arquitetônica são atualizadoras de paisagens, e abarcam as maneiras de propor o espaço nas várias dimensões e graus de complexidade. Em sentido amplo o espaço arquitetônico é o produzido por agentes sociais para atender a objetivos conscientes e intencionais, e o seu universo extrapola os lugares construídos a partir de projetos realizados por profissionais legalmente qualificados. Num enfoque mais restrito, as obras de arquitetura são os exemplos excepcionais e extraordinários nos quais se reconhece o valor de obra de arte.

Como categoria independente, a noção de espaço arquitetônico e a definição da arquitetura como a arte do espaço, data de 1894, foi formulada por August Schmarsow, esteta e historiador alemão (COLQUHOUN,2004,p.211), e já está presente em Rodin (2002,p.161) quando trata da beleza não apreciada do que ele denomina “ar”, a profundidade do espaço na paisagem e na arquitetura. Essa entidade não absorvida conscientemente, foi reconhecida com a apreensão analítico-descritiva, de viés eminentemente fenomenológico e psicológico, da “definição das artes através da sua relação com os sentidos” (MASIERO,2003,p.16). Após essa “descoberta” o espaço passou a ser percebido como

uma entidade positiva dentro da qual as categorias tradicionais de forma tectônica e superfície ocorriam. A partir de então, os arquitetos pensariam o espaço como algo preexistente e ilimitado, conferindo um novo valor às idéias de continuidade, transparência e indeterminação (COLQUHOUN,2004,p.211).

Elementos da paisagem construída, as edificações são configurações da

forma/matéria perceptível que é permanentemente alterada pelo tempo; já o espaço arquitetônico resulta da utilização da edificação, e é a forma/função que se altera

pelos usos que lhe são atribuídos (CHAGAS,2002,p.155).55

Conforme Brandão (1999), a arquitetura “não é apenas edificação, mas, sobretudo, edificante e constitutiva dos nossos hábitos, dos nossos olhos, de nossos valores“, e deve ser pensada menos como uma questão de espaço e “a partir da questão do tempo”, considerando-se que “além de nos fazer habitar o espaço, a Arquitetura, enquanto arché, nos convida a habitar o tempo”:

55 É necessário diferenciar conceitualmente o uso, a atribuição funcional de uma edificação, da utilização, a maneira como ocorre a sua apropriação pelos usuários.

A arquitetura egípcia ou a de L. Kahn, por exemplo, nos fazem habitar a eternidade, a arquitetura grega nos faz habitar o tempo das origens, o medievo nos faz habitar um tempo místico, o modernismo nos insere no presente, o renascimento retoma o passado para apontá-lo para o futuro, Emilio Ambasz e Tadao Ando ambicionam um sem-tempo, um certo pós- modernismo se imiscui num passado desistoricizado, o construtivismo soviético instaura o tempo futuro e o deconstrucionismo contemporâneo trabalha este futuro na sua fronteira com a utopia e com uma nostálgica melancolia (BRANDÃO,1999).

As obras de arquitetura são fruto do contexto no qual – e para o qual – foram concebidas; mesmo as que aparentemente se opõem a uma contextualização a estão reconhecendo, acatando-a respeitosamente ou enfrentando-a de maneira acintosa. Embora as ações alteradoras da configuração da paisagem – natural ou construída –, sejam mais comentadas e discutidas, existem os contextos históricos, culturais, econômicos, políticos e financeiros e os mais afeitos ao caráter artístico, conceitual e tecnológico da arquitetura.

Arquitetura, linguagem e representação

Nenhuma outra arte emprega uma forma mais fria e mais abstrata, entretanto, nenhuma outra arte está tão intimamente ligada à vida cotidiana do homem, do berço à sepultura.

Sven Rasmussen

Os indivíduos mais poderosos sempre inspiraram os arquitetos; o arquiteto sempre esteve sob a sugestão do poder. Na construção devem tornar-se visíveis o orgulho, o triunfo sobre a gravidade, a vontade de poder; arquitetura é uma espécie de eloqüência do poder em formas, ora persuadindo, até mesmo lisonjeado, ora simplesmente ordenando. Friedrich Nietzsche

A arquitetura imortaliza e glorifica algo. Por conseguinte, onde não há nada para glorificar, não pode haver arquitetura.

Ludwig Wittgenstein

De todas as artes, a arquitetura é aquela que tem a história mais longa e a que “jamais conheceu paralisações” (BENJAMIN,1998,p.237), e é uma forma de representação, tal qual a língua e a escrita. Como produto da organização social toda edificação, ou lugar, é dotada de caráter simbólico56, e adquire o status monumental pelo reconhecimento do valor. É artefato sígnico capaz de traduzir materialmente a imaterialidade encarnada do poder religioso, político e econômico, e o seu potencial representacional é documentado na gênese do próprio alfabeto. No texto Da casa do homem a Deus57, Vitor Hugo recorda que a idéia do abrigo primeiro já está contida na primeira letra do alfabeto latino – a letra A – que

56 Estabelecido pelo reconhecimento de algo por uma determinada comunidade.

representa, de forma sintética e simbólica, “o telhado, a empena, com sua trave, o arco” da casa do homem; e é ele que vai denominar livros de pedra as catedrais góticas. A percepção precursora de Hugo com relação ao monumento isolado é redimensionada por Barthes (2001,p.221) ao definir a cidade “como uma escrita, como uma inscrição do homem no espaço”, questão que será tratada mais adiante neste capítulo.

É a primeira das tecnologias de recordação, inventada pelos seres humanos como uma escritura para preservar a memória dos lugares, dos feitos e das realizações, mediar as relações sociais e representar a identidade e a história coletiva das comunidades58. Ruskin (2000,p.179) realça o caráter indispensável da arquitetura como instrumento de memória, quando conclui que “podemos viver sem ela, mas não podemos sem ela recordar”. Veículo de sua própria comunicação, sintetiza as necessidades culturais da humanidade nos seus valores materiais e simbólicos como instrumento de afirmação de estratégias de poder e de apoio à construção de discursos políticos e ideológicos59:

um instrumento técnico e cognitivo tão abstrato quanto a matemática, uma ferramenta para pensar tanto quanto uma tecnologia para abrigar, um aparato simbólico que vai fornecer as metáforas estruturantes para a natureza e o cosmo (CABRAL FILHO,2005,p.72).

Essa herança concreta dos feitos humanos no tempo e no espaço, configura o cenário para que se desvele o acontecimento da existência humana no exercício dos saberes e fazeres, da realização das tradições, da efetivação do tirocínio político. Em suma: o conjunto das práticas que inoculam nos espaços as qualidades imateriais que os transformam em lugares plenos de significados e que os tornam repositórios de identidades, relicários de lembranças privilegiadas, agindo tal qual espelhos, nos quais ao se mirar, se reconhece.

Ficção, representação e racionalidade

A sucessão de estilos e de períodos, conhecida por qualquer neófito – clássico, românico, gótico, renascentista, maneirista, barroco, rococó, neoclássico e romântico – nada mais é que uma série de máscaras para duas categorias: o clássico e o não clássico.

E. H. Gombrich

58 A hegemonia original da arquitetura, como sistema de representação anterior à ocorrência da linguagem escrita, em documentar e preservar narrativas simbólicas, foi sendo paulatinamente superada à medida que novas tecnologias mnemônicas foram inventadas e se tornavam disponíveis: a escrita, a imprensa, a fotografia, o cinema, a memória digital e, mais recentemente, a memória portátil e imediata das câmeras digitais e dos gravadores dos aparelhos de telefonia móvel. 59 A arquitetura moderna de tendência racional-funcionalista foi incorporada pelos paises periféricos menos desenvolvidos, como uma prova cabal e concreta da sua inserção na cena política internacional, como partícipe de um processo de modernização industrial desejado. O caso brasileiro será abordado na Parte Dois.

Partindo de uma concepção do clássico distinta da de Gombrich, Eisenman (2006b,p.233) avalia que, desde o século XV, a arquitetura está submetida às “três ficções” da representação, da razão e da história:

Havia, atrás de cada uma das ficções, um propósito subjacente: a representação servia para incorporar a idéia de significado; a razão para codificar a idéia de verdade; a história para recuperar a idéia do eterno a partir do conceito da mudança. A persistência de tais categorias torna necessária a consideração desse período como marcado pela continuidade no pensamento arquitetônico. Pode-se referir a este quadro contínuo de pensamento como o clássico.

Se inicialmente as referências da produção arquitetônica eram retiradas da natureza e da religiosidade mitológica, o retorno renascentista às origens clássicas ocorreu como resultado da “aspiração por uma fonte racional para o desenho” (EISENMAN,2006b,p.234). Até então era impossível dissociar, em um mesmo fato arquitetônico, linguagem de representação, já que esta ocorria naquela, e “as coisas existiam; a verdade e o significado eram evidentes em si mesmos”. A forma arquitetural era mensagem em si mesma, e não meio de propagação; não atuava como suporte de significados “aderentes” que não lhe fossem intrínsecos.

A partir do Renascimento a trajetória da arquitetura reinventa o paradigma clássico dos conceitos metafísicos de Verdade, Bem e Belo, apropriando-se do repertório de elementos compositivos da antiguidade alheios à sua própria condição. A primeira ficção da arquitetura pós-medieval foi a representação histórica, “uma simulação do significado do presente através da mensagem da antiguidade” (EISENMAN,2006b,p.239). Para avalizar os seus predicados, os edifícios renascentistas estribaram-se na tradição histórica do sistema de representação da antiguidade greco-romana, tido como verdadeiro e eterno, porque clássico. Por serem representações das representações da gramática60 da linguagem clássica, tornam-se verdadeiros simulacros da tradição, o que é registrado por Eisenman (2006b,p.234) ao comentar que “a arquitetura da Renascença constituiu a primeira simulação, uma ficção involuntária do objeto”, para atender às necessidades de reconhecimento e confirmação.

Entre o final do Renascimento e inícios do século XIX, a ciência moderna emergente dá início à noção de verdade histórica, apoiada exclusivamente no processo

histórico, concebida como narrativa externa à arquitetura. Efetiva, assim, a

60 Gramática entendida como “a organização articulada de uma percepção, uma reflexão ou uma experiência” (STEINER,2003,p.14).

dissociação entre linguagem e representação, “porque o que era exibido no objeto não era o significado mas uma mensagem” (EISENMAN,2006b,p.235).

A arquitetura do Iluminismo rejeita o comprometimento cosmológico da composição renascentista, e adota a postura secularizada das possibilidades de aplicação do domínio racional em substituição à crença medieval no conhecimento empírico e na Providência Divina, como responsável pelos erros e acertos da criação e da construção de edificações. É com Durand61 que as ordens da antiguidade são substituídas pela racionalidade técnica e funcional do repertório de formas tipológicas, e passa-se a acreditar que as regras e procedimentos dedutivos da razão científica teriam a capacidade de conduzir à criação de um objeto arquitetônico62 (SARGIOTTI,1999). A partir de então, os processos projetuais calcados na metafísica, na mística, na numerologia e na geometria deram lugar aos procedimentos funcionais e técnicos que ainda prevalecem.

Aberta à criação de ficções, a arquitetura, entendida como texto, como escritura, é ficção, é poesia materializada na história. As possibilidades das plasticidades, espacialidades e ambiências combinadas permitem ao usuário a vivência de sensações que integram a concretude da obra. Em vista disso, e ironizando o bordão modernista, Tschumi (1996) defende que a forma surge da ficção63 e a obra de arquitetura é ficção concretizada em forma edificada. Ficção que não deve admitir qualquer representação alheia a si própria, pois utilizada como suporte de uma mensagem a ela aposta, atuaria como um caligrama, cuja potência representacional do seu elemento plástico, esvanece quando dele se apreende o sentido do elemento gráfico da palavra nele inscrita. Deve aproximar-se da ilimitada possibilidade criativa da poesia, para se elevar ao patamar de arte que exprime materialmente a sua

61 Jean-Nicolas Louis Durand (1760-1834) arquiteto, professor e tratadista francês, autor de Précis des leçons d’architecture (1802-1805), defendia a padronização e a sistematização conceitual do fazer arquitetônico.

62 No extremo oposto, mas sob o fulgor da mesma racionalidade iluminista obcecada pelo despojamento formal liberto da superficialidade estilística do século XVIII, Giovanbattista Piranesi inventa arquiteturas fantásticas e paradigmáticas (FICACCI,2006), evocadoras de um sentimento de antiguidade ancestral, constituindo uma obra ímpar e inigualável, cuja razão e fonte única são as preexistências de toda ordem, tanto aquelas materiais como as memórias, os relatos e os registros dos tempos pretéritos e irretornáveis (SARGIOTTI,1999).

63 A frase original é Form follows Fiction, uma irônica declaração que se reporta, e se antepõe, à emblemática afirmativa cunhada por Louis Sullivan Form follows function apropriada como lema pelos funcionalistas. Para maiores detalhes ver Kindergarten Chats and other writings (SULLIVAN,1979).

soberana autonomia, e como um poema, não se preocupe em significar, mas em

ser64.

Eisenman (2006b) e Tschumi (1996) defendem o espaço próprio da arquitetura e reconhecem a soberania da criação arquitetural com uma estética específica aos espaços construídos, divorciada das injunções e comprometimentos alheios à subjetividade do seu autor65. Uma arquitetura que se aproxime da definição de Piano (2005,p.30), de “arte da contaminação” situada na fronteira “entre o feio e o belo”, que é “reflexo do tempo”, e que combine a vontade de forma expressa na idéia original (conceito), na competência do saber-fazer do artista e no que a matéria sugere. Ou seja: o desejo mediado pelo saber atuando na reorganização da matéria.

Domínio e reconhecimento

Para mim é importante construir edifícios que as pessoas vejam e digam: “Este não é apenas um edifício”.

Peter Eisenman

Deleuze e Guattari (1992,p.125-126) utilizam a noção de geo-filosofia para justificar o desenvolvimento da filosofia da antiguidade na Grécia e não na China; e na Alemanha, e não na Itália ou Espanha, na época moderna. Para ele haveria uma espécie de contribuição geográfica a condicionar, e favorecer, o surgimento de certas coisas em detrimento de outras, raciocínio que conduz analogicamente a perceber a arquitetura vernacular como geo-arquitetura.

Entendida a cidade como escrita das sociedades no território, a decifração do texto urbanístico permite inferir que nele existem tanto elementos “sacralizados”, cristalizados nos monumentos reconhecidos, como outras representações da “massa de documentos desconhecidos, que constitui o discurso efetivo de uma ação política”, conforme a avaliação de Foucault acerca da importância de utilizar fontes documentais desprezadas, que caracterizam “uma estratégia absolutamente consciente, organizada, refletida” (POL-DROIT,2006,p.52). Embora não sejam valorizados, esses elementos configuram representações em si próprios e nos arranjos espaciais que conformam.

64 Referência ao verso do poema Ars Poetica do poeta e escritor modernista americano Archibald MacLeish (1892-1982) citado em Atwood (2004,p.144): Um poema não deve significar, mas ser.

65 Essa liberdade criativa, essa desvinculação da obrigação de se reportar a algo que não a si própria, enfim, toda a argumentação que Eisenman utiliza e reivindica para a arquitetura, já era transformada em ato, na prática encetada por Oscar Niemeyer, desde o Pavilhão do Brasil da Feira Internacional de Nova York de 1938.

Ainda que possuam a intenção de representar individualidades ou comunidades que os ergueram, vários textos urbanísticos são triviais e comuns, como é o caso da arquitetura vernacular66, erguida por realizadores anônimos, sem qualificação técnica específica, que utiliza a linguagem não verbal para expressar a experiência sedimentada das sociedades humanas, e atender às necessidades concretas e subjetivas das coletividades. Nela, o projeto é concomitante à realização no canteiro, e a depender das ocorrências naturais, aplica tecnologias tradicionais que resultam do saber acumulado por gerações, apropria materiais locais naturais ou pouco beneficiados, e a mão-de-obra está comprometida com a utilização da edificação. Nesse âmbito a preexistência é um manancial de potencialidades, e não uma restrição operacional subjetiva e limitadora à intervenção que responde às demandas da sobrevivência. Pelo alto grau de adequação e respeito às condicionantes do sítio e do entorno – materiais, climatização, implantação, orientação –, essa produção arquitetônica tornou-se objeto de variadas pesquisas cujo objetivo é avaliar as possibilidades sustentáveis de integração do ambiente construído com o ambiente natural.

O vernacular foi valorizado em reação à proliferação no pós-Segunda Guerra Mundial da “mesmice homogeneizadora, asséptica e abstrata do racionalismo funcionalista do international style” (CHAGAS,2002,p.68), como modelo para a produção arquitetônica que abraçou o viés projetual crítico alternativo impregnado de plasticidades referenciadas na produção popular.67

Para passar a integrar o universo das obras reconhecidas, a arquitetura, tal como as demais artes, está submetida ao julgamento valorativo da história, da teoria, da crítica, do ensino e dos projetos e ao acolhimento do saber comum. Essas visões diversas questionam a existência autônoma do fenômeno arquitetônico como especificidade artística que combina qualidade estética, eficiência técnica, eficácia

funcional e conforto adequado.

Wittgenstein (2000,p.68) articula uma analogia entre o gesto contido no movimento

No documento Preexistência, patrimônio e projeto (páginas 94-161)