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Para Scarpa, Coleção de areia é “um livro de descrições que não se deixa descrever; é um livro apinhado, assimétrico, lotado de coisas, e, portanto, translúcido e impalpável, sem pontos de apoio ou instruções de usos”.121

Essa definição o aproxima mais de um caixão de lixo, em que as coisas permanecem desordenadas. Contudo, o crítico, parágrafos antes, sugere que esse livro é “o mais desordenado elogio da ordem que Calvino concebeu”.122

É um caixão de lixo a que se pretendeu dar uma ordem. Nascido, sobretudo, dos jornais, espaço por excelência da transitoriedade da informação e da notícia, o livro concede aos textos ali reunidos um caráter de arquivo, como se eles não tivessem outro lugar senão uma coleção de areia. Uma ordem que se dá a partir da desordem, que tem origem na desordem.

Foucault, em Arqueologia do saber, particularmente no capítulo em que trata da relação entre o a priori histórico e o arquivo, argumenta:

o arquivo é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo regularidades específicas; ele é o que faz com que não recuem no mesmo ritmo que o tempo, mas que as que brilham muito forte como estrelas próximas venham até nós, na verdade de muito longe, quando outras contemporâneas já estão extremamente pálidas.123

Para o filósofo, o arquivo não é o conjunto conservado de documentos do passado de uma determinada cultura e que representa sua identidade, tampouco as instituições que registram os discursos que consideram merecedores de lembrança, mas um sistema de discursos que surgem a partir de um jogo de múltiplas relações e que “rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”.124 É a singularidade que o alimenta, aliás o arquivo é ele próprio um gerador de singularidades; está entre a tradição e o esquecimento e, nesse interstício, possibilita que os enunciados perdurem e se modifiquem regularmente. O arquivo, portanto, não pode ser descrito em sua

121

SCARPA. Italo Calvino, p. 91.

122

SCARPA. Italo Calvino, p. 90.

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FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 147.

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totalidade, “dá-se por fragmentos, regiões e níveis, melhor, sem dúvida, e com mais clareza na medida em que o tempo dele nos separa [...]”.125

É no âmbito dessa discussão que o livro de Calvino é tomado, também, como arquivo, cujos textos são fragmentos, figuras distintas, que se agrupam a partir de múltiplas relações e não de um mero acúmulo; não se constitui uma “massa amorfa”, apesar de sua heterogeneidade. Em Seis propostas para o próximo milênio, no texto que defende a rapidez como um valor a ser preservado no próximo milênio, o escritor afirmaria:

numa época em que outros media triunfam, dotados de uma velocidade espantosa e de um raio de ação extremamente extenso, arriscando reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando mas antes exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita.126

A escrita e o livro constituiriam, nesse sentido, loci da prática arquivista, já que promove aquela comunhão, aquela relação múltipla de figuras distintas, como ressaltou Foucault. Em Coleção de areia, essa prática é tomada como um processo criativo, que surge a partir da tentativa de recolher o disperso e conjugar o distinto.

Além de caracterizar o seu processo criativo, não só em Coleção de areia, mas também nos outros livros que apresentam uma estrutura cumulativa, como se observou no capítulo primeiro, Calvino também escreveu narrativas que têm como tema a problemática do arquivo e da memória, a exemplo de “A memória do mundo”, que saiu primeiramente em Il giorno, em 1967, e depois em um dos volumes de coletâneas das histórias cosmicômicas, La memoria del mondo e altre storie cosmicomiche, em 1968.127 O conto é narrado em primeira pessoa, pelo ex-diretor de uma organização misteriosa que prepara, há anos, uma espécie de arquivo universal:

o maior centro de documentação já projetado, um fichário que reúne e ordena tudo o que se sabe sobre cada pessoa e animal e coisa, tendo em vista um inventário geral não só do presente, como também do passado, de tudo o que houve desde as origens, enfim, uma história geral de tudo ao mesmo tempo, ou melhor, um catálogo de tudo, instante por instante.128

125

FOUCAULT. A arqueologia do saber, p. 148.

126

CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 58-59.

127

Nas edições traduzidas no Brasil, o conto pode ser lido em Um general na biblioteca e Todas as cosmicômicas, traduções dos originais em italiano Prima che tu dica ‘Pronto’, de 1993, e Tutte le cosmicomiche, de 1997.

128

O narrador se dirige, durante todo o conto, como em uma conversa, àquele que supostamente seria seu sucessor na direção dessa organização e, a princípio, descreve tudo o que já se encontra documentado e os objetivos do trabalho:

não só os conteúdos das mais importantes bibliotecas do mundo, dos arquivos e dos museus, das edições dos jornais de todos os países já está em nossas fichas perfuradas, como também uma documentação coletada ad hoc, pessoa por pessoa, lugar por lugar. E todo esse material passa através de um processo de redução ao essencial, condensação, miniaturização, que ainda não sabemos em que ponto vai parar; assim como todas as imagens existentes e possíveis são arquivadas em minúsculas bobinas de microfilmes, microscópicos carretéis de fio magnético guardam todos os sons gravados e graváveis. É uma memória centralizada do gênero humano, é isso que estamos empenhados em construir, procurando armazená-la em um espaço o mais reduzido possível, como a memória individual do nosso cérebro.129

Todo esse arquivo universal, que se pretende exaustivo, segundo informa o narrador, é realizado pensando no fim da vida na Terra, para que tudo o que se produziu até o momento se transmita aos outros que virão. Nessa memória arquivada, nada pode ficar de fora, “porque o que fica de fora é como se nunca tivesse existido”.130

Essa a tarefa que cabe ao diretor da organização: impedir que nada fique fora dos registros. Contudo, o narrador acaba confessando ao seu interlocutor que essa prerrogativa é relativa: as informações desnecessárias, que poderiam perturbar as mais essenciais, mais importantes, não deveriam ser catalogadas, ou seja, o arquivo universal que se propõe a catalogar tudo é apenas uma seleção de dados que se supõem de “qualidade”, que merecem ser memorizados e conservados para o futuro.

O diretor da organização, em sua dúvida do que é ou não importante enquanto informação, acaba por registrar “bocejos, furúnculos, associações de ideias inconvenientes, assobios continuados e escondê-los no pacote de informações mais qualificadas”.131 E, como para se justificar, pergunta: “Quem pode afirmar que o universo não consiste na rede descontínua dos átimos não registráveis, e que nossa organização só controla o molde negativo, a moldura de vazio e insignificância?”132

Um arquivo que catalogasse apenas as informações tidas como importantes seria um arquivo distante da verdade e, por isso, além de bocejos e furúnculos, ele chegou a catalogar também “juízos, reticências, até mentiras”.133

Uma dessas mentiras registradas, como o

129

CALVINO. Todas as cosmicômicas, p. 332-333.

130

CALVINO. Todas as cosmicômicas, p. 334.

131

CALVINO. Todas as cosmicômicas, p. 335.

132

CALVINO. Todas as cosmicômicas, p. 335.

133

leitor saberá, é sobre sua própria vida: registrou-a como gostaria que fosse, ele o esposo mais invejável que já existiu e sua mulher, Angela, a esposa mais fiel:

De início, tudo o que eu tinha a fazer era enfeitar os dados que a nossa vida diária nos fornecia. A certa altura esses dados que encontrava sob meus olhos ao observar Angela dia após dia (e depois ao espiá-la, ao segui-la, no final) começaram a se tornar cada vez mais contraditórios, ambíguos, a ponto de justificar suspeitas difamantes. O que eu poderia fazer, Müller? Confundir, tornar ininteligível aquela imagem de Angela tão clara e transmissível, tão amada e amável, ofuscar a mensagem mais esplendorosa de todos os nossos fichários? Eliminava esses dados dia após dia, sem hesitar. Mas sempre tinha medo de que em torno da imagem definitiva de Angela ficasse algum indício, algum subentendido, um rastro do qual se pudesse deduzir o que ela – o que a Angela da vida efêmera – era e fazia. Eu passava os dias no laboratório, selecionando, apagando, omitido. Estava com ciúmes, Müller; não com ciúmes da Angela efêmera – aquela já era para mim uma partida perdida –, mas com ciúmes daquela Angela-informação que sobreviveria por toda a duração do universo.134

Com a intenção de registrar uma imagem imaculada de sua mulher, o ex-diretor corrompe os dados verdadeiros, catalogando, então, apenas mentiras. O arquivo destinado a registrar absolutamente tudo se degenera e acaba se transformando em uma máquina insidiosa que adultera e violenta não somente a informação ali contida, mas também aqueles que a registram: o narrador-personagem se transforma em um assassino e, Müller, vítima de suas perseguições, é morto exatamente no momento em que seria nomeado diretor da organização. Para que os dados perfeitos, mas mentirosos, da Angela-informação não fossem corrompidos pelos da Angela viva, o narrador a mata, assim como mata seus amantes, inclusive Müller:

Se na memória do mundo não há nada a corrigir, só o que resta a fazer é corrigir a realidade naqueles pontos em que ela não combina com a memória do mundo. Assim como apaguei das fichas perfuradas a existência do amante da minha mulher, tenho de apagá-la do mundo das pessoas vivas. È por isso que agora puxo a pistola, aponto-a contra o senhor, Müller, aperto o gatilho, mato-o.135

O conto de Calvino, que se desenvolve entre o crime e o arquivo, retoma, de forma crítica, a ambição de recolher e arquivar o conhecimento do universo, ambição que remonta às antigas enciclopédias e que foi problematizada pela literatura, por exemplo, em Bouvard e Pécuchet, como já se observou, e no conto “A biblioteca de Babel”, de Borges, em que o universo é um imenso arquivo de livros, uma imensa

134

CALVINO. Todas as cosmicômicas, p. 337.

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biblioteca cuja suposta perfeição (“quando se proclamou que a biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade”) esconde uma prisão infinita (“à desmedida esperança, sucedeu, como natural, uma depressão excessiva)”.136

O arquivo que a organização imaginária de Calvino pretende organizar corresponderia, hoje, à World Wide Web, que, para Eco, oferece um arquivo de informações que proporciona a “sensação de sermos opulentos e onipotentes, ao preço de não sabermos quais de seus elementos se referem a dados do mundo real, quais não, sem mais distinções entre verdade e erro”.137

Imaginada muitos anos antes da criação da Web, essa organização que almeja conter a memória do mundo estava fadada ao erro desde sua concepção, pois um sistema que pretende arquivar tudo já, de início, deve ser considerado absurdo, isso porque o mundo é de uma multiplicidade tão grande que é impossível tentar catalogá-lo por inteiro. Apesar de fascinante e de motivar a criação de muitos escritores e artistas, a ideia de arquivar o todo é uma ilusão. Em texto escrito em 1972, quatro anos depois, Calvino trataria dessa impossibilidade de organizar as informações e apresentá-las em um conjunto coerente, por meio de métodos que foram se estabelecendo como suficientes:

Percebemos há um bom tempo: o depósito dos materiais acumulados pela humanidade – mecanismos, maquinários, mercadorias, mercados, instituições, documentos, poemas, emblemas, fotogramas, opera picta, artes e ofícios, enciclopédias, cosmologias, gramáticas, topoi e figuras de discurso, relações parentais e tribais e empresariais, mitos e ritos, modelos operacionais –, já não conseguimos mantê-lo em ordem. Os métodos continuamente retificados e atualizados durante os últimos quatrocentos anos para estabelecer um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar (e deixar de lado o que fica de fora) – aqueles métodos unificáveis numa metodologia geral, a História, isto é, a escolha de um sujeito denominado o Homem, a cada vez definido por seus predicados – sofreram muitas rachaduras e falhas para ter a pretensão de manter ainda tudo junto como se nada fosse.138

Segundo o escritor, as crescentes modificações das últimas décadas – o crescimento em grande escala do gênero humano, a explosão da metrópole, o fim do eurocentrismo econômico-ideológico, a recusa dos excluídos de aceitar uma história pautada na anulação dos papéis – impedem uma organização coerente desses conjuntos de informação. Os instrumentos cognitivos disponíveis não dão conta de ordenar e

136

BORGES, Jorge Luis. A biblioteca de babel. In: ______. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1998. v. 1. p. 557.

137

ECO. A vertigem das listas, p. 360.

138

CALVINO, Italo. O olhar do arqueólogo. In: ______. Assunto encerrado. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 312.

interpretar uma realidade tão múltipla e fragmentada. Nesse sentido, a literatura teria um papel importante como campo que proporciona o encontro e o confronto de pesquisas e disciplinas diferentes, que se propõe a “tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo”.139

Scarpa, em sua lúcida análise do pensamento de Calvino a partir da década de 1960, afirma que as conquistas intelectuais amadurecidas pelo escritor nesses anos podem ser reduzidas essencialmente a duas, uma macroscópica e outra microscópica:

A primeira é uma clara visão morfológica das estruturas, dos parâmetros e dos códigos, das invariantes do pensamento, em cujos invólucros, contudo, Calvino iria reintegrar duas noções: a história [...] e a enciclopédia, ou seja, uma geografia do saber que consiste nos nexos que ligam cada ponto do saber a todos os outros. [...] A outra ferramenta intelectual – microscópica – a que Calvino se filia nos anos sessenta [...] é aquele tipo de sensibilidade que

muitos anos depois Barthes definiria “mathesis singularis”, ou ciência do

objeto único.140

A ideia de enciclopédia, como se observou no capítulo anterior, acompanhou muitas das reflexões de Calvino, as quais culminaram no conceito de multiplicidade, apresentado na última conferência publicada em Seis propostas para o próximo milênio. Nesse texto, como se viu, o escritor procura traçar uma linhagem de escritores enciclopedistas do século XX que apresentam em sua literatura a relação de tudo com tudo, o que a caracterizaria como uma enciclopédia aberta, que toma o universo como uma totalidade potencial e multíplice. A enciclopédia é também tema do conto “Palomar e l’enciclopedia”,141publicado na coluna “L’osservatorio del signor Palomar”, que Calvino manteve entre 1975 e 1977 no Corriere della Sera e na qual publicou os textos da série que, depois de uma seleção, se reuniram no livro dedicado a esse personagem. Aqui, Palomar se vê diante do primeiro volume da nova Enciclopedia

Einaudi, publicado em 1977, que promete apresentar-se como um modelo diferente de

enciclopédia, a fim de romper com a pretensão de exaustividade do enciclopedismo anterior. Com esse intuito, os organizadores reduzem o número de verbetes ao mínimo possível em favor daqueles mais importantes no âmbito da cultura contemporânea.

139

CALVINO. Seis propostas para o próximo milênio, p. 127.

140

SCARPA. Italo Calvino, p. 61.

141CALVINO, Italo. Palomar e l’enciclopedia. In: ______. Saggi: 1945-1985. 4ª ed. Milano: Mondadori, 2007. v. 2.

No conto, que está entre a narrativa e o ensaio,142 Palomar é apresentado como um “ávido degustador de enciclopédias”. A sua relação com esses livros sempre começou por uma consulta aleatória até chegar a uma leitura ininterrupta, a fim de que pudesse construir um discurso global, aspiração que se mostrava frustrante. Com o novo volume da Enciclopédia Einaudi em mãos, apresentada como um objeto completamente diverso, uma “enciclopédia toda por ler”,143

compreende que deve procurar outro modo de leitura, chegando à seguinte conclusão:

Uma leitura exaustiva deve exigir regras do jogo menos banais. Se nas enciclopédias tradicionais Palomar era induzido a passar das partes a um todo inalcançável, nesta ele deverá seguir o caminho inverso: procurar o núcleo de totalidade mais denso e daí distanciar-se em direção às irradiações mais periféricas e sutis.144

O personagem, então, decide começar pelo verbete que acredita ser o núcleo daquele volume, quiçá de toda a enciclopédia: Anthropos, o verbete mais extenso, com 55 páginas de texto e 34 de ilustrações. A escolha se dá não apenas porque a enciclopédia se propõe a enfatizar o horizonte das ciências humanas ou destas dentro do sistema das ciências, como indica o narrador, mas porque o tema sempre lhe causou grande entusiasmo. A partir daí, a narrativa apresenta as reflexões de Palomar sobre o que lê, sobre a relação entre o homem, a natureza e a cultura, sobre os limites entre o “sujeito e o objeto, humano e animal, regra moral e lei científica, racional e empírico”.145

Desse verbete, Palomar passa àquele antecedente, que é justamente

Animale, e, depois de reler os dois verbetes, percebe que, nessa sequência, a

proximidade alfabética funciona como uma ordem do conhecimento. Assim, se apressa para consultar aquele posterior a Anthropos, e imediatamente lê: Anticipazione, em que o autor explica “como a neutralidade científica do observador é sempre relativa, porque os ‘esquemas de expectativa’ têm um papel em todo processo de conhecimento, não só, mas também, na percepção sensorial, pelo modo como são construídos os órgãos do sentido”.146

142 Alguns dos textos publicados no Corriere della Sera, assim como outros publicados no La Repubblica,

encontram-se, quatro deles, reunidos no terceiro volume de Romanzi e racconti e outros dois no segundo volume de

Saggi: 1945-1985. Outros compõem o livro Coleção de areia, conforme organização do próprio Calvino. Essa

distribuição variada dos textos, entre narrativa, ensaio e relato de viagem, por si só já revela o seu caráter híbrido.

143CALVINO. Palomar e l’enciclopedia, p. 1797. 144CALVINO. Palomar e l’enciclopedia, p. 1798. 145CALVINO. Palomar e l’enciclopedia, p. 1798. 146CALVINO. Palomar e l’enciclopedia, p. 1799.

Da leitura desses três verbetes, que se encontram no centro do volume, Palomar, como havia planejado, deve passar às outras partes:

ele pode prosseguir tanto em direção ao fim (Astronomia) quanto ao início do volume, onde (antes de Abaco) está, ao modo de introdução, o verbete

Enciclopédia (de Alfredo Salsano). Duas imagens de uma totalidade

centrífuga: a Astronomia das galáxias em fuga e a Enciclopédia de um saber cada vez mais difícil de manter em conjunto, em cujo centro há um

Anthropos cada vez menos seguro do seu antropocentrismo. Eis que

construiu a seu uso e consumo uma Clavis universalis do dia de hoje, toda já apresentada no primeiro volume da enciclopédia. Agora poderá passar do todo às partes.

O senhor Palomar pousa o volume na cabeceira. Adormece. Sonha com uma enciclopédia que se possa beber como um ovo fresco. Por meio de um furinho feito com um alfinete, sorve a gema. Não, no centro da gema está ele próprio, come já lhe aconteceu antes do nascimento, que devora dali de dentro o conteúdo do ovo e do mundo.147

Tal qual nos outros textos de Palomar, como se observou, Calvino apresenta uma reflexão, com o humor que lhe é próprio, sobre as formas de organização do conhecimento. Se antes já era fascinado com as enciclopédias, diante da nova edição da Einaudi, que se propõe muito diferente das anteriores, o personagem se depara com um desafio ainda maior: desconstruir a maneira com que lê, tanto aquele livro quanto o mundo. O texto enfatiza o mérito da nova enciclopédia para, depois, reiterar a natureza ambígua da relação do personagem com os arquivos do conhecimento e do saber. Ainda que deseje fazer falar o mundo e dar-lhe uma ordem, sua consciência o lembra de que toda e qualquer iniciativa de ordená-lo será frustrante, mas nem por isso desiste de conhecê-lo, o mais que possa. Nessa relação, a princípio desconfortante, é que parece se resumir o pensamento de Calvino sobre os processos de compilação, acumulação e enumeração, que acabaram por influenciar muitas de suas preocupações estéticas e temáticas, orientando tanto a estrutura de vários de seus livros quanto a temática de muitas de suas narrativas.

O conceito de mathesis singularis, que caracteriza, segundo Scarpa, o pensamento microscópico de Calvino, por sua vez, é citado nos seguintes textos do escritor, sempre mencionando o pensamento de Barthes: na conferência sobre a exatidão, em Seis