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5. A Apropriação do Discurso Alheio pelo Arranjo da Canção Popular

5.3 O arranjo e o discurso verbal

Luiz Tatit, em seu brilhante texto “Quatro triagens e uma mistura: a canção brasileira no século XX” (Tatit, 2001: 223), a partir das aparentemente simples noções de “triagem e mistura”, discorre sobre a criação, evolução e consolidação da canção popular brasileira no século xx, defendendo que sempre que houve alguma mudança significativa no âmbito da canção popular brasileira, tratou-se de triagem (eliminação ou seleção) ou de mistura (enriquecimento ou profanação), concluindo que, na década de 30

“a seleção desses três modelos108 de compatibilidade entre melodia e letra definiu a linguagem da canção popular brasileira do século passado, no sentido de que todas as obras produzidas desde então possuem traços temáticos, passionais e figurativos, e que esses traços comparecem de modo dominante, recessivo ou residual.”109

Se somente na década de 30 é que a linguagem da canção popular brasileira se consolida - e essa afirmação é unânime entre os historiadores que tratam da canção brasileira -, estamos nos ocupando de um fenômeno artístico historicamente deveras recente. Então, como já afirmara Tatit, esse modelo de canção que hoje nós conhecemos existe há, no máximo, 100 anos.

Partindo desse princípio, podemos inferir que, mesmo que também nas décadas de 30 e 40 tenham proficuamente atuado as duas grandes referências do arranjo brasileiro: Radamés Gnattali e Alfredo da Rocha Viana Filho, o

108 Os modelos de que fala Tatit são as “canções de encontro”, canções velozes cujos temas melódicos são

recorrentes e não raramente tratam da conjunção do sujeito com o objeto-valor; as “canções de desencontro”, canções mais lentas cujo percurso melódico é valorizado e comumente tratam da disjunção entre sujeito e objeto-valor; e as canções cuja raiz entoativa da fala surge de modo explícito como “figuras ou referências que soam familiares aos ouvintes”, enfim, tematização, passionalização e figurativização.

109 Tatit, L. (2001). “Quatro triagens e uma mistura: a canção brasileira no século xx”. In: MATOS, C. et alii

Pixinguinha, àquela época, o fazer musical do arranjador ainda não estava suficientemente sedimentado a ponto de formar um organismo com os componentes melódico e verbal da canção popular, como podemos verificar atualmente, e isso seria necessário para que pudesse o arranjador ousar interferir no discurso cancional, introduzindo citações do discurso alheio. E não foi à toa que Henrique Foréis Domingues, o Almirante (cantor, compositor, radialista e importante referência para a história da canção popular brasileira), escreveu, em 1963, no seu livro No Tempo de Noel Rosa, a seguinte sentença:

“Mais uma vez ficou provado que o êxito da música popular depende e quase exclusivamente do valor intrínseco de sua melodia e da graça e inspiração de seus versos. Arranjos, gravações trabalhadas etc., naturalmente ajudam... mas são simples acessórios.”110

Tal sentença é contestada por Luiz Tatit, em 1987, em seu primeiro livro A

canção – eficácia e encanto (Tatit, 1987), da seguinte maneira:

“Já não é mais assim. Os arranjos e as gravações podem produzir de novo a canção, dando-lhe um perfil nem sonhado pelo autor, e podem produzir até o gosto dos ouvintes pela contundência de seus recursos e pela insistência de suas soluções no mercado cultural.”111

Quando Tatit contesta a máxima de Almirante, já corria o ano de 1987 e a canção popular brasileira, com sua linguagem plenamente consolidada, já havia levado a efeito algumas subversões. Àquela época, o arranjo já era um elemento constituinte de seu organismo.

110 Almirante (1963). No tempo de Noel Rosa, apud Tatit, L.(1987). A Canção – Eficácia e encanto. São

Paulo, Atual. p.1.

Retomando a dicotomia triagem/mistura do texto de Tatit acima citado, podemos constatar que as misturas que ocorreram na canção popular até o final da década de 60 foram misturas espontâneas, calcadas numa interdiscursividade proporcionada pela memória discursiva, pois, até então, não havia, por parte dos cancionistas, o propósito de misturar, seja o discurso dos estilos ou os discursos cancionais propriamente ditos, o que só vai acontecer com o advento do tropicalismo, movimento que Tatit classifica como única “mistura promovida” (não espontânea) na história da canção popular brasileira, até aquele momento:

“Por todas essas razões, pela primeira vez, a mistura não se processou naturalmente e seu surgimento abrupto surtiu efeitos de tratamento de choque sobre a MPB da época.”112

O movimento tropicalista dialogou com o passado e com o futuro com a mesma voracidade e foi a intervenção na esfera da canção popular brasileira “que promoveu a mais ampla assimilação de gêneros e estilos da história da música popular brasileira” (Tatit, 2001: 231). Cabia no “balaio tropicalista” de Carmem Miranda a Roberto Carlos; a bossa (nova) e a palhoça; a urbanidade e o arcadismo; o brega e o chique; Chacrinha, Vicente Celestino, Beatles etc.

Teorizando sobre como atuavam os cancionistas no período de eclosão desse movimento, Tatit diz o seguinte:

“O tropicalismo pôs à mostra os tênues limites que separam os diversos artesanatos cancionais. Compor canções de qualidade ou compor apenas para o consumo envolve operações muito semelhantes no que diz respeito à busca de compatibilidade entre melodia e letra. Nesse sentido, Chico Buarque compõe como Herbert Vianna que compõe como Milton Nascimento que compõe como Erasmo Carlos que compõe como Gilberto Gil, Rita Lee e

112 Tatit, L. (2001) “Quatro triagens e uma mistura: a canção brasileira no século xx”. In: MATOS, C. et alii

assim por diante. E para comprovar esse fato, Caetano Veloso inaugurou as reinterpretações que alteram o nível de apreensão das canções consagradas, propondo assim uma revisão das apreciações estereotipadas. Reinterpretou composições de Vicente celestino, Jorge Benjor, Peninha, Beatles, Michael Jackson, Roberto Carlos, Guilherme Arantes, de tal maneira que seus ouvintes as acolheram como se fossem de sua própria lavra. Outros cantores também assim o fizeram e a mistura foi plena nos anos 1970-80, relativizando de uma vez por todas o conceito de música de qualidade.”113

Essa foi a base para que o tropicalismo desse o primeiro passo em direção à apropriação do discurso alheio pelo arranjo da canção popular brasileira, embora essa afirmação pareça um tanto paradoxal, pois o fazer reinterpretativo confirma a tese Bakhtiniana da heterogeneidade do discurso, isto é, o discurso da reinterpretação é erigido por oposição ao discurso da interpretação114 e não integrando-o à sua narrativa. No que diz respeito à canção popular, esse procedimento já fora abordado por Luiz Tatit (e, na presente tese, foi por nós parafraseado no capítulo “Modos de existência do arranjo”), que demonstrou que, ao realizá-lo, o arranjador pode explicitar elementos que, embora já constassem do plano de conteúdo da canção desde a interpretação original, teriam permanecido em estado virtual até o momento da reinterpretação.

Foi, então, a partir dessa atividade reinterpretativa que Caetano Veloso também passou a incorporar a dicção interpretativa de outros grandes enunciadores-cantores, como Carmem Miranda (na sua emblemática reinterpretação do samba “Disseram que eu voltei americanizada”, de Vicente Paiva e Luiz Peixoto), Dalva de Oliveira e João Gilberto, por exemplo; chegando a explicitar sua intenção de fazê-lo no programa de televisão, que citamos de memória, “Araçá Azul” (título homônimo de seu LP tropicalista experimental),

113 Tatit, L. (2001) “Quatro triagens e uma mistura: a canção brasileira no século xx”. In: MATOS, C. et alii

(orgs.) Ao encontro da palavra cantada. Rio de Janeiro, 7 letras. pp. 231-232.

exibido pela extinta rede Manchete, que comemorou seus vinte anos de carreira, no qual imitou várias dicções cancionais, inclusive a de Dona Canô, sua mãe, cantando “Mané Fogueteiro”, um samba-canção de João de Barro.

Acreditamos, então, que ao assimilar, manifestar e difundir a dicção interpretativa115 de outros cancionistas, Caetano Veloso e o tropicalismo instituíram o início do dialogismo marcado no fio do discurso, no que concerne à canção popular brasileira. Algo como uma “variante analisadora da expressão”, que “integra ao contexto narrativo, no esquema do discurso indireto, os modos de dizer (ou seja, as dicções) do discurso alheio que caracterizam sua subjetividade e estilo enquanto expressão” (Bakhtin, 1979: 162).

Assim como quando o cancionista utiliza vocativos no meio da frase melódica, estes, quase que invariavelmente, surgem numa região mais grave que a totalidade daquela frase, dando a impressão de estar entre vírgulas116, no caso das reinterpretações de Caetano Veloso citadas imediatamente acima, a troca de timbre dá a impressão ao enunciatário-ouvinte de que o discurso citado, de alguma maneira, está delimitado entre aspas, como acontece no discurso verbal escrito.

Segundo o Dicionário de Lingüística, “as aspas correspondem geralmente a uma mudança de tom que começa com a abertura das aspas e acaba com seu fechamento” (Dubois, 2001: 475). A acepção de tom, no âmbito da lingüística, aproxima-se cada vez mais da acepção musical, ou seja, cada vez menos a lingüística emprega o termo “tom” para designar “entoação” e, mais freqüentemente, reserva “este termo para as variações de altura no interior de uma mesma palavra” (Dubois, 2001: 589). Segundo o “Dicionário de Termos e

Expressões da Música”, tom pode ser também “palavra com que se descreve

timbre ou coloração” (Dourado, 2004: 333).

115 Estamos usando a expressão “dicção interpretativa”, que, embora pareça redundante, serve para diferenciá-

la do termo dicção que Luiz Tatit utilizou em seu livro O cancionista – composições de canções no Brasil para marcar o modo composicional de dizer de vários cancionistas brasileiros.

116 “Quando o vocativo interrompe o fio melódico já iniciado, sua tendência é acusar o nível diferente do

discurso através de uma descendência para o grave, como se a melodia assinalasse que está entre vírgulas.” (Tatit, 1987: 17).

Vejamos, então, que ao utilizar os maneirismos vocais (em especial o erre vibrante alveolar, em lugar do costumeiro erre aspirado dos baianos), Caetano Veloso cita, dentre outras coisas, a dicção da intérprete, a maneira de dizer cancionalmente de Carmem Miranda. A troca de timbre, a utilização de maneirismos entoativos e de alofones funcionam como aspas e compõem o discurso interpretativo citado. Essas “aspas sonoras” apresentam o discurso reinterpretativo como apropriação do discurso alheio, na forma de análise da expressão, ou seja, a palavra cantada de Carmem Miranda, como diria Bakhtin, é introduzida no discurso reinterpretativo do compositor tropicalista de modo que a especificidade, a subjetividade e o seu caráter típico são claramente percebidos.

O último CD de Cássia Eller (Acústico MTV) é uma bela fonte de apropriação do discurso interpretativo alheio. Nesse álbum, a intérprete se apropria da dicção de intérpretes franceses, de cantores de rap, de samba etc., lançando mão dos recursos instaurados pelo tropicalismo. No CD “Raimundo Fagner & Zeca Baleiro”, os cancionistas, ao interpretarem a canção “Cantor de Bolero” (Fagner/Zeca Baleiro/ Fausto Nilo), feita em homenagem aos cantores chamados “bregas”, lançam mão da dicção desses cantores com todos os seus maneirismos melodramáticos e excessos interpretativos. Enfim, a geração pós- tropicalista está dando continuidade ao projeto de apropriação do discurso interpretativo alheio que acreditamos ter sido instaurado por Caetano Veloso.

A rigor, quando um enunciador-cantor decide reinterpretar uma canção, ele já está introduzindo um discurso alheio em seu discurso interpretativo. Quando algum intérprete cancionista vai montar um espetáculo ou fazer um disco, tem de selecionar o repertório e, geralmente, esse repertório se baseia em escolhas prévias. O espetáculo ou o CD pode se basear em um determinado estilo (rock, samba, frevo etc.) ou na obra de um compositor (“Gal canta Caymmi”, por exemplo). Pode ser um disco de composições próprias ou folclóricas etc. O importante é que, se desse repertório fizer parte alguma canção que já tenha sido gravada, o intérprete estará transmitindo um discurso alheio em um contexto narrativo que, ao menos, já vinha sendo esboçado desde a decisão de fazer um disco ou um espetáculo; desde a escolha do estilo a ser adotado, do conjunto

instrumental que, juntamente com o intérprete, será o veículo de manifestação das canções etc. Enfim, é como se as atividades prévias à manifestação da canção propriamente dita, nos suportes acima citados, funcionassem como o argumento de um filme ou de um romance, onde o livro ainda não está no prelo e o filme não está sendo rodado, mas a base de sua narrativa já está pronta.

Um exemplo semelhante seria o dos clássicos da literatura universal que estão sendo reescritos com uma linguagem mais simples e atual para que possam atingir o grande público. Podemos classificar esse exemplo como “variante analisadora do conteúdo”, que “relaciona-se com o discurso citado apenas no plano da substância do conteúdo, mantendo-se indiferente a tudo que não diga respeito a essa categoria” (Bakhtin, 1979: 162) 117. A reinterpretação de uma canção também é uma tomada de posição com conteúdo semântico sobre o que disse o falante, ou melhor, o cantante. No entanto, quando se reinterpreta uma canção não é possível apenas veicular “o que” o intérprete original manifestou e dispensar o “como”, pois cantar (interpretar) já é dizer algo (texto lingüístico) de alguma maneira e essa maneira é, por excelência, melódica.

Embora não tenhamos investigado o assunto numa medida que nos permita afirmar qual foi o momento em que os enunciadores-arranjadores começaram a introduzir o discurso alheio em seus discursos, intuímos fortemente que esse momento se deu no final da década de 60, a partir da “misturas” instauradas pelo movimento musical deflagrado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que teve eco nas artes plásticas, no teatro e no cinema. Pensamos que os convincentes indícios acima descritos nos fornecem munição suficiente para que nos debrucemos sobre esse tema de maneira verdadeiramente otimista.

A seguir discorreremos sobre os presumíveis modos de citação no arranjo da canção popular brasileira para, posteriormente, elencar alguns exemplos que possam conferir um maior grau de cientificidade ao presente trabalho.