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A combinação de elementos de um estilo e de outro num mesmo traje vem confirmar a complexidade dos estudos sobre moda, principalmente se atentar-se para o seu caráter de expressão individual, num tempo em que se nota enormemente a democratização das formas de aparência. Se falar-se de uma ditadura da moda, como explicar que um ponto não focal do estilo New Look – os ombros – pudesse ser realçado em face da moralidade local ou da preferência das mulheres de São João do Sabugi nos anos 1950? Para Gilles Lipovetsky (1997, p. 25), as rupturas em moda “não implicam automaticamente transformação completa e novidade incomparável”, já que, por vezes, “processos se repetiram e se prolongaram”, mesmo que em pequenos detalhes.

Essa é a chamada moda “ponderada”, que Lipovetsky encontrou no começo do século XVII, paralela ao modo de trajar da corte e típica do “homem correto” da burguesia. Noções de “prudência”, “medida”, “utilidade”, “limpeza” e “conforto” faziam recusar o extravagante da moda dos palácios, filtrada pelos critérios de classe. Para esse autor, “O mimetismo da moda tem de particular o fato de que funciona em diferentes níveis: do conformismo mais estrito à adaptação mais ou menos fiel, do acompanhamento cego à acomodação refletida” (1997, p. 42).

Figura 60 – Rainha vestindo saia-corola

Uma Rainha da Festa de São João Batista, padroeiro de São João do Sabugi, ostenta as insígnias de seu título pseudo-monárquico: faixa e coroa. Ela reproduz uma pose típica dos anos 1950, somente possível graças à amplitude da saia-corola, parte importante da silhueta- ampulheta que caracterizava o New Look. O seu traje dialoga com a década anterior, pela insistência nas mangas bufantes. Sua majestade se entretém com a rusticidade do lugar, visível na calçada de tijolos que tem por trono. Fotografia de Enoque Pereira das Neves. Fonte: acervo do autor.

No exercício de comparação entre o Dior original e o seu arremedo, pode-se perceber que o New Look foi manipulado pelas mulheres sabugienses, fossem elas costureiras ou suas clientes consumidoras, de maneira a adequá-lo à realidade local (Figura 60). As roupas, produto do sistema da moda, eram engendradas ao longo da década de 1950, em São João do Sabugi, de modo a darem a impressão de atualidade, sem, no entanto, causarem escândalo ou mal-estar.

Em contrapartida às estratégias de que a moda lançava mão para se fazer vigorar, as táticas locais inscreviam sua arte de fazer com tecido, linha, metal, plástico e outros materiais, metaforizando a ordem dominante e fazendo-a funcionar em outro registro, como ensinou Michel de Certeau (1999). O que se ditava era escrito de outra forma, mais próxima, mais real, mais possível.

O New Look era produzido para as festas, mas entrava nas lidas rotineiras, desvencilhado de suas saias de armar. Novas, as roupas venciam um percurso das casas das costureiras às casas das consumidoras, passando pelos eventos sociais. Depois, os cuidados de higiene e manutenção as faziam ser conduzidas pelas pedras dos rios, barreiros e açudes, além dos móveis e ferros de passar, nas mãos de lavadeiras e engomadeiras. Então, já se desgastando por seus usos e processos, desciam das festas para serem usadas aos domingos e, por fim, no dia-a-dia.

Se fora necessário vencer o percurso de Paris a São João do Sabugi para tornar presente o New Look nos principais eventos sociais do pequeno e novo município, era preciso cumprir a trajetória das festas ao cotidiano para fazer visível o estilo criado por Christian Dior em todas as ocasiões. Percorrendo trilhas, fazendo concessões, deixando-se adaptar: assim, a moda foi-se democratizando e o sonho se tornou um entretenimento popular...

CHULEIO147: COMO SE UMA CONCLUSÃO FOSSE...

Será que se tem uma resposta segura para a questão da moda que se seguia, por atalhos e desvios, numa localidade sertaneja dos anos 1950? Como sugere o poema acima, quando o corpo se desnuda, perde-se a alma contida no traje. Quando alguém se veste, constrói uma superfície falando de profundidade.

Nos anos 1950, em São João do Sabugi, nos sertões do Seridó, Estado do Rio Grande do Norte, aconteceu um fato que é revelador da importância das roupas na vida humana148, especialmente num lugar de população rural, vivendo os valores tradicionais do pudor e do recato. Numa tarde chuvosa, alguns rapazes vestidos em calções e cuecas samba-canção deixaram banhar seus corpos com os pingos reunidos em jorros nas bicas das casas, fazendo algazarra pelas ruas do lugar, a denunciar a alegria dos sertanejos com o tempo de inverno. Em seguida ao banho, dirigiram-se ao ponto comercial de Otávio Medeiros, uma mercearia que vendia bebidas alcoólicas, para tomarem um trago de cachaça.

É provável que as roupas molhadas desses homens recém-saídos da puberdade já contassem bastante de suas virilidades, com a aderência dos tecidos de algodão falando de protuberâncias, eloqüentes em cada movimento de corpo, num tempo em que as roupas de baixo masculinas não reprimiam nem continham o desejo turgente de macho. Na fuzarca, um dos efebos banhistas, Genival Favela, se embriagou, ficando descuidado em proteger dos olhos alheios o seu membro sexual, que se assomou rebelde para o exterior num gesto de pernas, insinuando-se pelas largas aberturas do calção e causando escândalo na comunidade.

147 “Ato ou efeito de chulear”, ou seja, “Coser a orla do tecido, prendendo-a, de modo que não se desfie” (FERREIRA, 1999, p. 464).

148 A passagem foi ouvida pelo autor deste trabalho diversas vezes, relatada por várias vozes, desde sua adolescência até os dias atuais. A versão apresentada aqui, incluindo a citação a nomes e locais onde teria acontecido, foi contada informalmente por Manuel Marcelino de Brito (cognominado Nanuca), em 2014.

AS ROUPAS [...]

E, assim como nossa alma é a roupa que usamos dentro, a roupa que nós vestimos é a nossa alma de fora.

No disse-me-disse que se seguiu durante dias, as pessoas não revelavam detalhes quanto a aspectos estéticos ou dimensionais do que haviam visto, porém todos souberam que numa tarde chuvosa do inverno de São João do Sabugi, um homem jovem do lugar havia involuntariamente desvelado seus segredos íntimos ante à curiosidade de muitos.

Com a denúncia do comerciante, o incauto foi posteriormente advertido pela autoridade policial, delegado Chico Pequeno, que proibiu banhos de chuva nas ruas sabugienses vestindo trajes menores. Então, na próxima chuva, em forma de protesto, outro rapaz, Marcos Antônio de Brito, acorreu às bicas trajando um terno completo, com calça, camisa, colete, paletó e gravata, com o acréscimo de uma boina como acessório.

Se despir-se um pouco era até permitido para os homens de São João do Sabugi, na década de 1950 (desde que não se mostrasse mais do que era aceitável pela moral e pelo pudor), vestir-se era uma obrigação para as mulheres, que precisavam dominar os códigos emitidos pelo sistema da moda em escala mundial. Vestir-se e vestir-se bem, acompanhando as revistas como manuais de elegância, davam um lugar no mundo às mulheres sabugienses daqueles anos da metade do século XX.

As leituras que foram realizadas para a escrita desta dissertação – nos livros, nos periódicos, nas imagens, nas entrevistas, num vestido de 1955 – permitem afirmar que o estilo New Look, criado por Christian Dior, em Paris, no ano de 1947, foi acompanhado pelas mulheres de São João do Sabugi ao longo dos anos 1950. Entretanto, o jeito de vestir marcado pela silhueta-ampulheta foi adotado com moderação, de acordo com o gosto e os recursos locais, atento às exortações familiares, preocupado com a imagem de mulher tida por ideal naquele tempo e lugar: a moça de família, depois esposa e mãe.

Desse modo, o New Look encontrava-se mesclado da maneira de exibir-se típica dos tempos anteriores à sua invenção, era híbrido de si mesmo e do fora de moda, com mangas bufantes, peito estufado, cintura prensada e saia arrogante de volume. A ponderação ao adotar as vogas em matéria de vestimenta fazia-se perceber na Paris dos anos de guerra e na São João do Sabugi do pós-guerra, havendo um diálogo entre a razão e a emoção em temporalidades e espacialidades diversas, o que motiva a cantar que a moda é menos ditadura e mais democracia. Pensar no modelo, vestir o traje, higienizá-lo e mantê-lo, reutilizá-lo e guardá-lo são estações da dinâmica rede de ações vinculadas à esfera do parecer, onde o glamour é momentâneo e o esforço constante.

A circularidade de um estilo de vestir francês pela São João do Sabugi dos anos 1950 se fez graças ao acesso aos periódicos impressos tanto de atualidades quanto feitos exclusivamente para o segmento feminino, mas havia outras possibilidades para se saber

qual era a última moda. Um desses meios foi a troca de fotografias entre parentes e amigos, que fazia circular ideias sobre a aparência em voga pela imagem revelada ou pelas inscrições que reforçavam este ou aquele aspecto do visual das pessoas fotografadas. Existiam sabugienses ou seus parentes vivendo em outras localidades, em cidades maiores inclusive, que estavam constantemente em contato com sua terra natal ou de seus pais via correios ou através de visitas periódicas. Nessas idas e vindas de gente, de cartas e de fotografias a moda se deixava levar e trazer de modo sutil, sem alvoroço.

Então, acessando a silhueta que vogava no mundo durante a década de 1950, sugerida pelo estilista Christian Dior, mulheres sabugienses, sendo elas as próprias usuárias ou suas costureiras, lançavam mão dos artifícios possíveis para atingirem o formato de corpo vestido com o qual se sonhava. As estratégias intentadas pelo sistema da moda para se fazer hegemônico eram em São João do Sabugi burladas, através das adaptações ou adequações às normatizações da sociedade local ou pelas substituições de materiais caros ou difíceis de serem encontrados. Ao invés de grandes decotes, por exemplo, era preferível cobrir o colo e adornar os ombros com mangas fofas, como se fizera nos anos anteriores. No lugar do tule para a providência de elevar as saias, conseguia-se efeito análogo utilizando-se anáguas engomadas com grude ou passadas na água de goma.

A busca e a observação de fotografias catadas nas coleções de algumas famílias de São João do Sabugi, com o intuito de escrever-se uma História da Moda para os anos 1950, fizeram o autor desta pesquisa deparar-se com flagrantes fotográficos em que se sentiu ecoar o New Look ainda na década de 1960. As próprias imagens das revistas também autorizam a dizer que o estilo criado por Dior, em 1947, não sobreviveu somente até meados dos anos 1950, nem apenas até o último ano dessa década, mas ultrapassou a membrana imaginária que separa os decênios e fez morada transitória na década seguinte. Em face dessa percepção, deixa-se no reboque deste trabalho um Caderno de Imagens que pode despertar para uma nova pesquisa, abordando o tema sob novo recorte temporal.

A escrita desta narrativa sobre as teias do sistema da moda nos anos 1950, considerando suas linhas fortes e os seus nós rompidos, percebendo a conexão entre o internacional e o local, lendo nos borrões desse texto as maquinações estratégicas e as piratarias das margens, não teve qualquer intenção de ser definitivo. Pelo contrário, a própria defesa pública deste trabalho aponta para os desdobramentos futuros partindo dos debates que porventura possam surgir.