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3 TRAJETÓRIA TEÓRICO-METODOLÓGICA

3.1 ARRUMANDO AS MALAS PARA INICIAR A CAMINHADA

Com o propósito de descrever como as demandas de saúde do usuário- trabalhador emergem no contexto da sua interação com os profissionais de saúde da USF Federação foi necessário me aproximar dos recursos da abordagem etnográfica como estratégia metodológica. Esta era uma “peça” indispensável para compor minha bagagem, já que pretendia vivenciar o campo, articulando os diferentes sentidos e capacidades que me seriam requeridos: “a visão, o olhar, a memória, a imagem, o imaginário, o sentido, a forma, a linguagem” (LAPLANTINE, 2004, p.11). Imergir no setting natural de atuação das equipes colocou-me na cena do trabalho vivo daqueles profissionais. Um trabalho que tem cor, forma e movimento; que é dinâmico, desperta sensações e requer regulações; que transcende aos ditos e prescritos que insistem em subestimar a subjetividade e criatividade dos trabalhadores.

Recorri à perspectiva epistemológica do Construcionismo Social, uma vez que representa a busca pela compreensão dos fenômenos por meio dos processos de intercâmbio social (GERGEN, 2009). Aproximei-me das contribuições de Kenneth Gergen (2009) para fundamentar a busca pela compreensão do “como acontece”, nos processos interativos da vida cotidiana, tentando escapar da dicotomia estabelecida entre a compreensão individual (mundo interno) e o mundo exterior. Deste modo, busquei compreender os processos pelos quais os profissionais reconhecem, valorizam, descrevem e refletem sobre a sua (inter)ação com os usuários- trabalhadores no contexto da USF Federação. Uma opção por responder aos meus “por quês?” “levando em consideração as pessoas em relação.” (GERGEN, 2009, p. 313).

Desde modo, procurei despir-me de qualquer hipótese preconcebida para verificação. Tracei minha trajetória trazendo na bagagem a experiência prática e formação no campo da saúde pública, mais especificamente, da saúde do trabalhador. Ao alcance de minhas mãos, caneta e caderno de campo com folhas em branco prontas para receber as descrições das cenas que vi, as sensações que senti, os relatos que escutei, reflexões que tive e indagações que me fiz.

Adentrei ao campo da pesquisa atenta e aberta para o que emergiria e meus sentidos seriam capazes de capturar. Olhei para as relações e para os contextos em sua particularidade, sem perder de vista de que o conhecimento que dali resultaria não seria a representação da realidade (pura e simplesmente) e, que as verdades são constituídas em territórios e tempos específicos. (CADONÁ e SCARPARO, 2015).

Algumas perguntas guiaram a minha trajetória de investigação para compreender particularidades do contexto: como se dá a interação do profissional de saúde com o usuário adulto? Este usuário é reconhecido como um trabalhador? Quais demandas de saúde do trabalhador emergem dessa interação? Que pedidos (demandas de saúde do trabalhador) são formalizados? Sobre as múltiplas vozes: quais são e o que dizem? O que é acolhido, o que passou sem resposta, o que é referenciado para outras instâncias da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e, o que é resolvido? Quais as barreiras para o reconhecimento das demandas de saúde do trabalhador e para o seu atendimento / encaminhamento conforme preconizado pela Portaria 1823/2012 que institui a PNST?

Os procedimentos que recorri para olhar o objeto de estudo de modo a aprofundar aquele universo específico foram os da observação participante, registrada em diário de campo e, também, entrevista semiestruturada. Andei pelas dependências da USF com os sentidos aguçados para capturar as expressões, gestos e movimentos; as cores, cheiros, sons e contornos; as intenções, a dinâmica das rotinas e os imprevistos. Observei cuidadosa e atentamente cada cena, registrando-as no meu caderno de campo juntamente com minhas impressões. Busquei inspiração na orientação de Cardoso de Oliveira (2006) para construir o meu saber sobre a identificação e manejo das demandas de saúde do trabalhador no contexto da USF Federação por meio da triangulação dos “três atos cognitivos”: o olhar, o ouvir e o escrever.

Considerando o efeito catalisador da minha presença na USF Federação, uma profissional de saúde do Centro de Referência Estadual em Saúde do Trabalhador (Cesat), acrescento aqui mais um ato cognitivo, o de interferir, no curso da produção da investigação, possibilitando a ampliação do processo investigativo para além do que estava previamente delimitado para o estudo (SCHIFFLER e ABRAHÃO, 2014). A investigação em ato como uma possibilidade de produzir intercessões, “como uma

forma de perturbação, gerando ondas em todas as direções a partir do ponto de incisão [a USF Federação].” (SCHIFFLER e ABRAHÃO, 2014, p.93).

A observação participante, enquanto elemento central para produção dos dados (TRAD, 2012), possibilitou-me registrar em diário de campo o que me foi possível capturar. Como um método em si, orientou minha busca pela compreensão da realidade empírica (MINAYO, 2008), a interpretação da “sociedade e a cultura do outro “de dentro”, em sua verdadeira interioridade.” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006, p.34). Percebi os tempos e movimentos dos profissionais da USF no recorte temporal da pesquisa. Angústias e motivações que paralisavam e/ou impulsionam a sua atuação num contexto adverso em que o reconhecimento de problemas, identificação de necessidades de saúde e dos dramas sociais são requeridos.

Os registros em caderno de campo constituíram-se como parte do processo de “textualização dos fenômenos” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006, p.25), enquanto acervo de impressões e “notas sobre as diferenciações entre falas, comportamentos e relações” (MINAYO, 2008, p. 295) observados no campo, além de ter sido um orientador para a (re)estruturação e condução das entrevistas. A ampliação destes registros com descrições minuciosas das cenas observadas possibilitou-me reconhecer detalhes e sutilezas (LAPLANTINE, 2004) das interações estabelecidas entre os sujeitos da pesquisa e, a fazer indagações e reflexões que (re)orientaram minhas aproximações e diálogos com estes sujeitos.

Porém, era necessário ampliar a minha escuta e dar mais espaço para que o conhecimento, percepções e sentimentos dos sujeitos da pesquisa fossem aprofundados. A entrevista funcionou como elemento complementar que também jogou luz sobre os processos explicativos e compreensivos no entorno do meu objeto de investigação.

As vozes dos sujeitos foram estimuladas nas dependências da USF por meio de abordagens conversacionais (no contexto da observação participante) e do recurso da entrevista semiestruturada. A escolha dos entrevistados não obedeceu a critérios pré-estabelecidos. Ocorreu à medida que me aproximei dos profissionais, os quais participaram de acordo com a sua disponibilidade e consentimento. A única intenção

que tive foi de garantir a representação das profissões (e áreas) que compõem as eSF da USF e do NASF-AB.

As entrevistas foram gravadas e (por mim) transcritas. Ao todo foram nove entrevistas individuais (dois enfermeiros, três agentes comunitários de saúde (ACS), uma médica, uma terapeuta ocupacional e dois usuários). Por força das circunstâncias da imersão no campo, realizei, também, uma entrevista coletiva, com três profissionais do NASF-AB (uma assistente social, uma fisioterapeuta e uma terapeuta ocupacional). Apesar de a entrevista coletiva não ter sido prevista, confluiu com a produção dos dados, sendo incorporada ao material empírico produzido e analisado. Foram feitas algumas tentativas para entrevistar profissionais de odontologia e técnicos de enfermagem, porém sem êxito. Quanto ao técnico de enfermagem, foi possível uma abordagem conversacional, registrada em diário de campo, num turno de observação participante na recepção dos consultórios.