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N A C ARTA T OPOGRAPHICA DA L INHA DE D EFESA DA C IDADE DE L ISBOA (1835)

CAPÍTULO 3 A ZONA RIBEIRINHA ORIENTAL DE LISBOA

3.1. N A C ARTA T OPOGRAPHICA DA L INHA DE D EFESA DA C IDADE DE L ISBOA (1835)

Na segunda metade do século XIX a expansão da cidade de Lisboa passa a desenhar-se também para Norte, desenhando-se então novos eixos, como a actual Avenida da Liberdade.

A Oriente, até essa época, a paisagem mantivera-se pouco urbanizada, povoada por uma dúzia de manufacturas, mas permanecendo no seu papel de zona rural, destino de veraneio de alguma aristocracia lisboeta aqui proprietária, lado-a-lado com os robustos edifícios das ordens religiosas, com as suas cercas e os seus doces conventuais.

Nesta representação do território em estudo - que reproduzimos mais à frente - levantada por ordem de D. Pedro IV sob direcção do Coronel Engenheiro J. D. da Serra, em escala alargada e não aparentando grande preocupação de pormenor, distinguem-se alguns referentes utilizados ainda hoje, assim como o recorte de edifícios que actualmente se mantêm. A paisagem da orla ribeirinha, para cá dos declives do interior do território, é cortada por algumas vias de circulação; em destaque, a estrada marginal, onde se situam os principais conjuntos construídos, que sabe-se na época tomava os nomes de Rua Direita de Xabregas, Rua Direita do Grilo, ou Rua Direita do Beato (actual Rua do Açúcar), no seu percurso entre a Madredeus e o Poço do Bispo1. Ao longo deste eixo - o Caminho do Oriente, como um século e meio mais tarde foi baptizado, para que Lisboa reaprendesse a percorrê-lo - encontramos as principais edificações desta região. Primeiro a Madredeus, num conjunto com o Palácio dos Marqueses de Nisa, desenhando-se em zigue-zigue frente ao rio e prolongando-se até São

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Ao longo da observação da cartografia utilizou-se como referentes extremos da faixa ribeirinha a observar, a sudoeste, o Convento da Madredeus (pertencente formalmente à freguesia de S. João, mas um referente inalienável do espaço urbano do vizinho Beato), e a nordeste, o Largo do Poço do Bispo, ou, se necessário ou possível, a sua vizinha Quinta da Matinha, onde se encontra o Pátio mais a nordeste aqui considerado.

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Francisco, com os seus dois claustros. Seguem-se o Palácio dos Marqueses de Olhão que ainda hoje conhecemos, e em seguida, perto da Calçada de D. Gastão, o Palacete da Quinta Leite de Sousa, lado- a-lado com o Palácio dos Senhores das Ilhas Desertas, herdeiros do nobre D. Gastão, com propriedades de ambos os lados destra estrada marginal. Sucedem-se os Conventos, destacando-se o do Beato António, ao centro do território e terminando no Palácio da Mitra, já a chegar ao Poço do Bispo. Ao longo do caminho, a proximidade constante do rio, que em alguns trechos, como do Palácio das Ilhas Desertas ao Convento das Freiras “Grilas”, mal se distingue das casas, que parecem invadi- lo. Ao que se sabe, muitas destas propriedades eram providas do seu próprio cais2. Numa cota superior, a actual Rua Direita de Marvila (a seu tempo seria a exótica Rua Direita dos Ananases), que faz o percurso de regresso ao Grilo, cortada por duas grandes calçadas transversais que ainda hoje permanecem. Subindo o Vale de Chelas, aparecem localizadas na Carta duas Estamparias de Chitas aqui existentes, das quais se encontra igualmente registo na bibliografia3.

Em toda a extensão do terreno, pouco mais edificações dignas de registo; por entre os terrenos das quintas e cercas conventuais, um pequeno núcleo encima São Francisco - o Alto dos Toucinheiros; mais à frente um outro conjunto - o Grilo - semelhante ao que envolve o Convento do “Beato António” e o Palácio do Duque de Lafões e o Palácio do Marquês de Marialva, ambos sobre a encosta. Maior concentração se distingue junto ao Poço do Bispo, nos quarteirões que envolvem o Convento de Marvila e se estendem até ao Palácio do Marquês de Abrantes.

Nas vésperas da chegada do comboio, a Zona Ribeirinha Oriental era assim um território aberto, de terrenos rurais virados ao rio. Em 1939, evocava-a assim Norberto de Araújo, nas suas Peregrinações em Lisboa:

Sem linha férrea nem passagem sôbre viadutos, sem edifícios fabris, armazéns e oficinas, sem cortinas de prédios a encobrir o rio - largo como o mar - Xabregas, “Enxobregas” dos séculos velhos, era arrabalde, tímido de póvoas ao acaso, luminoso e lavado. No século passado, aí por 1840, a transição estava feita. (…) Mutação assim em parte alguma de Lisboa se verificou4.

Em 1834, com a afirmação do liberalismo, o Decreto-Lei redigido por Joaquim António de Aguiar que determina a extinção das ordens religiosas em Portugal ajudará a criar caminho para uma transfiguração urbana significativa, operada não só em Lisboa mas em todo o país, com o Estado subitamente a braços com centenas de espaços conventuais desocupados5. Também a burguesia, em ascensão nesta conjuntura, começara a comprar as velhas quintas à nobreza descapitalizada,

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Matos, José Sarmento de e Jorge Ferreira Paulo (1999), Caminho do Oriente: Guia Histórico, Lisboa, Livros Horizonte, p. 60.

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Custódio, Jorge (1994), “Reflexos da Industrialização na Fisionomia e Vida da Cidade”, em Irisalva Moita (coordenação), O Livro de Lisboa, Livros Horizonte, p. 462.

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Araújo, Norberto (1993 - reedição de original de 1939), Peregrinações em Lisboa, vol. XV, Lisboa, Vega, p.56. 5

As ordens masculinas seriam extintas imediatamente e deveriam abandonar os seus edifícios, as ordens femininas poderiam permanecer nos seus locais, porém sem novas admissões, até à morte da última religiosa.

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transferindo para aqui as suas residências secundárias e, pouco a pouco também as unidades industriais que vão fazendo a sua fortuna. É nesse momento histórico que a Zona Oriental da cidade encontra a sua nova vocação e inicia a conversão numa das grandes bases industriais de Lisboa, a par com a Zona Ribeirinha Ocidental de Alcântara.

Figura 3.1 - Carta Topographica da Linha de Defesa da Cidade de Lisboa ( pormenor) - 1835.

Fonte: Calado, Maria (coord.) (1993), Atlas de Lisboa: A Cidade no Espaço e no Tempo, Lisboa, Contexto Editora., p. 87.

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É já em 1840 que se fixará em Xabregas a primeira grande unidade industrial da região: a Fábrica da Companhia de Fiação e Tecidos Lisbonense. Para instalar este complexo industrial, movido a energia do vapor6, a sociedade proprietária requerera ao Estado ocupar o extinto Convento de S. Francisco, que aqui existira desde 1460. Após um incêndio de grandes proporções, a Fiação abandona o antigo Convento, instalando-se no seu lugar, a partir de 1844, a Fábrica de Tabacos de Xabregas7, unidade que aqui permanecerá mais de um século, até 19658.

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Segundo Deolinda Folgado, esta nova unidade laborava com “uma máquina a vapor vertical de 20 c/v, de origem francesa, que suscitou um enorme entusiamo na Lisboa de 1840: Produzem maravilhosos resultados as machinas movidas a vapor, (…) muitas pessoas curiosas (…) ficam admiradas quando contemplam que no país já existe o que apenas lhes constava haver entre os mais civilizados povos ”. Relatório de 1840 citado por Folgado, Deolinda e Jorge Custódio (1999), Caminho do Oriente: Guia do Património Industrial, Lisboa, Livros Horizonte, p. 89.

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A propósito desta transfiguração em Portugal dos antigos edifícios sagrados e, nomeadamente, das reações ao destino de S. Francisco de Xabregas, leia-se, na recente Biografia de Lisboa: “publicado em 1848 em língua inglesa, em Lisboa, um guia para visitantes estrangeiros mostrava-se particularmente indignado com o que acontecera ao convento de Xabregas, transformado primeiro numa fábrica de algodões e lanifícios, depois em fábrica de tabacos”. Ver Pinheiro, Magda de Avelar (2011), Biografia de Lisboa, Lisboa, Esfera dos Livros, p. 217.

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No 2º volume da História Económica de Portugal é referido que no surto de criação de grandes complexos industriais vivido em Portugal ao longo da década de 1840, a Fábrica de Tabaco de Xabregas era uma das unidades que “comandava o metabolismo do tecido industrial” nacional. Ver Lains, Pedro e Álvaro Ferreira da Silva (org.) (2005), “O Século XIX”, II Volume da História Económica de Portugal: 1700-2000, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais., p. 268.

Figura 3.2 - Praia de Xabregas e edifício da Fábrica de Tabaco no antigo Convento de S. Francisco.

Fonte: João Pedrozo, Museu da Cidade , citado em Matos, José Sarmento de e Jorge Ferreira Paulo (1999),

Caminho do Oriente: Guia Histórico, vol. II,

Lisboa, Livros Horizonte, p. 2.

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A 28 de Outubro de 1856, no contexto do grande desenvolvimento das comunicações e transportes que pautou os anos da Regeneração, é inaugurada a primeira linha férrea nacional, a Linha do Norte, ligando Lisboa - e a ainda não concluída Estação de Santa Apolónia - à Estação do Carregado, e cruzando nesse caminho as pacatas quintas da Zona Ribeirinha Oriental. Precipitava-se o começo de uma nova etapa sem retorno, no destino desta região.