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Parte I Representação, Identidade e Arte

1.4 Arte na contemporaneidade visual

O primeiro critério para uma aproximação crítica do imaginário visual é a necessidade de levar as imagens a sério (Rose, 2007: 35). A afirmação de Gillian Rose, em Visual Methodologies – An Introduction to the Interpretation of Visual Materials, assume- se como eco de distintas posições teóricas em relação ao estatuto das imagens que se começaram a insinuar, de forma mais aguda, na década de 1990. A consciência da centralidade das imagens na produção e reprodução de relações sociais e políticas, na criação de um tecido cultural (cada vez mais global) e na constituição de um mundo eticamente comum levou a que o visual se insurgisse enquanto objecto de um campo de estudos autónomo.

Neste sentido, em 1994, W. J. T. Mitchell acrescenta mais uma viragem às diversas anunciadas no seio das Ciências Sociais e Humanas55: the pictorial turn56. A posição do teórico norte-americano, apesar de colocar a imagem no centro da reflexão, contesta a ideia comummente aceite de que na contemporaneidade tudo é visual. Para Mitchell, a viragem pictórica advém, isso sim, de um entendimento complexo dos dispositivos imagéticos, artísticos ou vernáculos, sendo “a postlinguistic, postsemiotic rediscovery of the picture as a complex interplay between visuality, apparatus, institutions, discourse, bodies and figurality” (Mitchell, 1994: 16)57. Nesta redescoberta reside a necessidade de conceber a

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Doris Bachmann-Medick (2010) defende que o trabalho operado pelos Estudos Culturais deriva da recorrente reorientação da atenção numa ampla paisagem teórica, onde uma coexistência ecléctica de viragens é produtiva. A autora identifica diversas viragens – interpretativa, performativa, reflexiva/literária, pós-colonial, translatológica, espacial e icónica – que confluem para um entendimento do tecido cultural na sua complexidade e na sua natureza fragmentada.

56 Também em 1994, ano em que W. J. T. Mitchell anuncia a “viragem pictórica”, o historiador de arte

alemão Gottfried Boehm utiliza a expressão “viragem icónica” com o objectivo (semelhante ao de Mitchell) de reclamar uma metodologia própria para o estudo da imagem e da experiência visual que contrariasse a hegemonia da textualização accionada pela “viragem linguística” (Rorty, 1992). Para Boehm, a viragem icónica surge, contudo, na sequência da viragem linguística, ao pretender entender a imagem como estrutura de produção de significados, mas dentro de um sistema visual e não na dependência da economia verbal (Boehm, 1994: 31). Também Martin Jay (2002), em Cultural Relativism and the Cultural Turn reflecte sobre a existência de uma viragem em direcção ao visual a partir do pressuposto de que as imagens, não podendo ser tomadas enquanto signos naturais desprovidos de uma codificação cultural, permanecem “excessivas” em relação ao “campo magnético da cultura” (Jay, 2002: 275). A posição de Jay deriva de um entendimento das imagens enquanto signos transculturais, cuja possibilidade de descodificação não pode pertencer a uma cultura específica (ibidem: 274).

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Também Nicholas Mirzoeff (2003) considera que a importância ganha pela cultura visual não está associada a uma sobrevalorização da imagem, mas à tendência moderna em visualizar a existência. Para o autor, a experiência humana é cada vez mais visual e visualizada devido às novas possibilidades

imagem como irredutível ao texto (e vice-versa), assim como a consciência de que não existem artes puramente visuais ou verbais, mas artes compósitas (Mitchell, 1994: 94-95), ao mesmo tempo que os media devem ser entendidos como combinações de diversos códigos, distintas convenções discursivas, variados modos cognitivos e sensoriais (ibidem: 94-95). É da interacção entre texto e imagem (imagens que projectamos a partir de textos, ou textos que produzimos a partir de imagens) que resulta a representação e por isso todas as representações são constitutivamente heterogéneas (ibidem: 5).

Desta forma, a relação entre imagens e linguagem (aqui entendida como manifestação verbal) não deve ser compreendida como binária, mas como dialéctica e dinâmica. Em As Palavras e as Coisas (1998), Michel Foucault afirma que “a relação da linguagem com a pintura é uma relação infinita. [...] Nenhuma pode ser reduzida aos termos da outra: é em vão que dizemos o que vemos, o que vemos nunca reside no que dizemos” (ibidem: 9). Foucault, que influenciou as reflexões de Mitchell, estabelece o visual e o verbal como inconciliáveis numa lógica de inter-tradução e é sobre esta premissa que os artefactos visuais começam a ser abordados a partir de um conjunto de procedimentos singulares. A viragem pictórica de Mitchell é o diagnóstico da consciência científica desta necessidade, não só em relação aos objectos visuais artísticos, mas a todas as imagens. Contudo, como afirma Riccardo Marchi (2007: 84), não existe aqui uma predisposição indiferenciadora do artístico e do vernáculo, as questões que Mitchell coloca aos quadros imagéticos são válidas em ambos os territórios. Este questionamento da imagem é sintomático da necessidade que surge de uma “crítica global da cultura visual” (Mitchell, 1994: 16) e consequentemente de um espaço de discussão académica (inter- disciplinar e institucionalmente aceite, segundo Mitchell) que permita que esse posicionamento crítico decorra no quadro de uma nova epistemologia sensível à matriz global58.

(tecnológicas) de ver o que antes estaria condenado à invisibilidade: de imagens via satélite ao interior do corpo humano. Esta espiral imagética não é, segundo Mirzoeff, uma parte da vida quotidiana, mas a vida quotidiana em si mesma. (cf. Mirzoeff, 2003: 17)

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Em Narrativizing Visual Culture. Towards a polycentric aesthetics, Ella Shohat e Robert Stam afirmam que “The emerging field of ‘visual culture’, for us, potentially represents a break with the Eurocentrism not only of conservative ‘good eye’ art history but also with presumably radical, high-modernism, avant- gardism, which perhaps explains the apoplectic reactions that ‘visual culture’ has sometimes provoked. In our view, ‘visual culture’ as a field interrogates the ways both art history and visual culture have been narrativized so as to privilege certain locations and geographies of art over others, often within a stagist and ‘progressive’ history where realism, modernism, and postmodernism are thought to supersede one another in

A cultura visual assume-se, assim, como nova contenda no meio académico e artístico pelo seu potencial inclusivo e para alguns indiferenciador da diversidade imagética. Em 1996, a conceituada revista October reage ao surgimento da discussão e dedica uma edição especial à reflexão sobre cultura visual em que são apresentadas as respostas de historiadores de arte, arquitectos, críticos literários e artistas a um questionário59 sugerido pelo corpo editorial da revista. Rosalind Krauss e Hal Foster, co- fundadores do projecto, apresentam nesse número posições críticas em relação a um campo que, de acordo com a revista, “is helping to produce subjects for the next stage of globalized capital” (October 77, 1996: 25). Por um lado, Rosalind Krauss afirma que os Visual Studies dependem de uma “nonmaterialist conception of the image: the image as disembodied and phantasmatic” (Krauss, 1996: 96), que apenas permite uma reflexão no campo da virtualidade e da facilidade do consumo imagético imediato. A crítica norte- americana mantém reservas em relação à revolução operada por este novo entendimento alargado de imagem que contempla imagens “desmaterializadas”: será realmente uma insubordinação ou servirá uma forma ainda mais tecnologizada de poder para acomodar os sujeitos desse conhecimento para condições cada vez mais alienantes de saber (ibidem: 96)? As dúvidas de Krauss, de natureza politico-epistemológica, interrogam directamente a associação de um novo modelo académico com a reprodução do modelo do capital global. Hal Foster, por outro lado, mas seguindo a linha de Krauss, assina, no mesmo número, um texto em que afirma que a concentração destas imagens mass-mediadas, naquilo a que se designa como cultura visual, oblitera o facto de muitas delas serem fundamentais para a propagação do capitalismo-espectáculo (Foster, 1996b: 107).

Uma das principais críticas dirigidas ao modelo dos Estudos de Cultura Visual, a par da “desmaterialização da imagem”, reside nas acusações de “ahistoricismo”: uma alienação do conhecimento histórico e da metodologia crítica em que se baseava a História da Arte em benefício de uma aproximação antropológica que fomentou uma mudança da

a neat and orderly linear succession. Such a narrative, we would suggest, provides an impoverished Framework even for European art, and it collapses completely if we take non-European art into account” (Shohat and Stam, 2008:37).

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Em 1996, a conceituada revista October dedica um número à reflexão sobre a emergência da cultura visual enquanto campo de estudos. Contando com Hal Foster e Rosalind Krauss no seu corpo editorial, a revista desafia um conjunto de teóricos e críticos a responderem a quatro questões que denunciam uma posição de cepticismo em relação ao novo projecto epistemológico, nomeadamente no que respeita ao privilégio dado a imagens “desmaterializadas” e virtuais, ao detrimento de uma abordagem histórica em benefício de uma perspectiva antropológica e à indiferenciação das diversas formas imagéticas.

história para a cultura (Foster, 1996b: 106). Foster regressa ao tema em textos posteriores, afirmando, em relação aos Estudos de Cultura Visual, que:

Its ethnographic model might also have this unintended consequence: it might be encouraged to move horizontally from subject to subject across social space, more so than vertically along the historical lines of particular form, genre or problematic. In this way visual studies might privilege the present excessively, and so might support rather than stem the posthistorical attitude that has become the default position of so much artistic, critical, and curatorial practice today. (Foster, 2002: 91)

Este privilégio excessivo do presente, alicerçado naquilo que Foster designa como atitude pós-histórica, constitui um dos argumentos mais comuns entre os detractores deste campo de estudos. Contudo, e como afirma Marquard Smith (2008), os Estudos de Cultura Visual não se dedicam a uma visualidade circunscrita no tempo presente nem assentam numa rasura total do passado, antes interrogam a história enquanto problema do presente na consciência de que “the past can only be glimpsed through the distorting prism of the present” (Smith, 2008: 10).

O cepticismo de Krauss e Foster em relação à emergência desta macro-designação é subsidiário das reservas já expressas sobre a validade científica e metodológica de campos de saber meta-disciplinares como os Estudos Culturais60. Os Estudos de Cultura Visual surgem a partir de um dissenso que questiona a validade de um território – a cultura visual – que pretende discutir, de forma diacrónica, aquilo que as imagens querem e “what pictures want in the last instance, then, is simply to be asked what they want, with the understanding that the answer may well be, nothing at all” (Mitchell, 1996: 82). É esta a frase com que Mitchell finaliza o artigo publicado no n.º 77 da revista October, em que o teórico norte-americano esboça uma espécie de manifesto da cultura visual que será depois sistematizado em Showing Seeing: A Critique of Visual Culture (2002). A partir da refutação daquilo a que chama mitos (e falácias) sobre a cultura visual – a indiferenciação entre objectos artísticos e não artísticos, a transformação da história de arte numa história das imagens, um entendimento desnaturalizado da visão a partir da convicção de que a

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Em 1997, Rosalind Krauss afirma em entrevista a Scott Rothkopf que “like cultural studies, visual culture is aimed at what we could call pejoratively, abusively, deskilling. Part of that project is to attack the very idea of disciplines which are bound to knowing how to do something, certain skills. Obviously, in French literature you would to be able to read French very well, not just modern French but Medieval French. In art history there are also skills, like connoiseurship, and at least some slight knowledge of conservation” (Krauss

visualidade é a construção social do visual, a existência de um nexo homogéneo de objectos que se pudessem designar como media visuais, o facto de no campo da cultura visual a imagem ser abordada numa perspectiva ahistoricizada, entre outros (cf. Mitchell, 2008: 90) – Mitchell estabelece as coordenadas daquilo que se ocupa esta área do saber.

A cultura visual dedica-se, assim, a uma visualidade que não é apenas a construção social da visão, mas a construção visual do social e de um olhar composto pelo exercício simultâneo de olhar e ser olhado. É esta a macro-tese de Mitchell que defende que este campo académico: a) estimula a reflexão sobre as diferenças entre objectos artísticos e não artísticos, signos verbais e visuais; b) investiga os territórios do visível e do invisível, daquilo que não foi visto ou daquilo que foi alvo de olhares diversos; c) estende o seu campo de acção para lá dos artefactos puramente visuais, reflectindo sobre fenómenos sinestésicos61; d) não se limita a estudar imagens, mas interroga as dinâmicas quotidianas de ver e mostrar; e) tem uma abordagem, crítica, analítica e hermenêutica sobre os objectos (cf. ibidem: 90-91).

A prolífica produção académica da década de 1990 levou a que, a par de uma tentativa vigorosa de clarificação epistemológica e metodológica desta (inter-)disciplina, se começassem a desvelar linhagens e tendências dentro deste campo de estudos que tanto aborda a visualidade numa perspectiva ontológico-cognitiva, interrogando a forma como as imagens estabelecem relações com os espectadores, como os afectam e interpelam (Freedberg, 1989; Marin, 1993; Sontag, 2002) como numa inclinação semiótica que se debruça sobre o modo como os quadros imagéticos se insinuam como práticas significantes ancoradas em sistemas ideológico-políticos (Hall, 1996; Mirzoeff, 2002). A integração destas posições críticas permite que a cultura visual, assim como o seu estudo, conglobe um léxico alargado de constructos e ferramentas que permitem discutir a visualidade como “[...] forma de produção de imagens, ainda que mentais ou virtuais, e as relações que estabelecem com o sistema cultural envolvente” (Gil, 2011a: 22).

Jessica Evans e Stuart Hall, na introdução ao volume Visual Culture: a Reader (2009), defendem que “ ‘the image’ is invariably articulated within the picturing sensibilities of a wider ‘visual culture’ ” (ibidem: 7). É este entendimento de imagem como contextualmente produzida e recebida, e cujo “significado” está dependente da sua

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Sobre a visualidade enquanto fenómeno sinestésico que contempla, para além de experiências visuais, fenómenos sonoros, tácteis, hápticos, entre outros, vejam-se Cooley (2004) e Crary (2001).

localização cultural, que marca o caminho metodológico dos Estudos de Cultura Visual. A inclusão na nomenclatura disciplinar da palavra cultura revela per se que as imagens se tornaram saliências essenciais da viragem cultural (Dikovitskaya, 2005)62, podendo a visualidade ser entendida como o conjunto de relações entre o verbal e o visual num contexto que é sempre social e ideológico, e “by retaining the term culture in the foreground, critics and practitioners alike are reminded of the political stakes inherent in what we do” (Mirzoeff, 2008: 6). Nicholas Mirzoeff defende que a cultura visual é uma táctica para lidar com o agenciamento operado pelos dispositivos visuais da contemporaneidade, que se manifestam em diferentes níveis de (in)visibilidade, accionando estruturas de poder e estabelecendo sistemas discursivos (idem, 2003, 2008). Neste sentido, a visualidade constitui-se dentro de um determinado regime escópico63: a matriz cultural e política e a teia tecnológica que medeia os eventos visuais. Ao reflectir sobre a (co)existência de regimes escópicos64, Martin Jay interroga exactamente essa dimensão contextual, cultural e política que condiciona, por um lado, a forma como exercemos o olhar, mas permite, por outro, encontrar alternativas aos aparatos de condicionamento visual (Jay, 1988, 2012).

A visualidade, enquanto articulação do material e do simbólico num campo de diferenças, conflitos, formações e deformações identitárias, relação tensional entre imagem e palavra, visível e invisível, presente e passado, assume-se, assim, como campo iminentemente cultural. A definição de cultura visual de Marita Sturken e Lisa Cartwright coloca, exactamente, a tónica na dinâmica relacional e contextual (e logo, cultural) em que a significação visual acontece:

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Em Visual Culture: The Study of the Visual After the Cultural Turn, Margarita Dikovitskaya defende que foi a ‘viragem cultural’ que tornou possível a emergência dos Estudos de Cultura Visual (a autora utiliza a designação ‘Visual Studies’), afirmando que “The cultural turn brought to the study of images a reflection on the complex interrelationships between power and Knowledge. Representation began to be studied as a structure and process of ideology that produces subject positions” (Dikovitskaya, 2005: 48).

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O conceito de regime escópico terá sido cunhado por Christian Metz que, em The Imaginary Signifier (1981), distingue o teatro do cinema a partir da diferenciação do regime escópico em que operam: “what defines the specifically cinematic scopic regime is not so much the distance kept [...] as the absence of the object seen” (Metz, 1981: 61)

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No texto Scopic Regimes of Modernity, Martin Jay questiona a existência de um único regime escópico que condiciona a forma como vemos ou a existência de vários regimes que competem entre si (Jay, 1988: 3). A partir da descrição do funcionamento de diferentes regimes que ainda hoje coexistem, Jay espera que “we may learn to wean ourselves from the fiction of a ‘true’ vision and revel instead in the possibilities opened up by the scopic regimes we have already invented and the ones, now so hard to envision, that are doubtless to come” (ibidem: 20).

[...] we are defining visual culture as the shared practices of a group community, or society through which meanings are made out of the visual, aural and textual world of representations and the ways that looking practices are engaged is symbolic and communicative activities. (Sturken e Cartwright, 2009: 3)

A partir de um entendimento de cultura ancorado nas reflexões de Raymond Williams e Stuart Hall – em que a cultura é tomada, não enquanto um conjunto de objectos (séries televisivas ou pinturas, por exemplo), mas como uma multiplicidade de processos e práticas através dos quais indivíduos ou grupos atribuem significados e estabelecem relações –, as autoras defendem que a cultura é um processo fluido e interactivo, baseado em práticas sociais multimodais e multissensoriais e não apenas em imagens, textos ou interpretações (ibidem: 4). Neste sentido, a complexidade da cultura (visual) exige uma aproximação multi e interdisciplinar, partindo do pressuposto de que estamos perante um novo objecto de estudo “that belongs to no one” (Bal, 2003: 7). A interdisciplinaridade inerente aos Estudos de Cultura Visual, diz Mitchell, deve ser também encarada como ‘indisciplina’, momento de caos e turbulência que obriga a um questionamento do método e da prática e obriga a encontrar uma problemática, mais do que um objecto teórico circunscrito (Mitchell, 1995: 541). É nessa possibilidade de saber indisciplinado que os Estudos de Cultura Visual encontram maior afinidade com a permissividade criativa característica da produção artística contemporânea. Se Arthur C. Danto afirma que, na arte dos nossos tempos, “tudo é permitido” (Danto, 1997:12), Jacques Rancière refere-se à estética contemporânea como o ‘pensamento da nova desordem’:

Aesthetics is the thought of the new disorder. This disorder that the hierarchy of subjects and of publics becomes blurred. It implies that artworks no longer refer to those who commissioned them, to those whose image they established and grandeur they celebrated. Artworks henceforth related to the ‘genius’ of the peoples and present themselves, at least in principle, to the gaze of anyone at all. (Rancière, 2009: 13)

A arte contemporânea, ao assumir-se não só enquanto quadro temporal de produções artísticas datadas, mas como produto e produtora das macrodinâmicas contemporâneas como a globalização, a falência de metanarrativas, a reflexão sobre a problemática identitária na sua relação com subjectividades múltiplas, acumula novas responsabilidades no campo da axiologia do olhar. O olhar, entendido enquanto competência humana que se

estende para lá da capacidade fisiológica de ver, não pode ser tomado como neutro (Gil, 2011a: 13). Tendo como característica congénita a reciprocidade, o olhar inscreve o acto de ver num território alargado de sociabilidade, que condiciona e é culturalmente condicionado, onde a relação com a alteridade, o conflito e os exercícios de codificação e descodificação são constantes.

Se a obra de arte na era da reprodutibilidade técnica se emancipou, em certa medida, da sua função ritualista, preterindo o ‘valor de culto’ em benefício do ‘valor de exposição’, como afirma Walter Benjamin num texto fundador do pensamento crítico sobre a cultura visual, na era da sua repercussão global65, a obra de arte revela-se nos efeitos dessa exposição alargada – “a quantidade transformou-se em qualidade: o número muito mais elevado de participantes provocou uma participação de tipo diferente” (Benjamin, 1992: 108). O cidadão contemporâneo (assim como o artista), condenado a ocupar um mundo hiper-imagenado (expondo e exposto a olhares diversos), vê a qualidade dessa participação condicionada pelas capacidades de percepção imagética, aquilo que se pode designar por literacia visual. Este conceito oriundo da História de Arte, mais especificamente dos estudos de James Elkins (2008), tem vindo a ganhar um novo fôlego num raio de acção mais alargado. Isabel Capeloa Gil, que se dedica largamente ao tema em Literacia Visual – Estudos sobre a Inquietude das Imagens (Gil, 2011a), reclama que para