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Iustração 7 Estabelecendo hábitos de vida saudável na infância

4.1 Medicina e educação

4.1.3 Arthur Ramos e o conceito de criança problema

A difusão das idéias do Escolanovismo no Brasil teve como já apontamos entre seus participantes muitos profissionais oriundos principalmente do direito e da medicina. Entre os diversos colaboradores de Teixeira, destaca-se o médico psiquiatra alagoano Arthur Araújo Pereira Ramos que foi o idealizador e coordenador do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental do Rio de Janeiro entre os anos de 1934 e 1939. Este órgão era na realidade uma espécie de serviço de apoio ao projeto de reforma educacional que o educador baiano empreendeu no ensino público da então Capital Federal.

A idéia original era que o mencionado serviço assistisse os alunos das escolas públicas considerados pelos professores e diretores como indivíduos incapazes de aprender. As crianças seriam submetidas a uma série de testes (médicos, psicológicos, vocacionais e outros) que teriam a função de dar um diagnóstico preciso sobre seu comportamento, ou mesmo indicar algum problema de natureza orgânica que estivesse dificultando a sua capacidade de aprendizagem.

Analisando os diversos casos de alunos que o órgão recebia, Arthur Ramos considerou que a maioria dos alunos encaminhados não possuía nenhum problema de natureza física ou congênita que indicasse o afastamento destas crianças da escola pública comum. Na realidade dois grandes empecilhos dificultavam a aprendizagem, ou seja, as péssimas condições sociais de vida dos menores e o despreparo dos mestres e educadores para tratar com a clientela. Uma das alternativas apontadas por Ramos seria levar os docentes a conhecerem a psicanálise para de esta forma poder lidar melhor com o comportamento dos estudantes tidos como rebeldes e sem condições de aprendizagem.

Era inegável a contemporaneidade das idéias de Arthur Ramos neste aspecto. Também em diversos outros momentos de sua obra acabamos nos surpreendendo com sua

aguçada visão social dos problemas que afetavam e que de certa forma ainda continuam atravancando a plena universalização da educação na sociedade brasileira.

Nesse item iremos discutir algumas observações de Arthur Ramos quando se refere à criança problema como conceitos, tipologias, estratégias de intervenção e outros.

A obra “A Criança Problema”, foi publicada diversas vezes. A edição aqui utilizada nesta análise foi a quarta (revista), publicada em 1950 pela Livraria e Editora Casa do estudante do Brasil do Rio de Janeiro. Estava dividida em duas partes (As causa e problemas) e vinte capítulos, acrescentando ainda a introdução e a conclusão. Tratava-se de uma obra de fôlego, com mais de 400 páginas que procurava dar conta de um assunto complexo e polêmico mesmo para aquele período.

Ilustração 13 - Capa do livro "A Criança problema" edição de 1950.

Arthur Ramos, procura desde o início de seu estudo, diferenciar criança problema das chamadas “anormais”, utilizando aqui uma terminologia da época. O próprio autor considerava que o termo “anormal” era impróprio em todos os sentidos, ou seja, desde o início do século XX, Ramos já verificava problemas na utilização da terminologia. Isso porque muitas crianças com qualquer problema de aprendizagem já recebiam esse rótulo, sendo que seu maior problema era de ordem social ou familiar.

Era perceptível a contemporaneidade de Ramos nesse aspecto, uma vez que ainda recentemente as crianças com dificuldades de aprendizagem eram encaminhadas para

escolas de educação especial, sendo que na realidade, outros fatores, que não eram de origem orgânica estavam interferindo no seu processo de aprendizagem. Quando se discutia a inclusão de crianças portadoras de necessidades especiais, logo surge o discurso de que eles não eram educáveis e, portanto não iriam acompanhar os tidos como indivíduos “normais”. Como afirmava o médico alagoano: “Esta denominação – imprópria em todos os sentidos – engloba o grosso das crianças que por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade em paralelo aos outros companheiros, os normais” (RAMOS, 1950, p.13).

Pelos estudos realizados em mais de 2000 estudantes, ao longo de cinco anos de atividade do Serviço de Higiene Mental, Ramos constatou que somente uma pequena porcentagem dos alunos apresentava problemas sérios de disfunção orgânica. “Aqueles escolares que, em virtude de defeitos constitucionais hereditários, ou de causas várias que lhes produzem um desequilíbrio das funções neuropsíquicas, não poderiam ser educados no ambiente da escola comum” (RAMOS, 1950, p.13).

Os testes de Q.I. (quociente de inteligência) que até bem pouco tempo atrás eram muito utilizados por escolas, médicos, psicólogos, etc. como importante mecanismo para medir a inteligência já eram criticados por Ramos, na década de 1930. Segundo o autor os testes desenvolvidos inicialmente por Binel e Simon em 1907, acabaram por reduzir a área de atuação de profissional da educação na medida em que “a extrema atividade testologizante [...] tem atravancado a pedagogia de nossos dias” (Ramos,1950, p12). Mais uma vez a percepção crítica do médico alagoano surpreende, tanto pela sagacidade intelectual, quanto pela antecipação de pontos de vista que somente algumas décadas depois foram efetivadas.

Ao longo de todo livro Arthur Ramos procurava afastar a possibilidade de problemas mentais nas chamadas crianças problemas. A argumentação do intelectual era construída no sentido de atribuir ao meio social e cultural em que vive o menor como sendo o grande responsável pelo comportamento inadequado que apresentava na escola. Ele chegava mesmo a mencionar a carência afetiva:

[...] Muitos casos classificados mesmo como atraso mental, são realmente de

falsos atrasos. [...] As crianças ‘caudas de classe’ nas Escolas, insubordinadas, desobedientes, instáveis, mentirosas, fujonas... na sua grande maioria não são portadoras de nenhuma ‘anomalia’ moral, no sentido constitucional do termo. Elas foram ‘anormalizadas’ pelo meio. Como o homem primitivo cuja ‘selvageria’ foi uma criação de civilizados também na criança, o conceito de “anormal” foi antes de tudo, o ponto de vista adulto, a conseqüência de um enorme sadismo inconsciente de pais e educadores (RAMOS, 1950, p.18).

O discurso acima descrito não parecia ter sido escrito a mais de 70 anos atrás, ele se parecia com qualquer outra argumentação da produção acadêmica da pedagogia recente. Talvez estivesse aqui um dos principais valores da história e em especial da história da educação, ou seja, desmascarar falsas idéias, mitos e preconceitos em relação ao passado como algo sepultado e distante da atual realidade. Através do estudo da história podemos perceber o quanto o passado ainda sobrevive no presente e vice-versa, principalmente no caso de Arthur Ramos que conseguiu em muitos aspectos, antecipar-se ao seu tempo.

Miranda (2006) estudou o caso de uma escola localizada na periferia de Belo Horizonte caracterizada por casos graves de violência e indisciplina e um ambiente de precárias condições de moradia, envolvimento de crianças e jovens com tráfico de drogas, dificuldades escolares e encaminhamento de estudantes para saúde mental. Verificou a autora por meio de pesquisa empírica que o conceito de criança problema cunhado por Ramos permanecia válido mesmo ainda nos dias atuais. Apesar do tempo e das insistentes advertências do médico alagoano para a identificação e inclusão destas crianças a situação sofreu poucas alterações ao longo do tempo na escola brasileira e por que não dizer na cultura escolar do país. Assim a autora avaliou a contribuição de Ramos:

Um estudo cuidadoso da obra de Ramos ([1939] 1947) sobre a “criança- problema”, entretanto, vai nos levar a uma circunscrição contextualizada da problemática, com as ferramentas de que seu fundador dispunha nas primeiras décadas daquele tempo. O acesso às concepções que delimitaram as caracterizações da “criança-problema” daquele momento propiciará denso material para confrontos com enunciações procedentes na contemporaneidade (SANTIAGO e MIRANDA, 2008, p. 5).

Autores como Aquino (1996), La Taile (1998) e outros que estudaram o problema da indisciplina na escola consideravam que existia uma forte influência do contexto social que interfere diretamente no comportamento dos educandos, daí a necessidade do educador compreender essa realidade, para melhor desenvolver estratégias de ação pedagógica. Embora falando do papel do higienista mental, Ramos já indicava alguns dos argumentos utilizados pelos autores citados, como constava neste fragmento.

O moderno higienista mental nas Escolas deve fugir às classificações rígidas, que visam, dar rótulos às crianças desajustadas [...] o seu interesse deve ser para o estudo do psiquismo normal e das influencias deformantes do meio social e cultural (RAMOS, 1950, p.19).

A fim de fugir da conotação “normal” e “anormal” que como demonstrou Ramos era insuficiente para categorizar uma criança com dificuldades de aprendizagem e de

adaptação ao meio escolar, o autor criou o conceito da criança problema. O termo problema está muito mais relacionado com as condições sociais que o menor vive e que dificulta a sua capacidade de atenção e aprendizagem. Ao longo do texto o médico vinha afirmando que o meio era o elemento decisivo, que molda o comportamento das pessoas, portanto elas não podem ser responsáveis diretas, no caso os estudantes desajustados, pelas suas atitudes pouco aceitáveis. Essa forte responsabilidade do contexto sócio-cultural na personalidade das pessoas aproxima Ramos da idéia de Rousseau (1999) de que o homem nasce bom, porém a sociedade o corrompe.