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ARTIGO 2 Sofrimento moral do estudante de enfermagem: mito ou realidade?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

3.2.2 ARTIGO 2 Sofrimento moral do estudante de enfermagem: mito ou realidade?

Heloiza Maria Siqueira Rennó, Flávia Regina Souza Ramos; Maria José Menezes Brito

RESUMO

Introdução: Durante o processo de formação, o estudante de enfermagem vivencia conflitos e dilemas éticos que podem provocar diferentes sentimentos e sofrimento moral. O sofrimento moral pode retirar do estudante seu potencial de ação, podendo acarretar problemas para a sua saúde física e mental. Objetivo: As experiências dos estudantes foram investigadas a fim de identificar a existência de sofrimento moral frente às vivências de conflitos e dilemas éticos durante a formação em enfermagem. Método: Estudo de casos múltiplos de abordagem qualitativa. Os campos de estudo foram duas Instituições de Ensino Superior Federal, tendo como participantes 58 estudantes de graduação em enfermagem, que realizavam o estágio curricular. Os dados foram coletados por meio de grupos focais e foram submetidos à Análise Temática de Conteúdo, com os recursos do software ATLAS.ti 7.0. Resultados: O sofrimento moral dos estudantes é uma realidade e foi sintetizado em três eixos de análise: (a) O sofrimento moral na realidade dos serviços de saúde; (b) O professor como fonte de sofrimento; (c) O sofrimento moral como experiência positiva. Conclusões: O estudante de graduação em enfermagem manifesta o sofrimento moral e outros sentimentos em diferentes fases de formação, sobretudo durante o estágio curricular. A comunidade acadêmica deve refletir e buscar soluções para as a realidade do sofrimento moral dos estudantes.

PALAVRAS-CHAVE: Estudantes de enfermagem; Ética; Educação em

Enfermagem.

ABSTRACT

Introduction: During the process of training, nursing students experience conflicts and ethical dilemmas that can cause different feelings and moral distress. The moral distress can withdraw your student action potential, which may cause problems for their physical and mental health. Objective: The experiences of students were investigated to identify the existence of moral distress in the face of livings of conflicts and ethical dilemmas during training enfermagem. Método: multiple case study of qualitative approach. The fields of study were two Federal Institutions of Higher Education, with the participants 58 graduate students in nursing, who performed the traineeship. Data were collected through focus groups and underwent Content thematic analysis with the capabilities of ATLAS software. ti 7.0. Results: The moral distress of the students is a reality and was synthesized in three axes of analysis: (a) moral distress in the reality of health services; (b) The teacher as a source of suffering; (c) The moral distress as a positive experience. Conclusions: The graduate student in nursing expresses moral distress and other feelings at different stages of formation, especially during the traineeship. The academic community should reflect and seek solutions for the reality of the moral distress of students.

INTRODUÇÃO

No decorrer do processo de formação, os estudantes do curso de graduação em Enfermagem se deparam com situações caracterizadas pela banalização dos princípios éticos e dos valores morais. As transformações sociais, políticas, ideológicas e tecnológicas requerem processos formativos que levem em consideração a educação moral, voltada para relações humanas complexas, englobando as dimensões ético-morais dos valores e dos sentimentos.

Neste estudo, adotaremos a perspectiva de Cortina que compreende a ética e a moral com uma etimologia similar, significando caráter, costumes, sendo, pois, entendidas como sinônimas. A ética é um saber filosófico que reflete sobre a formação do caráter e sobre as questões morais.1

No Brasil o ensino de graduação, entre outras regulações gerais, é orientado por diretrizes especificas a cada área profissional ou curso. Mesmo que as escolas possuam autonomia para definir as propostas curriculares, estas devem atender a tais normativas, como no caso das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de Enfermagem. As diretrizes incorporam demandas do desenvolvimento técnico-cientifico e ético da profissão. Entende-se que para atender as demandas por uma formação ética no Brasil é imperativo que as propostas pedagógicas dos Cursos atendam não apenas as normativas legais, mas também as políticas nacionais que se relacionam à formação em saúde, objetivando a aquisição de conhecimentos e habilidades para um profissional crítico e consciente de sua responsabilidade ética e política.2-4

Nesta perspectiva, os currículos devem contemplar a inserção dos estudantes nos serviços de saúde e comunidade desde o início do curso, favorecendo a integração ensino- serviço e visando a melhoria da qualidade de atenção à saúde e à efetiva formação profissional.3-4 A inserção dos estudantes nos serviços de saúde deve proporcionar a aquisição de conhecimentos e o compromisso ético de cuidado, em especial, no último dos cinco anos do curso de Enfermagem, no denominado estágio curricular, no qual o estudante tem oportunidade de colocar em prática os conhecimentos técnicos e científicos adquiridos durante todo o curso.

O estágio curricular, de acordo com as DCN, favorece o desenvolvimento da autonomia dos estudantes, a capacidade de compreender e se posicionar no mundo do trabalho. Aprender em situações novas, conviver e acolher a diversidade são algumas das questões relevantes na formação do enfermeiro.2

A despeito de sua relevância no processo formativo do enfermeiro, o estágio curricular pode propiciar a vivência de situações conflituosas e desgastantes, próprias do cotidiano do trabalho na saúde, relacionadas a atividades na natureza assistencial e gerencial. Tais vivências podem ser desencadeadoras de desequilíbrios físicos, emocionais e de sofrimento moral.

Especificamente no que concerne ao sofrimento moral na enfermagem, este é um tema que vem sendo discutido, desde as primeiras publicações até as mais atuais, em enfoques que priorizam o contexto do cuidado clínico, especialmente nas unidades de terapia intensiva, em situações críticas que envolvem reflexão e decisão éticas.5-6 No contexto de formação do enfermeiro foram realizados poucos estudos sobre o sofrimento moral do estudante, nos quais os autores ressaltam que o sofrimento moral pode retirar do estudante seu potencial de ação, transformando-o em um sujeito passivo, reforçando estados de dominação preexistentes na enfermagem, podendo acarretar problemas para a saúde física e mental.7-11

Conceitualmente, o sofrimento moral é considerado um sentimento de impotência, resultante da incapacidade de realizar uma ação percebida como eticamente adequada. Assim, o sofrimento moral surge quando o indivíduo não encontra condições para atuar conforme seu julgamento e valores, entendendo como inadequada sua participação moral. 5-6

Na formação em enfermagem, o enfoque do sofrimento moral exige o desenvolvimento de uma forma de olhar mais abrangente que considere a multiplicidade de fatores e de aspectos éticos envolvidos nos processos de ensino-aprendizagem, com ênfase nos estágios curriculares, durante as vivências de integração ensino-serviço e comunidade. Esta fase da formação é marcada por relações intensas e complexas com a comunidade, com a equipe multiprofissional e com os gestores dos serviços no contexto da rede de atenção à saúde.

O estágio curricular é um espaço privilegiado de vivências das questões éticas durante a formação do enfermeiro, possibilitando ao estudante a superação de conflitos e dilemas éticos na assistência e gerência de enfermagem. Tais vivências podem estar relacionadas a dificuldades do estudante para o exercício da deliberação moral e advocacia do paciente.12

É no âmbito dessa reflexão, que o tema do sofrimento moral em estudantes durante o processo de formação deve ser enfatizado e discutido para a promoção de mudanças na graduação em enfermagem. Na formação, os professores são fundamentais por construírem estratégias que promovam a reflexão e deem visibilidade à ética, principalmente, mediante os problemas práticos (11).

O presente estudo foi mobilizado pelo pressuposto de que vivências de questões éticas durante o processo de formação dos estudantes de enfermagem podem desencadear o sofrimento moral e outros sentimentos, com acometimentos de ordem física e psicológica e, ainda, o abandono do curso. A questão central foi identificar a existência de sofrimento moral dos estudantes frente às vivências de conflitos e dilemas éticos durante a formação em enfermagem, não apenas para desvelar um fenômeno ainda pouco conhecido, mas, também, para destacar a necessidade de problematização, no ensino na enfermagem, das causas e consequências do sofrimento moral para a socialização profissional e desmistificar a inexistência do SM para os estudantes.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo de casos múltiplos, com abordagem qualitativa, realizado com estudantes de graduação em enfermagem de duas instituições públicas de ensino superior brasileiras, sendo uma da região Sul e outra do Sudeste do Brasil. Pretenderam-se benefícios analíticos mais substanciais ao analisar cursos de graduação com propostas de formação e realidades socioculturais e históricas diferenciadas.

A coleta de dados foi realizada por meio de amostra de conveniência, com oito grupos focais, no período de maio a outubro de 2014. Inicialmente foi realizado o contato com os professores responsáveis pelo estágio, em seguida agendado os encontros com os estudantes para a realização do grupo focal, que foi conduzido pelo pesquisador discente do doutorado.

Antes da realização do grupo, os estudantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e como essa seria conduzida, sendo que não houve conflito de interesses entre pesquisador e participantes. Foram convidados a participar todos os 71 estudantes que estavam cursando o estágio curricular nos diversos níveis de atenção à saúde, sendo que 13 estudantes recusaram o convite, o que foi justificado por terem assumido outros compromissos anteriormente. Participaram do estudo 58 estudantes, após assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

A média de estudantes por grupo focal foi de oito, e a duração do grupo foi de aproximadamente 90 minutos, utilizando-se o gravador digital para registro e fidedignidade dos dados. A realização de um grupo focal por grupo de estudantes foi suficiente para responder aos objetivos do estudo. A questão norteadora dos grupos focais foi direcionada para a identificação de vivências de sofrimento moral durante o estágio curricular na

graduação em enfermagem. Os grupos focais foram identificados por números de 1 a 8 e as instituições de ensino, pelas letras A e B.

Para a análise dos dados foi realizada a Análise Temática de Conteúdo com os recursos do software ATLAS.ti 7.0.13-14 O software é projetado de modo a permitir o armazenamento, a exploração e o desenvolvimento de ideias e/ou teorias sobre os dados. As etapas da análise incluíram a inserção do corpus documental no software ATLAS.ti, leitura e releitura dos documentos; seleção e codificação do conteúdo, agrupamentos dos códigos semelhantes em subcategorias e categorias.

A pesquisa foi analisada e aprovada pelas instituições envolvidas no estudo e pelo Comitê de Ética em Pesquisa de Seres Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais com Parecer 648.399, sendo assegurados todos os direitos aos participantes.15

RESULTADOS

Os estudantes relataram a existência de sofrimento moral durante todas as etapas do processo de formação em enfermagem, com ênfase no estágio curricular, conforme exemplificado:

Presente em todas as fases do curso, tanto em relação a disciplinas, campo de estágio, relações pessoais. Ocorre quando situações saem do meu controle, inesperadas ou que são ao contrário do que considero correto (G.1.B).

Durante o estágio, sentimentos relacionados a situações do cotidiano de trabalho

reconhecidas como “rotineiras” por profissionais do serviço não são consideradas pelos

estudantes como sofrimento moral sob o argumento de que são sentimentos oriundos da inexperiência profissional:

Então, coisas pequenas, que talvez para outros profissionais não fizessem tanta diferença, a gente acaba sofrendo bem mais (G.7.A).

No entanto, o estudo apontou aspectos centrais sobre o sofrimento moral durante o processo de formação em enfermagem que foram assim categorizados: os serviços de saúde como lócus de sofrimento moral, o professor como fonte de sofrimento moral e o sofrimento moral como experiência positiva – “sofrendo e aprendendo” –, conforme síntese a seguir: