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CAPÍTULO 2: O MATRISMO

2.1 A artista que não perdeu a Rosa

Entre as décadas de 1960 e 1970, Portugal vivencia muitos acontecimentos importantes para além das lutas políticas internas, tais como as Guerras de Libertação nos países africanos (ex-colônias) como Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.32 A Revolução de Abril de 1974 constitui um marco

histórico para a política de Portugal, porque além de representar um tempo de redemocratização, também conduz a volta à liberdade social e cultural do povo português, daía a razão de ser festejada e relembrada (MAXWELL, 2006; SECCO, 2004)33. Natália Correia é uma das protagonistas dessa festa, não só por a ter vivido, mas por ser ela mesma a encarnação do espírito defensor libertário. Sua obra foi escrita durante quase meio século (1945-1993), dentre os quais apenas 19 anos em regime democrático (1974-1993), contra 31 anos dentro de um cenário ditatorial e de um tempo censorial, em que a autora teve oito de seus livros confiscados.

32 Seguindo a sugestão de Jorge Vicente Valentim, para fim de esclarecimentos do significado político da queda da

cadeira de Salazar e a a troca da Chefia de Estado para as mãos de Marcello Caetano, é importante consultar a “extensa biografia de Salazar, assinada por Filipe Ribeiro de Menezes (2011), sobretudo os capítulos XI e XII, onde também se poderá ter um panorama dos conflitos na África; além dos densos trabalhos de investigação de Dalila Cabrita Mateus (1999) e Norrie MacQueen (1998), sobre os acontecimentos da década de 1960, antes, durante e depois dos movimentos de libertação dos países africanos em relação ao colonialismo português” (VALENTIM, 2020, p. 1018)

33 Acredito que seja importante, antes de seguir adiante, apontar o seguinte questionamento: será mesmo que a

Revolução de 1974 trouxe de fato a descolonização também das mentes? É certo que o movimento revolucionário proporcionou transformações relevantes, principalmente quando falamos na redemocratização do Estado. Entendo, porém, que não podemos fechar os olhos para as violências remanescentes. Lemos, na maioria das vezes, na fortuna crítica muito positiva a respeito da Revolução, como se ela tivesse sido uma “salvadora” e tivesse mudado as mentalidades do dia para noite, quando, na verdade, o que se sabe é que, até os dias de hoje, Portugal preserva um ranço conservador, machista, misógino, racista e xenofóbico (vide, por exemplo, o crescimento da extrema-direita e seu representante nas últimas eleições presidenciais). No meu entender, tão importante quanto descolonizar os antigos territórios africanos ocupados e libertar a nação dos ditames ditatoriais, é descolonizar os espíritos e limpar o ranço dessa educação paternalista. Como bem acentua José Mattoso, “A revolução de Abril liberalizou a sociedade portuguesa, tornou-a uma sociedade democrática, mais justa e tendencialmente paritária. [...] Apesar das conquistas de Abril e da crescente valorização dos direitos humanos, e das mulheres em particular, no que concerne ao exercício da violência no espaço doméstico, as mentalidades converteram-se tímida e paulatinamente e o quotidiano da vida familiar, nas décadas que se seguiram à Revolução de 74, acompanhou de forma espaçada as alterações que foram sendo consagradas na lei. Muitas mulheres continuaram a sofrer a dureza de certos actos e o ímpeto violento de alguns comportamentos às mãos dos maridos e companheiros” (MATTOSO, 20011, p. 122-123). Quanto à representação feminina no poder, a percentagem de mulheres no parlamento nacional quadruplicou, desde 1976 à atualidade, e tem vindo a aumentar no que respeita a cargos governamentais, embora o mesmo não se verifique ao nível local, onde a presença feminina é substancialmente mais reduzida. Estas mudanças econômicas, sociais e políticas foram acompanhadas por profundas mudanças no contexto familiar: o casamento enquanto instituição perdeu peso; assistimos à redução das taxas de natalidade do número de filhos por casal; ao aumento do número de divórcios; e ao aparecimento de novas formas de família (WALL, 2005). Ainda no âmbito familiar, mas no que respeita à ocupação doméstica, um dos domínios em que a ideologia de gênero se expressa, apesar de alguns sinais de mudança nas últimas décadas, os critérios de divisão de tarefas domésticas continuam claramente genderizados, dado num contexto onde predominam os casais em que ambos os cônjuges têm um trabalho remunerado (cerca de 70%), mais da metade das tarefas domesticas são desempenhadas apenas por mulheres (WALL & GUERREIRO, 2005; GONÇALVES, 2012).

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Natália Correia aspirava pela poesia como dimensão da vida, tanto que seu texto mais conhecido (“A defesa do poeta”) imprime o fazer poético como uma necessidade básica humana, expressando a fome de fazer poesia que lhe corria nas veias: “Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer” (CORREIA, 2000, p. 330). Esse sentimento era-lhe tão eminente que, em uma entrevista34 sobre qual seria seu sonho de felicidade, a autora veio a responder: “Não haver

necessidade de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida” (CORREIA In SOUSA et al, 2004, p. 15)

Além de sua extensa obra poética, de seus romances e sua atuação crítica como jornalista, Natália Correia manteve um diário, escrito durante o período entre a queda do Estado Novo e as manifestações militares até o chamado verão quente35 (mais especificamente entre 25 de abril de 1974 e 20 de dezembro de 1975). Em Não percas a Rosa, a resposta à questão que se lhe colocava foi se revelando ao longo do processo (da revolução e da escrita):

Como era possível viver a festa e simultaneamente relatá-la? A explicação ir-se- ia atualizando à medida que a contumácia das experiências vividas no cotidiano revolucionário, agindo fortemente sobre a minha consciência, me um desvendando uma vida de sentido espiritual em que fui reconciliando comigo mesma ao arrepio dos destroços da estatuária ideológica quebrada. (CORREIA, 2015, p. 28)

Essa ideia de “festa” nos meses seguintes ao 25 de Abril parece ter sido uma impressão de muitos, mas não sentida da mesma forma, tal como se pode constatar em alguns relatos: “Durante um ano e meio Portugal viveu uma festa desordenada, com dezenas de grupos políticos brigando por todos os espaços possíveis” (ALVES, 1999 apud FREIXO, 2018, p. 255); “No que teve de pior, Portugal depois do golpe parecia um pedregulho subitamente revirado a revelar milhares de insectos que se agitavam freneticamente sob a luz. No seu melhor, Portugal era um jardim de folhagem frágil, brilhante e emaranhada.” (MAXWELL, 1999, p. 79).

34 Entrevista “O questionário de Proust”, publicada no Jornal de Letras e Artes, Lisboa, 28 de março de 1962. (SOUSA

et al, 2004, p. 9)

35O chamado Verão Quente foi um momento de muitas tensões políticas entre Governo, Forças Armadas e Sociedade

civil em Portugal. Foi um período de oito meses, entre Março e Novembro de 1975, após a Revolução dos Cravos em que parecia o início de uma guerra civil (e que seria muito capaz de alastrar para a Espanha). Foi um dos momentos mais delicados do processo revolucionário, já que as forças politicas estavam muito polarizadas entre esquerda e direita e entre os que defendiam uma via eleitoral e o caminho revolucionário. Uma das consequências deste confronto, além da crise política e econômica gerada, foi o afastamento de Vasco Gonçalves (militar aliado ao Partido Comunista, integrante do movimento dos Capitães, em 1973, e que depois assumiu lugar de primeiro-ministro após a revolução) (MAXWELL, 1999).

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Fato é que esse período foi agitado e isso repercutiu de diversas formas na Literatura. Natália Correia interage com a literatura enquanto arte, não apenas como um fim em si mesma, mas, sobretudo, como uma forma de vivenciar as experiências humanas de seu cotidiano. Segundo Josyane Nascimento (2012), a utilização da palavra “contumácia” (“A explicação ir-se-ia atualizando à medida que a contumácia das experiências vividas no cotidiano revolucionário”; CORREIA, 2015, p. 28) e seu significado de teimosia, obstinação e, em termos jurídicos, a recusa em comparecer em justiça por questão criminal, representam a ambiguidade do discurso de Natália Correia em ambos os sentidos, o usual e o jurídico, já que sua escrita revela seu relato pessoal dos acontecimentos presentes e, ao mesmo tempo, vai de encontro a uma memória reprimida pela censura que, por muito tempo, a autora esteve submetida. Isso porque, como já se sabe, muito antes da Revolução, Natália Correia posicionava-se de maneira independente contra qualquer tipo de comportamento ditatorial e fascista (VENTURA, 1983), sofrendo as ações de um governo repressor, a ponto de responder um processo, em 1973, pela sua atuação como editora das Novas Cartas Portuguesas, além de outros trabalhos censurados36.

Antes disso, já em 1966, Natália Correia é condenada a três anos de cadeia – com pena suspensa – pela edição e publicação da Antologia de poesia portuguesa erótica e satírica. Nesse momento, a autora prepara um texto – o poema “A defesa do poeta” – para ler no tribunal, mas seu advogado aconselha-a a não fazer. Na edição de sua Poesia Completa, segue a seguinte nota de rodapé: “Compus este poema para me defender no Tribunal Plenário de tenebrosa memória. O que não fiz a pedido do meu advogado que sensatamente me advertiu de que essa insólita leitura no decorrer do julgamento comprometeria a defesa, agravando a sentença” (CORREIA, 2000, p. 330).

No ensaio “A sádica nostalgia das fogueiras do santo ofício: o processo judicial contra a Antologia de Poesia Erótica e Satírica”, Francisco Topa (2015) aponta aspectos, alguns ocultos até então, para uma justa análise de todo desenrolar jurídico. O primeiro tem a ver com a duração do processo, que tomou cerca de sete anos devido não só à lentidão da máquina pública como também a um erro cometido na primeira fase processual. O segundo aspecto diz respeito aos

36 Em 1969, por exemplo, publica a peça O Encoberto, que foi logo apreendida pela censura. Em 1975, publica Poemas

a rebate e em Lisboa, a Comissão de Trabalhadores censura uma de suas crônicas. Seu amigo e diretor, David Mourão-

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elementos concretos da acusação, posto que, depois de uma fase de interrogatório, a acusação vem assinada por Fernando Lopes de Melo, onde, no item 4 e 12, lê-se o seguinte:

A publicação do referido livro é uma empresa dolosa de todos os arguidos, principalmente de Natália Correia e do Bento de Melo, com mero intuito de explorar a desmoralização (sobretudo da juventude) sob o disfarce de apologia da liberdade, boa-fé, consciência (sic) límpida, cultural, obra de erudição e de civismo [...] Os escritos e os desenhos do mencionado livro que, segundo o consenso de generalidade das pessoas, são pornográficos, torpes, obscenos e de linguagem despeja conscientemente ofenderam publicamente, e podem continuar a ofender, o pudor geral, a decência pública, os bons costumes, o pudor sexual, a moralidade pública// revelando até um propósito ultrajante (TOPA, 2015, p. 124)37

Pela análise da linguagem dos autos do processo, é possível notar o quanto Natália Correia e as ações promovidas pela editora (e é preciso incluir Fernando Ribeiro de Melo, o editor que também foi réu no mesmo processo) estiveram muito à frente da sociedade portuguesa, extremamente pudica e conservadora. Além disso, Francisco Topa analisa os trechos citados pelo acusador do processo para justificar a condenação e verifica que houve arbitrariedade com o conteúdo da obra, uma vez que há “uma clara secundarização da vertente satírica” (TOPA, 2015, p. 125) e extrema valorização do conteúdo erótico: “A leitura parece pois ter sido feita em diagonal, de meio do volume para a frente (além dos poetas medievais, ficaram de fora vários clássicos), e com o mero objetivo de encontrar palavras e expressões que chocassem” (TOPA, 2015, p. 125).

Outro aspecto pouco conhecido deste processo e elucidado por Topa refere-se aos advogados partipantes, onde “podemos dizer que os arguidos – e depois acusados – foram representados pela fina-flor da advocacia da época que militava na oposição ao regime” (TOPA, 2015, p. 125). Os argumentos usados pela defesa procuraram suscitar o valor literário da obra, mostrando que a Antologia contém, em seu conjunto, grande número de autores e nomes de grande valor para a literatura portuguesa (Garcia Resende, Gil Vicente, Luís de Camões, D. Francisco Manuel de Melo, Bocage, Filinto Elísio, Almeida Garrett, dentre outros) e, por isso, a “Antologia é antes de mais nada, um acto de amor e de coragem” (TOPA, 2015, p. 130).38 Sobre esse aspecto,

a própria autora esclarece:

37 Folhas 59-61 do referido Processo, consultado por Francisco Topa (2015). Depositado na Torre do Tombo: Tribunal de Comarca de Lisboa, 4.º Juízo Criminal, Processo n.º 90 / 1966.

38 O julgamento do processo se deu três anos e meio depois de seu início (3 de junho de 1969) e a sentença proferida

no dia 21 do mesmo mês. As conclusões são bem conhecidas: “Natália Correia e Fernando Ribeiro de Melo são condenados a 90 dias de prisão substituídos por igual tempo de multa e mais 15 dias de multa, sendo estas à razão de

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A estupidez desta penalidade teve resultados contrários àqueles que o puritanismo oficial quis obter. É efectivamente na seqüência desta minha condenação que um novo campo se abre à literatura feminina o erotismo. [...] São, portanto, neste aspecto as escritoras portuguesas e não os escritores a praticarem uma literatura de contemporaneidade consciente. [...] Com esta intervenção literária da mulher no domínio erótico, cai o último tabu imposto à literatura feminina em Portugal (CORREIA apud SANT’ANNA, 2009, p. 6).

O resultado do processo surtiu um efeito revés que, segundo Natália Correia, teve importância para a legitimidade da literatura erótica e, em decorrência, para a liberdade dos corpos. Vale lemrbar que a Editora Afrodite não publicou somente a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, nos anos 1960, mas também outras obras polências, como, por exemplo, A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, A Vénus de Kazabaika, de Masoch, e Kama-Sutra (FREIRE, 2015). A autora tem plena consciência dos desdobramentos políticos e literários de seu tempo e, em detaque, o quanto as mulheres escritoras estão inseridas nessa consciência da necessidade de libertação sexual, evidenciada ainda mais diante da censura e da condenação.

No seu denso ensaio, Isabel Marques Freire traça um valioso levantamento e análise de conteúdo (quantitativo e qualitativo) dos discursos em torno dos afetos e das sexualidades, agenciados na imprensa, entre 1968 e 1978. Constata, dentre outras coisas, que a pornografia constitui um dos temas de extrema relevância imediatamente após a Revolução dos Cravos. A mídia (jornal Expresso), seis meses após o 25 de Abril, dá inicio a um “inquérito” sobre o tema da legitimidade da pornografia no espaço público, entrevistando alguns especialistas (artistas, intelectuais e profissionais do cinema), incluindo Natália Correia e Fernando Ribeiro de Mello, dono da Editora Afrodite:

Natália Correia lembra o «longo pesadelo de proibições» a que o povo português fora sujeito no Estado Novo, seguido da «euforia de poder-se consumir aquilo que as interdições tanto prestigiaram» (Expresso, 1974, 94). Além disso, esclarece que são certos setores do público, empenhados em ver filmes de suposta qualidade, que começam «a protestar contra a ocupação dos ‘écrans’ pelo sexo»: «Protestam eficientemente de modo a fazer ouvir a sua voz. Estamos ou não estamos numa democracia que conferiu aos indivíduos a faculdade de redobrar o

50$00 diários; Mário Cesariny de Vasconcelos, Luiz Pacheco, Ary dos Santos e Melo e Castro são condenados a 45 dias de prisão, substituídos por igual tempo de multa e mais 7 dias de multa, variando o valor destas em função dos rendimentos de cada um. Em todos os casos, acrescia ainda o imposto de justiça e a taxa de procuradoria. Ary dos Santos e Ribeiro de Melo chegam a ser objeto de mandado de captura por não efetuarem o pagamento de forma atempada, mas o único réu cuja sentença é convertida em pena de prisão é Luiz Pacheco. O processo termina, como já disse, com a destruição pelo fogo do exemplar da Antologia apenso ao processo, mas antes desse são destruídos da mesma forma pela PIDE (agora Direcção-Geral de Segurança) os 37 exemplares que tinham sido apreendidos.” (TOPA, 2015, P. 138)

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direito à livre opinião? [...]Fernando Ribeiro de Mello, proprietário da editora Afrodite, e outro dos respondentes ao “inquérito” do Expresso sobre pornografia, opõe-se veementemente à sua censura e proibição. […] impossível é falar-se de erotismo, obscenidade, pornografia, sem se ter em vista a sinistra repressão à sexualidade com que o obscurantismo político e religioso sempre se masturbou às escondidas. […] A predisposição obsessiva para localizar e apontar o dedo à pornografia é pornografia. […] Que tratamento se deve dar à pornografia e ao erotismo […]? Nunca aquele que os estados fascistas, os governos autoritários e ditatoriais sempre deram e vêm dando. Tenha-se presente que os nazis atacaram severa e metodicamente não só a revolução sexual, como o feminismo – ontem, hoje e sempre, indissociáveis – como forma de protecção à sociedade patriarcal, tão cara ao nacional-socialismo (Expresso, 1974, 93). (FREIRE, 2015, p. 149- 150)

Como se vê, tanto Natália Correia quanto Fernando De Mello deixam claro o posicionamento contra qualquer tipo de repressão sexual. A defesa da liberdade e o antifascismo marcaram a imagem e a agenda da Editora Afrodite naquele momento, a ponto mesmo de me arriscar em afirmar que tais reivindicações permanecem na memória dos portugueses até os dias de hoje.

E não foram apenas em seus discursos públicos, romances e antologias que Natália Correia expôs sua postura crítica, mas também em sua produção teatral,

[...] alvo de interessantes e consistentes abordagens, nomeadamente da peça A

Pécora – escrita em 1967 e censurada pela «jagunçada do regime», como a

própria terá prefaciado em 1983, ano de publicação, dezesseis anos após a sua escrita. Nesta peça detectam-se, marcadamente, os vectores que nortearam a estética da autora, não só ao nível da poesia, dramaturgia, mas também da sua prosa (cf. romance Madona, de 1968, escrito logo depois de A Pécora): ambiências surrealistas, a força demiúrgica das suas personagens femininas, o tom satírico, ébrio e irónico, a simples provocação e transgressão dos modelos canónicos, a denúncia dos regimes opressores, a afronta das ideologias ortodoxas ou, inclusive, o desmascarar das instituições dogmáticas, castradoras do livre- pensamento, o misticismo e a própria epopeia do sebastianismo. (MARQUES, 2012, p. 98)

Como aponta Ana Catarina Marques, a produção de Natália Correia transgride não só os modelos literários, mas também os políticos vigentes, quando denuncia e afronta o dogmatismo religioso e qualquer tipo de pensamento opressor. Assim, como também observado no capítulo anterior, os avanços e os desdobramentos da história da literatura praticada por mulheres – e não apenas esta, mas também o fortalecimento da poesia erótica –, em Portugal, conta necessariamente com a presença e o discurso de Natália Correia no desmantelar de um cânone que se viu ainda mais fechado em momentos políticos como os dos anos ditatoriais do Estado Novo Salazarista,

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representando uma “atitude de rebeldia política – é, aliás, sinal de maturidade da escrita feminina, no teatro e também fora dele” (VASQUES, 2001, p. 31). Além disso, para a escritora, os episódios políticos resultaram também no aprendizado e no autoconhecimento que obteve: “E, se a retive na fixação de episódios que aqui ficam como o testemunho de um abalo que, destruindo uma ordem secular, nos instiga a uma aclimatação criadora ao precário que nos reduziu, maiormente destaco nesta trajetória a aprendizagem que nela fui fazendo de mim mesma” (CORREIA, 2015, p. 38).

Ademais, Natália Correia, em 1982, publica a Antologia da poesia do período barroco e da mesma forma, segundo Jorge Vicente Valentim (2015), imprime nessa e em outros textos que a antecedem,

[...] uma criação marcada pela impossibilidade de ceder a modismos, porquanto informa, esclarece e explica com uma perspectiva singular e inovadora os principais eixos condutores dos escritores eleitos e da época em que viveram e produziram. Não deixa de ser, neste sentido, um ensaísmo de primeira mão, diríamos mesmo avant la lettre, que evoca o espírito da presença feminina, ainda que apenas tematicamente, e que não se conforma com lugares-comuns, reiterando, acima de tudo, a manutenção de uma memória cultural portuguesa, que, apesar de se constituir um bem coletivo, passa necessariamente também pela subjetividade pessoal do antologista. [...] Interessante observar que, já nesta antologia dos Cantares, a insistência sobre a recorrência à imagem da mulher, numa época, até então considerada predominantemente masculina, constitua o avatar do pensamento de Natália Correia. (VALENTIM, 2015, p. 3)

Como se vê, Natália Correia esteve sempre preocupada na defesa da presença feminina na literatura portuguesa não apenas por pessoalmente preservar o gênio criativo feminino, mas também por considerar as mulheres uma parte fundamental na manutenção da memória cultural de seu país. Fazer isso é, de fato, reescrever a história literária pelo viés mais justo39.

Além do 25 de abril de 1974, o 1º de maio de 1974 foi outro momento relatado por Natália Correia em seu Diário, em virtude de sua importância aos movimentos populares e aos de reinvindicação dos direitos e das greves dos trabalhadores. Depois do evento revolucionário, essa foi uma das datas de maiores manifestações populares organizadas no país (só na cidade de Lisboa, juntaram-se mais de meio milhão de pessoas). Talvez, tenha sido a forma de os portugueses demonstrarem a sua adesão à Revolução, pois, de acordo com Natália Correia, “é o povo não programado pelas artimanhas ideológicas que lhe elucubram o automatismo” (CORREIA, 2015,

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