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Há pelo menos quinze anos, um grupo de internacionalistas de várias partes do globo tem desafiado a censura quanto à utilização da expressão “Terceiro Mundo” e insistido no seu uso, o qual sustentam ser necessário para que o direito internacional faça uma maior justiça a indivíduos que se encontram especialmente em Estados assolados por diversos tipos de exclusão social e econômica (GALINDO, 2013, p. 119). A partir do momento em que a história comum de sujeição ao colonialismo e/ou o persistente subdesenvolvimento e a marginalização de países da Ásia, da África e da América Latina possui importância significativa, a categoria Terceiro Mundo ganha vida (CHIMNI, 2003, p. 5). A utilidade da expressão consiste em expor constrangimentos estruturais que a economia mundial impõe sobre um grupo de países em relação a outros, como manifestação do crescimento das assimetrias entre o norte e o sul globais. Esses internacionalistas integram as chamadas Abordagens do Terceiro Mundo ao Direito Internacional - tradução do inglês da expressão Third World Approaches to International

Law (TWAIL).

Um dos objetivos das TWAIL24 é entender, desconstruir e desvelar os usos do direito internacional como um meio para a criação e perpetuação de uma hierarquia de normas e de instituições internacionais que subordinam não europeus a europeus (MUTUA, 2000, p. 30). Buscam compreender como o direito internacional afeta as estruturas de dominação e de poder a partir, principalmente, das categorias Terceiro Mundo e Ocidente. Mais especificamente, elas pretendem mostrar que as estruturas e categorias jurídicas são o reflexo de preconceitos culturais que tem por efeito a perpetuação e a legitimação dessas relações de dominação (BACHAND, 2011, p. 6).

As TWAIL enquadram-se nas teorias críticas do direito internacional, com forte influência dos estudos pós-colonialistas e evidente viés histórico. Constituem abordagens que enfatizam a análise do direito internacional a partir da ideia de subjugação histórica existente

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Segundo Galindo, a escolha da sigla da expressão em inglês “tem sua razão de ser no fato de que TWAIL é um termo já amplamente conhecido no vocabulário jurídico internacional. Este autor reconhece, no entanto, que o uso da sigla em inglês pode apresentar problemas uma vez que um dos temas mais recorrentes da literatura pós- colonialista é o uso da linguagem do colonizador (no caso, o inglês) por parte do colonizado como instrumento de subjugação" (GALINDO, 2013, p. 119).

37 entre povos colonizados e povos colonizadores (subordinação do resto do mundo ao poder europeu), bem assim da valorização da diferença comum resultante dessa sujeição, como forma de resistência consciente a políticas hegemônicas.

No âmbito das TWAIL, o pós-colonialismo exerce um papel de destaque, sendo o colonialismo europeu considerado um fato histórico de efeitos concretos, seguido da descolonização e da busca pela soberania em um contexto imperialista de dominação econômica e, algumas vezes, política. O pós-colonialismo representa a ressignificação do colonialismo. Parte do princípio de que aquele ainda produz seus efeitos na ordem jurídica internacional e, portanto, permite a compreensão do direito internacional em sua dimensão histórica. A história, inclusive, pode ser usada para confrontar as correntes dominantes e suas narrativas de progresso contínuo. Além da vertente histórica, o discurso terceiro-mundista do direito internacional é marcado pelo enfoque crítico.

O resgate da tradição terceiro-mundista inicialmente se deu em 1997, com a realização de um evento, na Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, denominado “Novas Abordagens aos Estudos Jurídicos do Terceiro Mundo” (New Approaches to Third World Legal

Studies), o qual reuniu vários autores experientes e outros que mais tarde se destacariam. Em

seguida, Chimni e Antony Anghie (2003) publicaram o artigo intitulado “Abordagens do Terceiro Mundo ao Direito Internacional e Responsabilidade Individual em Conflitos Armados” (Third World Approaches to International Law and Individual Responsability in Internal

Conflicts), em que trataram do desenvolvimento das TWAIL em três fases ou gerações25. Embora critique a existência da terceira geração26, Galindo anota sobre o tema:

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A divisão das TWAIL em gerações é objeto de crítica por alguns de seus estudiosos, especialmente em razão das consequências políticas em insistir em periodizações e do perigo de uma leitura apressada de fatos recentes. Nesse sentido, Galindo sintetiza a questão nos seguintes termos: “Although it is assumed that there are common features between the generations, a number of differences are also identified and emphasized by TWAIL II scholars. In this article, I advance the argument that such periodization is problematic for four reasons: anachronism, progressivism, a difficult self-identification of past third world legal scholars with TWAIL and the image made of TWAIL by non- TWAILers. Instead of periodizing TWAIL in two successive generations, I argue that identifying it as part of a larger tradition of third world international legal scholarship is more productive for the inner coherence of such

intellectual movement and, consequently, for its success in the international legal academia” (GALINDO, 2015).

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A crítica questiona a inauguração de nova época no direito internacional com a ocorrência dos referidos eventos terroristas nos Estados Unidos, tendo em vista que fatos semelhantes ocorreram e ocorrem também em Estados do Terceiro Mundo (GALINDO, 2013, p. 123).

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Assim, seguindo a própria leitura de Anghie e Chimni, a primeira geração era mais focada no Estado-nação e na maneira pelas quais as nações poderosas usaram o direito internacional como veículo de opressão e de interesses hegemônicos. Por sua vez, a segunda geração se concentraria no papel da colonização para a própria formação do direito internacional – com a consequente ênfase não no Estado, mas em grupos marginalizados e no papel de instituições internacionais para a manutenção de hierarquias sociais. Finalmente, a terceira geração ou fase das TWAIL estaria em surgimento, incitada especialmente pelos eventos de 11 de setembro de 2001. Tais eventos marcariam a volta da centralidade do Estado nas análises das TWAIL, e não mais em grupos marginalizados ou instituições internacionais. A relação do Estado com o terrorismo, seja ao combatê-lo ou apoiá-lo, estar-se-ia tornando o foco principal de autores terceiro-mundistas contemporâneos no direito internacional. (GALINDO, 2013, p. 122)

As TWAIL têm sido objeto de estudo de acadêmicos tanto do Terceiro Mundo como de países do norte global, destacando-se como teóricos Antony Anghie, B. S. Chimni, James Gathii, Balakrishnan Rajagopal, Makau Mutua, entre tantos outros. Recentemente, realizou-se a Conferência das TWAIL 2015 (On Praxis and the Intellectual)27, na cidade do Cairo (Egito), onde estiveram reunidos vários dos seus expoentes28. Em que pese o notório crescimento internacional do debate em torno das TWAIL, suas possíveis contribuições tem sido pouco conhecidas ou até mesmo ignoradas pela maioria dos internacionalistas, representantes das correntes majoritárias (mainstream).

No Brasil, a desconsideração das TWAIL é mais flagrante. O debate sobre o tema ainda é tímido, o que torna a produção acadêmica e doutrinária insignificante. Chega a ser “realmente espantoso como os juristas brasileiros - não obstante a posição do Brasil como um Estado cuja população e instituições ainda sofrem profundamente com as exclusões existentes no cenário internacional - ainda não levaram devidamente em conta a literatura ligada às abordagens do terceiro mundo ao direito internacional” (GALINDO, 2013, p. 120). É possível que esse fenômeno seja parcialmente explicado pela necessidade de muitos juristas de reproduzir e

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A partir do primeiro encontro na Faculdade de Direito de Harvard em 1997, ocorreram conferências na Faculdade de Direito de Osgoode Hall (Toronto, Canadá), em 2001, na Faculdade de Direito da Albânia, em 2007, na Universidade de Columbia Britânica (Canadá), em 2008, em Paris (França), em 2010 e na Faculdade de Direito de Oregon (Estados Unidos), em 2011, conforme informações da página eletrônica da organização do evento ocorrido neste ano. <http://www.uwindsor.ca/twail2015/>

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A propósito, vários artigos dessa conferência foram publicados eletronicamente pela Revista Third World Quarterly (vol. 37-11), em 22 de setembro deste ano, disponíveis em:

39 transplantar acriticamente discussões entre correntes majoritárias na Europa e nos Estados Unidos como forma de legitimar certo argumento no direito brasileiro, conforme sugere Galindo (GALINDO, 2013, p. 120).

A propósito, Badaru aponta a necessidade das TWAIL de promover sua agenda de pesquisa e seus objetivos não apenas para exercer um papel crítico do direito internacional no norte global, mas principalmente para estabelecer sua presença no Terceiro Mundo, a quem pretendem representar (BADARU, 2008, p. 386). A falta de acolhimento ou a simples ignorância das TWAIL na academia em países marcados por histórias de subjugação colonial e/ou de exclusão, como o Brasil, tem formado estudantes do Terceiro Mundo com um entendimento de direitos humanos inspirado nas correntes dominantes do norte. Assim, o desinteresse da academia brasileira pelas abordagens terceiro-mundistas parece estar também relacionado com o direito internacional dos direitos humanos e com seu papel no contexto de globalização e de difusão da ideia de boa governança. Não se pretende aqui discutir em profundidade o complexo fenômeno da globalização, nem firmar um juízo de valor simplista e precipitado a seu respeito29. A intenção é apenas destacar alguns pontos relevantes para o estudo das TWAIL e para o avanço de um conhecimento crítico do direito internacional. Toma-se como referência a compreensão da globalização como o processo contínuo de internacionalização dos serviços financeiros e de produção, com diversos efeitos em nível econômico, social e cultural.

Com essas considerações, cumpre registrar que a globalização significou para o Terceiro Mundo a dominação de políticas econômicas neoliberais, promovidas pelas três maiores instituições econômicas internacionais: a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI)30 (ANGHIE, 2004, p. 245). Há evidências de que a globalização, embora supostamente crie oportunidades e vantagens, acentuou as desigualdades entre o Primeiro e o Terceiro Mundos. Pode-se considerar tal fenômeno também

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“Globalization means different things to different people in different places and disciplines, and its scope and historical antecedents lie in the particular eyes of the beholder. Globalization affects different people in different parts of the world differently. The link between globalization and public health is even more complex.” (AGINAM, 2005, p. 32).

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As políticas neoliberais também impactaram a Organização Mundial da Saúde (OMS), conforme se verá no Capítulo Terceiro.

40 como um outro estágio do imperialismo. A identificação com o modelo imperialista anterior reside nos objetivos de alcançar o controle da expansão dos mercados, de retirar recursos naturais e de explorar o trabalho na periferia do sistema internacional. O direito internacional, por sua vez, é a principal linguagem pela qual a dominação é expressa na era da globalização, que tem a boa governança como uma de suas bandeiras.

A despeito da falta de um significado técnico no direito internacional para a ideia de boa governança, Anghie afirma que o termo está vinculado à presença de um governo democrático, aberto, responsável e transparente, que respeite e fomente os direitos humanos e o estado de direito (ANGHIE, 2004, p. 248). Daí que o conceito (aparentemente neutro) de boa governança está intimamente relacionado com a promoção dos direitos humanos. Os Estados do Terceiro Mundo costumam ser alvos de críticas em virtude de sua suposta falta de capacidade para governança decorrente de “falta de desenvolvimento”. A conclusão em parte resulta do fato de o norte global colocar-se como repositório dos altos padrões morais, não extensivos ao Terceiro Mundo. Desse modo, a categoria “boa governança” é erigida a fundamento moral e intelectual para o desenvolvimento de um conjunto de doutrinas, de políticas e de princípios formulados e implementados por vários atores internacionais para gerenciar, especificamente, os Estados e povos do Terceiro Mundo (ANGHIE, 2004, p. 249).

Com o uso da noção de governança, as instituições políticas avançam na globalização aplicando as normas internacionais de direitos humanos, as quais são vistas como parâmetros internacionais universalmente aceitos e como base para o alcance da “almejada” boa governança. Esta ideia possui um apelo poderoso e aparentemente universal: todos os povos e sociedades certamente deveriam buscar a boa governança - da mesma maneira que todos os povos e sociedades eram vistos como desejando a “civilização” e também o “desenvolvimento”. Aliás, a própria ideia ocidental de desenvolvimento traz em si a desconsideração das reais aspirações dos povos do Terceiro Mundo, além de reduzir o desenvolvimento de tais povos a níveis compatíveis com a manutenção dos altos padrões de consumo do norte global, sem que este se submeta ao jugo do desenvolvimento sustentável31.

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Já em 1977, Artur José Almeida Diniz, ao discorrer sobre a possibilidade de um número crescente de Estados conseguir penetração nas estruturas regionais de desenvolvimento, observou que os atuais modelos de

41 É interessante observar também que, no colonialismo, as razões humanitárias (a missão civilizatória) justificavam a livre intervenção nos países não europeus, do mesmo modo que atualmente o discurso humanitário - enraizado na doutrina dos direitos humanos32 - autoriza a crescente ingerência sobre o Terceiro Mundo. De fato, o humanitarismo é a ideologia dos Estados hegemônicos na era da globalização, marcada pelo fim da Guerra Fria e por um aprofundamento da divisão norte-sul, sendo que o papel das estruturas e das instituições internacionais econômicas e políticas na perpetuação da dependência dos povos do Terceiro Mundo é negligenciado neste processo (CHIMNI, 2003, p. 16). Não se está a negar que a globalização dos direitos humanos pode oferecer uma base para o avanço na causa dos pobres e marginalizados dos países do Terceiro Mundo, na luta contra as políticas nocivas do Estado e das instituições internacionais. Contudo, de igual forma, o enfoque nos direitos humanos pode favorecer uma agenda neoliberal ao privilegiar direitos privados em detrimento de direitos econômicos e sociais.

A força do discurso do direito internacional dos direitos humanos reafirma a ideia de desenvolvimento em um contexto de globalização no pós-Guerra Fria. Isso vai ao encontro da ideia de desenvolvimento infinito enquanto possibilidade, valor e objetivo cultural, o que conduziria os Estados e os povos do Terceiro Mundo ao jugo do imperialismo. Mesmo quando reproduzida, a história colonial do direito internacional oculta as semelhanças das iniciativas anteriores de comércio e civilização com as atuais de globalização e governança. A ampla disseminação e aceitação da doutrina dos direitos humanos universais, além do fomento de categorias que emergem do Ocidente, no âmbito de uma sociedade que vivencia o fenômeno da globalização - e acolhe muitos dos temas da agenda liberal - não é campo fértil para a discussão das TWAIL.

Remanesce importante para a pesquisa pós-eurocêntrica no direito internacional observar que o emprego de um vocabulário particular (“intervenção”, “governança” ou “direitos

desenvolvimento econômico contrariam, em muitos pontos, as estruturais culturais dos Estados, e deformam a própria noção de desenvolvimento quando valores humanos são relegados a outros planos que não o principal (DINIZ, 1977, p. 60).

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Chimni comenta que “A ideia de humanitarismo é moldada pelo discurso dos direitos humanos. A sua

globalização é uma função de crença de que o domínio dos direitos, ainda que a partir de uma visão específica de direitos, oferece cura para quase todos os males que afligem os países do Terceiro Mundo e explica a recomendação do mantra dos direitos humanos para sociedades em situações pós-conflito” (CHIMNI, 2003, p. 16-17).

42 humanos”) não é suficiente para definir quais são as relações de poder em questão, pois diferentes atores podem usá-lo com diferentes propósitos e tudo dependerá do contexto (KOSKENNIEMI, 2016, p. 175). Do mesmo modo, o recurso a um instrumento jurídico de origem europeia – como o direito internacional - não significa que necessariamente ele atuará em favor do norte global, embora essa situação seja recorrente. A promoção de uma agenda favorável ao Terceiro Mundo dependerá do modo como a linguagem do direito internacional será utilizada e por quem será empregada.

Apesar da persistência dos vieses coloniais, o direito internacional sob uma perspectiva crítica pode constituir um meio de resistência a políticas hegemônicas, um instrumento de defesa dos interesses do Terceiro Mundo, de promoção de mudanças estruturais na sociedade internacional, bem como de soluções alternativas para promoção de justiça. É certo que não se trata simplesmente de estar incluído ou excluído do sistema do direito internacional. A própria questão referente à inclusão ou exclusão parte do pressuposto (eurocêntrico) de que estar incluído é positivo porque o direito internacional é algo “bom”. O ponto chave dessa discussão é saber o que “inclusão” e “exclusão” significam, bastando lembrar que os índios americanos estavam incluídos no direito internacional segundo o sistema desenvolvido por Vitoria. É crucial, portanto, distinguir em quais condições um povo foi integrado ao direito internacional.

Nesse sentido, as TWAIL possibilitam a reflexão sobre o direito internacional com o objetivo de considerar mais seriamente as exclusões e os interesses dos Estados e dos povos submetidos ao processo de colonização. Essa abordagem crítica deve ser tomada não apenas como uma postura formal diante da disciplina, mas como inspiração para os internacionalistas contemporâneos a fim de melhorar a vida de pessoas cujas demandas não têm sido contempladas pelo sistema jurídico internacional. Seus partidários estão solidamente unidos por um compromisso ético compartilhado pela luta intelectual e prática para expor, reformar ou até mesmo retrair aqueles laços do sistema jurídico internacional que ajudam criar ou manter a desigual, desleal ou injusta ordem global (OKAFOR, 2005, p. 176-177). As TWAIL são compromissadas com a história, não com uma história ocidental e hegemônica.

Para melhor compreender o propósito das TWAIL, faz-se necessário o significado simbólico e a relevância prática do resgate do termo Terceiro Mundo.

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1.3. O resgate da expressão Terceiro Mundo como afirmação de uma identidade histórica: