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As associações civis e o exercício da liberdade política: a preocupação

Capítulo II- O nascimento dos “Alcoólicos Anônimos” no mundo moderno

2.2. As associações civis e o exercício da liberdade política: a preocupação

Segundo Tocqueville (1987; 1991; 2013), as sociedades democráticas podem ser despóticas ou liberais. O despotismo democrático pressupõe o consentimento da maioria dos indivíduos em renunciar a liberdade política, isto é, o papel político dos homens em buscar, unidos, as melhores escolheres para alcançar o bem comum, em face de agitações populares ou ameaças exteriores que perturbem o estado social democrático e, por consequência, a igualdade social.

A democracia liberal, grosso modo, pressupõe a segurança dos privilégios privados dos indivíduos por parte do Estado (CONSTANT, 1985) e a garantia da representação indireta dos homens nos processos políticos de funcionamento dos regimes democráticos – a democracia representativa e as eleições democráticas, por exemplo. Entretanto, para Tocqueville (1987; 1991; 2013), a liberdade política não é plenamente conservada ou desenvolvida à luz dessa espécie de liberalismo político imposto nas sociedades modernas. Nesse sentido, a liberdade política da democracia liberal seria apenas uma forma de autonomia efêmera e restrita. Tal forma de liberdade é apenas um meio de servir aos desígnios institucionais do Estado moderno.

Para Tocqueville (1987; 1991; 2013), a liberdade política deve ser fomentada dentro da sociedade. Em tempos de igualdade social, a única maneira de envolver a maioria dos homens com os assuntos do bem comum é integrar as deliberações públicas ao universo dos interesses privados de cada indivíduo. Nos Estados Unidos, o alto grau de participação dos homens na vida política se deve ao consenso dos interesses privados e à perseguição pelo bem-estar público da sociedade.

Entretanto, é importante ressaltarmos que a busca de cada homem por seu interesse privado não é suficiente para construir uma ordem social igualitária em que a liberdade política individual esteja presente; o interesse que os indivíduos têm em comum também não bastaria. O exercício da liberdade política, em tempos democráticos, é realizado através da crença americana no interesse bem compreendido. O interesse bem compreendido é a doutrina política que dilui o egoísmo dos homens através da busca pelo bem comum da vida social. Tal doutrina promove a importância em sacrificar o interesse individual e exercitar constantemente a liberdade política, ou seja, a deliberação sobre os

assuntos de interesse público. Somente através da união pública e dos efeitos causados pela liberdade política no mundo cultural moderno é que os americanos conseguirão grandes progressos sociais em torno da sociedade em que vivem e, por consequência, terão seus interesses individuais atendidos. “Os americanos, na verdade, veem na sua liberdade o melhor instrumento e a melhor garantia de seu bem-estar. Amam essas duas coisas, uma pela outra”. (TOCQUEVILLE, 1987, p. 414).

A participação dos cidadãos americanos na vida pública é efetivada por meio das múltiplas associações de interesses públicos que estimulam a liberdade política individual. Tais associações nascem dentro da sociedade civil com o objetivo de incitar a responsabilidade dos cidadãos pelos problemas locais – descentralização administrativa – e contribuir para a preservação da liberdade política no seio de uma sociedade igualitária. As associações civis seriam, no entender de Tocqueville (1987), “corpos intermediários”, isto é, uma espécie de aristocracia artificial, em contraposição à naturalidade das aristocracias do Antigo Regime, que garantiriam um poder político aos cidadãos americanos frente à dominação do Estado moderno. A criação de associações civis é o resultado do esclarecimento e do talento de seus criadores e participantes, ou seja, do povo americano.

A grande liberdade política aperfeiçoava e vulgarizava em seu seio a arte de se associar (...). Os americanos de todas as idades, de todas as condições, de todos os espíritos estão constantemente a se unir. Não só possuem associações comerciais e industriais, nas quais todos tomam parte, como ainda existem mil outras espécies: religiosas, morais, graves, fúteis e muito particulares, imensas e muito pequenas; os americanos associam-se para dar festas, fundar seminários, etc. (TOCQUEVILLE, 1987, p. 412).

Desse modo, os americanos preocupam-se com o bem-estar público de sua sociedade, conciliando liberdade política e igualdade social: eles deliberam sobre os rumos tomados até o bem comum – associações civis e a liberdade política –, cujo objetivo é a manutenção do estado social democrático – bem-estar privado e a paixão pela igualdade social.

O que são os Alcoólicos Anônimos senão uma associação civil norte-americana. A preocupação com o bem-estar público da sociedade levou milhares de norte-americanos que possuem problemas com o consumo de álcool a conceberem um entendimento crítico diante da desestruturação de seus relacionamentos cotidianos. Os Alcoólicos Anônimos não compreendem o alcoolismo como uma determinada maneira de agir relacionada aos problemas privados de cada indivíduo, mas como um problema público da vida social

moderna. Eles atuam na sociedade com o objetivo de esclarecer tal problema para a maioria dos indivíduos que são considerados alcoólatras por todos os seus conhecidos. Eles são filhos de uma sociedade que conciliou liberdade política e igualdade social – o nascimento do A.A, portanto, está intrinsecamente relacionado com as circunstâncias sociais em que os americanos estavam imersos.

A ciência não contribuiu para o surgimento do A.A no mundo moderno. A concepção racional e sistêmica de doença estava afastada da ideia de que os membros do A.A tinham sobre o alcoolismo. A ciência construiu, racionalmente, uma doença que considerava os aspectos particulares do corpo ou mente de cada homem – falta de serotonina no cérebro ou problemas genéticos herdados dos antepassados, por exemplo. Os membros do A.A, entretanto, dissolveram tal construção científica em razão da criação de uma linguagem própria do grupo que revestiu o alcoolismo de outro modo. Para os membros do A.A, o alcoolismo era um problema público da vida social moderna em que todos os homens estavam sujeitos a sofrer – deliberar sobre as questões cotidianas que envolviam esse problema era a função dos membros do A.A no mundo cultural contemporâneo.

Existem inúmeras associações civis americanas em que os homens exercitam a liberdade política através da preocupação com uma multiplicidade de interesses públicos. A associação civil “Alcoólicos Anônimos” preocupa-se com a organização da vida privada de seus membros.

O que é a preocupação pública do A.A com a organização do domínio privado dos homens senão o esforço dos membros do grupo em discutir o alcoolismo como uma questão que emerge da estrutura da vida cotidiana? O que os membros do A.A entendem por organização da vida privada é a discussão da manutenção do microssistema da interação social enraizado na sociedade. Veremos, no decorrer desta pesquisa, que a reprodução da ordenada dos relacionamentos sociais não se mantém através de uma imposição da estrutura social sobre os homens. De fato, o contrário ocorre: os homens esforçam-se em reproduzir a estrutura da sociedade em que vivem através de tais relações sociais. Os Alcoólicos Anônimos materializam tal esforço, discutindo publicamente os efeitos do descontrole do ato de beber na organização do cotidiano de cada integrante do grupo.