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As atitudes do jardim: renúncia ao desejo de poder

4. CAPÍTULO III

4.6 O contágio a partir do jardim

4.6.1 As atitudes do jardim: renúncia ao desejo de poder

Para compreender as indicações de Epicuro sobre a melhor forma de convivência em comunidade é preciso a articulação de princípios decisivos para a sua ética. Em primeiro lugar, ele apresenta o seu projeto de comunidade (o Jardim) como um lugar destituído de pretensões políticas, principalmente quanto ao engajamento para a transformação direta da sociedade. Para reconhecer a posição de Epicuro toma-se o caminho em direção à analise das atitudes dentro do jardim, elas devem buscar a realização plena da vida sem tender para as questões ligadas ao que é da ordem do supérfluo, ou seja, desprovido de necessidade. Na sentença vaticana 58 Epicuro afirma que se dedicar às questões referentes à vida pública pode trazer para a vida perturbações difíceis de serem superadas (“nós devemos nos libertar da prisão das rotinas dos assuntos públicos”145. Isso reflete a distância em que o jardim se

encontra em relação aos outros modelos de comunidade, determinando que a sua forma de associação se dá a partir de uma constituição que busca a menor interferência possível na vida dos outros indivíduos.

Em segundo lugar, o jardim possui como característica principal a ausência de pretensões de transformação da sociedade. Assim, aqueles que habitam no jardim epicúreo, por falta de afinidade, não possuem inclinações para a atuação no poder, principalmente se o modelo de sociedade for comparado ao da pólis já desgastado pelas inconstâncias do período helenístico. Epicuro compreende que a imagem de corpo social que se liga ao modelo da pólis

decadente grega representava um corpo adoecido. Devido as contradições internas, esse modelo de sociedade perde a sustentação e coloca-se a disposição das rupturas que convergem para a constituição de um novo modelo de organização social.

Epicuro não afirma que o habitante do jardim não tenha direito de ascender ao poder, nem afirma que tal condição seja impossível de se realizar, entretanto, ele apóia sua posição de renúncia ao exercício do poder por compreender que a convivência nessa esfera consequentemente traz perturbações aos indivíduos. Dentro do jardim, o poder não se instaura na medida em que a convivência amistosa converte os seus membros em sujeitos de uma mesma categoria. O poder não se instaura porque não há a necessidade de marcar a diferença entre os homens, fazendo das relações de poder um momento totalmente alheio às práticas vivenciadas no ambiente do jardim. De acordo com o texto da Máxima Principal tem-se:

Alguns homens procuram torna-se famosos e ilustres, pensando que desse modo garantiriam para si mesmos segurança diante dos homens restantes. Se, então, a vida de tais pessoas for realmente segura, elas terão atingido o bem conforme a natureza; se, entretanto, for insegura, elas não terão atingido o fim que perseguiram impelidos pela própria natureza146.

A tendência natural dos homens de se constituírem de modo diferente uns dos outros, tomando para si mesmos o desejo impulsivo pelo poder, não tem ressonância no jardim epicúreo. Epicuro afirma que o jardim é o lugar da plena realização da tranquilidade e da ausência de temor, para isso é preciso tê-lo como ambiente afastado das contradições encontradas entre os homens desprovidos de moderação (phronesis). Seria difícil determinar qual era a medida do poder exercido pelo mestre no jardim, mas fica evidente que as distinções deveriam ser minimizadas dentro das relações de amizade e convivência mútua.

A necessidade do tratamento diferenciado, ter o forte desejo de se tornar ilustre perante o grupo social consiste numa opinião completamente vazia de fundamento, pois essa

categoria de desejo caracteriza-se pela realização dos anseios que nem são necessários nem sequer são naturais. Assim, para a vida que se afirma como plena de realização da tranquilidade e da felicidade não existem razões suficientes para acreditar na busca pela notoriedade, conforme adverte Lucrécio no seu poema:

Se, contudo, se seguisse na vida um verdadeiro raciocínio, as grandes riquezas para o homem consistiriam em viver serenamente com pouca coisa. Nunca existe penúria do que é pouco. Mas fizeram-se os homens ilustres e poderosos para a que a fortuna ficasse assente numa sólida base e pudessem passar na opulência uma plácida vida: tudo inútil, porque ao lutarem pelo acesso às honras supremas tornaram o caminho cheio de perigos; muitas vezes, já lá no cimo, os derruba como um raio a inveja e os precipita ignominiosamente nos terríveis Tártaros; porque a inveja, como os raios, abrasa quase sempre os cimos e tudo o que está colocado mais alto147.

A determinação pela conformação do modo de viver na simplicidade reafirma que o sábio no jardim deve condicionar-se à vida de acordo com a natureza, e dessa maneira, deve compreender que a sua atuação com os outros indivíduos consiste na visibilidade dos mesmos interesses, bem como a afirmação da postura autárquica sendo pensada como fator condicionante da liberdade. A perspectiva da ausência de desejo pelo poder instaura um ambiente sem precedentes nas sociedades, pois necessariamente os modelos de sociedade, por mais primitivas que sejam, apresentam o poder como objeto do desejo coletivo.

No epicurismo, o poder representa um aspecto desagregador para a boa constituição da comunidade do jardim. Entende-se que as relações de poder podem ser consideradas características inerentes das interações humanas, e sobretudo não se podem objetar as implicações para uma sociedade na qual o poder e a disputa pelo mesmo não se fazem presentes. A discussão passa pela definição do modelo projetado por Epicuro para representar as práticas realizadas no jardim, assim, ao ser encontrada a imagem coerente para representar essa comunidade de amigos, igualmente será conhecida a medida adquirida pelo poder no contexto do pensamento epicúreo.

A metáfora apresentada por Lucrécio nos versos citados acima demonstra que os homens inclinam-se para a constituição de riquezas e se esforçam para obter honrarias não apenas por necessidade, o fazem principalmente por ignorância. Converter as virtudes da alma que se traduzem em sabedoria para o modo de viver é afastar as realizações conflituosas envolvidas na busca pelas formas de poder. Seria preciso considerar a aquisição de poder como fator condicionante para a felicidade, fato que não reflete a realidade, tendo em vista as inconstâncias sofridas pelos que atuam no poder, flertando constantemente para conquistar ainda mais poder. Assim, o próprio Lucrécio afirma na sequência:

É por isso que vale mais obedecer com sossego do que desejar o governo do mundo e ocupar os tronos. Deixa, pois, que se cansem inutilmente e suem sangue, enquanto lutam pelo estreito caminho da ambição: eles só tem o sabor por boca alheia e tudo procuram mais por ouvirem dizer do que pelas próprias sensações148.

A passagem citada dos versos de Lucrécio traz à tona indicações significativas acerca da ética no epicurismo. O sábio deve empreender esforços para se distanciar do exercício do poder, não apenas por temer as perturbações que são geradas dessa atividade, mas principalmente pelo fato do poder representar uma realização projetada a partir das impressões dos outros indivíduos, impossibilitando, portanto, o modo de viver autárquico, pois cada atitude tomada depende da opinião advinda de outro indivíduo. Tendo em vista a preocupação com a afirmação da vida autárquica é preciso manter distância das formas de atuação através do poder.

Nesse ponto o epicurismo não faz uso da noção que toma o poder como fator responsável pela corrupção dos valores e da forma de viver pela phronesis. As condições exercidas pela vida no poder por si mesmas já são pensadas como as causas que levam a ausência de virtude. Por essa razão o desejo de poder leva tanto as perturbações na alma quanto a inclinação os indivíduos para a injustiça e a ausência de moderação. A caracterização

do poder no epicurismo é feita a partir da relação deste para a vida em tranquilidade, situando o poder na esfera de atuação social que se baseia no conflito e no uso da força, situações que não favorecem a construção da vida autárquica, bem como reduzem o grau de civilidade de um grupo ou sociedade para um patamar de animosidades e de discordâncias.

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