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5. Os dados pessoais sensíveis, os dados pessoais de saúde

7.1 As Autoridades Administrativas Independentes: breve alusão histórica

Os direitos fundamentais de 3ª Geração, como se viu, surgem num contexto civilizacional e cultural caracterizado pela globalidade dos fenómenos e das experiências sociais e económicas, bem como pela maior preponderância da Informação, enquanto bem económico, mas também enquanto instrumento de poder. O valor do saber, do conhecimento, da detenção da informação existente sobre determinado sujeito ou objecto, da capacidade e possibilidade de utilização da informação detida, da sua gestão para servir interesses próprios, quer dentro dos ramos de actividade económica, quer no desenrolar das relações sociais, quer, ainda, na participação pública, conheceu um incremento exponencial nas últimas décadas. Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico e a massificação das tecnologias ligadas à Informação e à Comunicação trouxeram novíssimas preocupações ligadas ao campo das liberdades públicas das pessoas, para as quais a sociedade e a administração tiveram de se dotar de meios de garantia que correspondessem às novas exigências. Na verdade, nem as instituições políticas existentes, nem a Administração que continuava o modo de actuação da era Industrial, verticalizada, racionalizada em torno de uma hierarquia rígida, segmentada e estanque entre os diversos departamentos de actividade, burocrática e autoritária, herdeira da cultura unilateral do Estado e do Poder e pouco preparada tecnicamente, nem a sociedade nem a administração, dizia-se, estavam preparados para responder à velocidade das mudanças, a estas exigências de garantia que nasceram com os direitos fundamentais de 3ª Geração. A estrutura clássica da administração fundada sobre a especialização de tarefas, com a rígida hierarquização de competências, surgindo como titular do interesse geral através dos seus funcionários, é uma administração muito pesada, lenta, com dificuldades face à inovação, fechada ao diálogo com cidadãos e grupos de interesses. Pouca comunicação interna, entre os diversos departamentos, pouca comunicação externa com os actores exógenos à administração, pouca complementaridade entre os organismos de preparação da

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legislação, a Administração clássica pauta-se pela matriz da função propriamente executiva e das funções pré-contenciosas. Esta falta de antecipação, de regulação anterior, de posicionamento prudente e preventivo, de pró-actividade face aos fenómenos é uma concepção demasiado jurídica dos poderes que pode, com relativa facilidade, fazer deslizar a actuação da administração e levar à iniquidade das suas decisões (Gentot, 1994). Os direitos fundamentais de 3ª geração, onde se incluem o direito de acesso aos registos e documentos administrativos e o direito à protecção de dados pessoais, adquirindo aquela capacidade de exigir a sua garantia que é própria dos direitos e liberdades fundamentais, exigiram também criatividade e novidade ao modo de configurar e de actuar da Administração.

Neste novo panorama, surgiram as Autoridades Administrativas Independentes que não são subordinadas ao poder executivo, nem são um prolongamento do poder legislativo nem do poder judicial, antes são dotadas de poderes que lhes permitem exercer autonomamente uma missão de regulação sectorial (Teitgen-Coplly, 1998) e assumem uma natureza de poder legislativo-normativo, executivo e parajurisdicional, assegurando os equilíbrios do sistema (Moreira, 2002).

Originárias dos Estados Unidos da América, cedo estas instituições foram recebidas na Europa, onde, em França, apareceram ligadas à protecção dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, com o objectivo de acompanhar, regular e monitorizar sectores sensíveis ou estratégicos, bem como de proteger as pessoas administradas do Estado-Administração (Moreira, 2002). É um verdadeiro “quarto poder” que visa retirar das maiorias políticas determinados matérias (Moreira, 2002), uma resposta dos poderes públicos quando confrontados com outros poderes (mediáticos, informáticos, técnicos e científicos) (Teitgen-Colly, 1988) que nasce com uma lógica e racionalidade diferentes da administração clássica e tradicional. Mas, seguramente, são investidas de importantes poderes para exercerem uma magistratura de influência e para tomarem decisões administrativas de carácter não jurisdicional, permitindo-lhes uma intervenção permanente no sector da sua competência (Gentot, 1994).

“Quarto poder”, pois ao Estado compete a protecção contra os perigos decorrentes do “desenvolvimento técnico e impacte sobre os direitos” e “dirimir os

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conflitos existentes”, incluindo “conflitos de direito privado em tal maneira desiguais entre os sujeitos que recai ao Estado a função de protecção do mais fraco” (Pieroth, Schlink, 2008) De facto, “os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se” (Miranda, 2000) através de meios institucionais e organizatórios que tenham dignidade e relevo constitucional, como um verdadeiro poder coexistente com os demais poderes, que se distancie e limite o poder governamental, na medida em que não surge como o titular e gestor do interesse público, mas procura o “dever ser” no âmbito da valoração e do controlo dos fenómenos sociais (Cassese, Franchini, 1996). “As autoridades administrativas independentes representam a pessoa moral do Estado mas distinguem- se da pessoa política do Estado” (Teitgen-Colly, 1988), têm uma missão de definição de uma deontologia dos poderes públicos face ás liberdades públicas (Maisl, 1988) e exercem, na comunidade política a que respeitam, funções tripartidas: a) função de garantia de direitos e interesses protegidos pelo ordenamento jurídico e que derivam directamente da Constituição; b) função de autoridade e agência com prevalecente exercício administrativo em determinado sector da vida económica ou social; e c) função de orientação, coordenação e monitorização e vigilância de sectores eminentemente técnicos (Cassese, Franchini, 1996).

Efectivamente, as Autoridades Administrativas Independentes nascem como “peritus peritorum “ (Cassese, Franchini, 1996), como o “Governo de Sábios” (Gentot, 1994), fazendo juntar à tradicional administração “jurisdicionista, igualitarista e racionalista” a capacidade de especialização, de pericía, de “expertise”, de inovação e de adaptação à realidade em permanente e fugaz mudança, porque o Estado burocrático e rotineiro não garante suficientemente as liberdades públicas (Gentot, 1994). As Autoridades Administrativas Independentes têm uma legitimidade técnica (Moreira, 2002) que provoca, pelo menos, duas consequências muito singulares na actividade dos poderes públicos: a neutralização do jogo dos interesses em tensão pela autoridade técnica, garantindo os equilíbrios (Sassese, Franchini, 1996) e a desresponsabilização do Governo face às áreas da sua actuação (Moreira, 2002). A elevada tecnicidade das Autoridades Administrativas Independentes, para além de lhes conferir uma legitimidade autónoma face aos poderes executivo, parlamentar e judicial, acrescenta um suplemento de segurança para os cidadãos, assegurando-lhe um maior campo de protecção e conferindo maior consistência de ordem objectiva aos direitos fundamentais

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e às liberdades públicas (Miranda, 2002). Este suplemento de segurança depende, todavia, da reunião de algumas características com que, na sua génese legal (pois são criadas por lei e é a lei que o dita: Cassese, Franchini, 1996), as Autoridades Administrativas Independentes são timbradas pela independência e pela neutralidade. A independência pode ser vista a partir de um “nível de abstracção” superior ao conceito de autonomia, mas não significa total ausência de controlo. A independência significa, em primeiro lugar, a titularidade por mandatos inamovíveis dos seus membros, que não reportam nem obedecem a qualquer tutela, designados a partir de características subjectivas e de competências técnicas que ofereçam distância e neutralidade face aos poderes públicos e privados. Mas a selecção dos membros que as compõem e a sua irresponsabilidade e inamovibilidade não assegura a independência destas entidades. A independência e a neutralidade das Autoridades Administrativas Independentes tem de ser também funcional, manifestada na estranheza e indiferença face aos interesses em jogo, actuando através de um efectivo exercício da acção reguladora e protectora, garantística dos direitos e liberdades fundamentais e fiscalizadora dos interesses socialmente relevantes segundo a solução abstracta do legislador (Cassese, Franchini, 1996). A submissão directa à lei e a especial posição que ocupa face aos demais poderes formais e fácticos são garantias de independência, mas esta ainda carece de um modelo organizativo que permita e favoreça a independência, sem condicionamento do desempenho das autoridades nem do exercício das suas competências (Cassese, Franchini, 1996). É a posição de despojamento do poder que a invocação da titularidade do interesse público confere que coloca as Autoridades Administrativas Independentes na posição de árbitro das relações havidas no sector sobre que actua, podendo proteger os mais fracos e conseguir soluções equitativas, surgindo lado a lado com o cidadão titular dos direitos fundamentais e das liberdades públicas, aprofundando a participação e a democracia no seio da Administração e expurgando práticas obsoletas de autoritarismo, confidencialidade e opacidade.

A legitimidade e dignidade das Autoridades Administrativas Independentes vem, ainda, da razão de ser da sua criação. Não devem ser quaisquer interesses que careçam ou apelem para a regulação pública que deve originar o surgimento de uma autoridade desta natureza. Diferentemente, as autoridades desta natureza só devem ser criadas para resolver problemas que tenham a ver com a necessidade de proteger direitos

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fundamentais ou interesses constitucionalmente protegidos perante actividades que servem interesse públicos e/ou privados que podem conflituar com aqueles direitos e interesses, ou para regular sectores sensíveis da vida económica onde se cruzam direitos fundamentais e valores constitucionais que é preciso proteger (Moreira, 2002). Instituindo estas autoridades, o controlo e fiscalização democráticos têm de ser criados e igualmente instituídos, através dos procedimentos e pela participação das pessoas, através da visibilidade das actuações e da inevitável “accountability” perante a comunidade e os cidadãos, através das instituições democráticas de controlo político e jurisdicional (Governo, Parlamento, Tribunais e outras Autoridades), para não nascer uma administração “ademocrática” irresponsável e sem qualquer controlo.

A CRP, desde a sua revisão de 1997, no seu nº 3 do artigo 267º, permite, sugerindo, que a lei possa criar entidades administrativas independentes como forma de actuação da administração fora do controlo dos partidos e das maiorias políticos, visando um acréscimo de imparcialidade (Miranda, Medeiros, 2007). É a lei, portanto, que decide criar as Autoridades Administrativas Independentes e dotá-las das garantias de independência.

Para os dois direitos fundamentais aqui em estudo, a lei criou uma entidade administrativa independente para garantia de cada um deles: a CADA e a CNPD.

7. 2 A CADA – Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos

A CADA é uma entidade administrativa independente a quem cabe zelar pela aplicação da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e que funciona junto do Parlamento português: nº 1 do artigo 25º da LADA. A CADA é composta por um colégio de membros de diversificada proveniência, contribuindo esta composição para as garantias de multidisciplinaridade, imparcialidade e independência, pois os seus membros são designados por diferentes lógicas de legitimidade e representação, todos contribuindo para a elevada competência técnica da comissão, uma vez que estão obrigados a exercer as funções inerentes ao cargo com isenção, rigor e independência (nº 1 do artigo 26º e nº 2 do artigo 29º da LADA). Os mandatos dos membros são de 2

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anos, renováveis sem limitações de designação (assegurando a estabilidade institucional e a estabilidade do conhecimento e decisória) e cessando com a posse dos novos membros (nº 4 do artigo 25º da LADA), sendo os seus membros inamovíveis e só terminam os mandatos por morte, impossibilidade física permanente ou com duração que se preveja ser superior à duração do mandato, renúncia e perda (nº 4 do artigo 29º da LADA). A perda de mandato só ocorre mediante deliberação (nº 7 do artigo 29º da LADA) por uma das razões seguintes: incapacidade ou incompatibilidade prevista na lei ou faltas injustificadas dos seus membros a 3 sessões consecutivas ou 6 intercaladas no mesmo ano civil (nº 6 do artigo 29º da LADA).

Compete à CADA (alínea b) do nº 1 do artigo 27º da LADA) apreciar as queixas contra as faltas de resposta da administração aos pedidos de acesso, contra o indeferimento ou limitação deste direito, por parte da administração, conforme o nº 1 do artigo 15º da LADA, emitir parecer sobre o acesso a documentos administrativos solicitados pelas entidades requeridas (alínea c) do nº 1 do artigo 27º), emitir parecer sobre a comunicação de documentos entre serviços e organismos da administração, salvo se se tratar de interconexão de dados, caso em que será chamada a CNPD (alínea d) do nº 1 do artigo 27º da LADA), pronunciar-se sobre o sistema de registo e classificação de documentos (alínea e) do nº 1 do artigo 27º da LADA) e contribuir para o esclarecimento e divulgação das diferentes vias de acesso aos documentos administrativos no âmbito do princípio da administração aberta (alínea h) do nº 1 do artigo 27º da LADA). A administração, toda a administração, ou melhor, todas as entidades abrangidas pelo artigo 4º da LADA estão obrigadas a cooperar com a CADA42.