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O Império Novo nascera, e quanto a isso não restam dúvidas, pela reacção armada ao domínio e preponderância de um grupo de estrangeiros que se haviam estabelecido no Norte do Egipto, ocupando o Delta, e importantes centros urbanos, como Mênfis, que recordavam o fulgor de tempos passados e constituíam verdadeiros ícones de identidade cultural e religiosa. Contudo, esse sentimento não parece, como vimos, ter sido transversal a toda a sociedade, pois havia quem aparentemente se sentisse satisfeito com o domínio asiático. Então, em que medida se poderá falar de uma reacção «nacional» quando nos reportamos à expulsão dos Hicsos? Na verdade, essa é sobretudo uma causa tebana e que terminará com pleno sucesso.

Os empreendimentos que tiveram início na XVII dinastia terão, porém, consequências mais vastas do que a expulsão dos Hicsos do Egipto. O intento de intimidar as populações palestinas, de forma a procurar garantir uma segurança das suas fronteiras, ganhou contornos de demonstração de força militar nunca antes vista e que foi muito mais além do que a zona de Canaã. Era o afirmar do renascimento de um grande reino internacional pelas incursões militares? Era o reaver do seu papel de grande potência, e garantir o reconhecimento disso por todo o mundo conhecido de então?

Aquilo que nos parece ser claro é que não podemos justificar o avanço militar da XVIII dinastia para a Síria-Palestina pura e simplesmente como uma reacção aos Hicsos. Essa

178 Não temos registo para descrever o treino militar de Tutmés III. No entanto, para o seu sucessor, Amen-hotep

II, já há indicações. Veja-se, acerca do treino militar, GABRIEL, Thutmose III, p. 12-14.

46 visão, que sublinha somente a ferida na memória colectiva, parece ser um pouco ultrapassada e não reflecte alguns pormenores: a) em termos cronológicos, não justifica a insistência durante cerca de vinte anos nas actividades militares no Levante; b) não explica porque é de um momento para o outro as actividades militares esporádicas (de avanço e retirada no terreno) ganham um novo sentido, o da ocupação e de administração de territórios estrangeiros; c) não tem presente as questões internacionais da época nem tem bem assente o papel que desempenhava a Síria-Palestina.

Se aceitarmos a ideia de que a expulsão dos estrangeiros estacionados na zona do Delta não foi um processo momentâneo e facilmente resolvido, mas sim um processo contínuo, e que terá chegado até ao reinado de Hatchepsut, poderemos afirmar que num primeiro momento os faraós da XVIII dinastia, que herdaram o reino unificado depois da expulsão dos Hicsos, procuraram resolver um problema que parecia incompleto, o da expulsão dos estrangeiros, e desta vez com uma atitude ofensiva. Contudo, não temos como comprovar esta ideia. Em alternativa, e tendo em conta que as relações «interestatais» na Antiguidade se pautavam também por demonstrações de força e poderio180, podemos concluir que se trata: a) de acções de intimidação e reforço da posição internacional181; b) que reflectem a incapacidade imediata de actuar no terreno, isto é, de o controlar e dominar pela força182; c) e que procuram assegurar e manter seguras uma série de rotas comerciais para o Egipto.

Só no reinado de Tutmés III é que a «política externa» egípcia ganha outros contornos. Convém, em suma, perceber porque é que afinal só se tem essa capacidade neste período, e porque é que há uma intenção deliberada de dominar esse espaço. Procuraremos explicar o porquê desse fenómeno.

O segundo milénio é marcado, em termos de política internacional, pela coexistência de reinos poderosos183 que procuravam alargar a sua área de influência em termos políticos, económicos e militares, impondo as suas ambições e procurando reconhecimento184. Entre «pares», isto é, entre «grandes reis», muitas vezes os interesses eram comuns e colidiam, e, por isso, havia que chegar a consensos, que tinham na base um confronto militar cujo

180 HERSHEY, The history of international relations…, AJIL, p. 902.

181 Ao estilo das práticas reais do Império Médio, em que era comum ir caçar para o Levante. REDFORD, Egypt,

Canaan and Israel,p. 149.

182 Os três primeiros reis da XVIII dinastia estavam mais preocupados em resolver «o problema núbio». Era

crucial manter uma hegemonia sobre o Sul para ter uma nova política em ralação ao Norte. Ibidem.

183

LAFONT, International relations…, Diplomacy & Statecraft, p. 41.

47 resultado seria a expressão da vontade divina185. A grande ameaça em termos internacionais, na primeira metade da XVIII dinastia, era sem dúvida o Mitanni. O Mitanni havia-se afirmado como um grande reino, subjugando uma série de vizinhos, entre os quais os Hititas186, e a sua influência era sem dúvida ameaçadora, tendo grande preponderância na Síria. O avanço mitânio era rápido e punha em causa a segurança do Egipto pois, como aponta Richard Gabriel, se esse não fosse o objectivo não se perceberia como é que cerca de trinta e um líderes de diferentes reinos, entre os quais se incluem os do Norte da Síria e o Mitanni, se unissem militarmente187. Seriam vistos como os «novos Hicsos»? Para James Hoffmeier, isso não parece oferecer dúvida, pois sustenta que era intenção de Tutmés III erradicar os Hicsos do controlo da Palestina188. Mas isso não passará de uma justificação/legitimação para levar avante uma luta de influências, a luta pelo domínio do Levante. Desse modo, será fácil compreender porque é que, chegado definitivamente ao poder único, Tutmés III declare, nos seus Anais, que «desde Ierasa até aos confins da terra rebelaram-se contra sua majestade»189. Vencer os asiáticos que se haviam coligado contra o rei egípcio era vital e prioritário.

Em suma, o avanço militar para a Síria-Palestina apresenta-se tanto como causa como consequência. Ele é uma resposta ao domínio hicso, resposta essa que procura afastar o estrangeiro o máximo possível das suas fronteiras, daí que o procure dissuadir, através de incursões militares, procurando também abrir cada vez mais as rotas que eram vitais para o Egipto. Por outro lado, é também uma reacção à disputa da zona e dos interesses comerciais que lhe estão subjacentes. No fundo, a expulsão dos Hicsos abriu caminho a uma política claramente ofensiva, centralizadora, imperial. Quebra-se a linha de um equilíbrio aparente, já que o Egipto tinha uma posição tradicional de destaque nesse comércio, e passa-se a um controlo efectivo daquela zona, o que mais tarde levará a que as zonas dominadas se tentem coligar com potências inimigas do Egipto. E isto porque, como já mencionámos, a área se reveste de grande importância económica, na medida em que é produtora de vários bens e possui grandes recursos, mas também por ser, como tantas vezes designamos, um «corredor», uma região de passagem, um elo entre as potências da época e de várias zonas do Médio Oriente Antigo entre as quais se estabeleciam importantes rotas comerciais, interligando estes mundos.

185 LAFONT, International relations…, Diplomacy & Statecraft , p. 44. 186

REDFORD, The northern wars…, Thutmose III: a new biography, p. 330.

187 GABRIEL, Thutmose III, p. 89.

188 HOFFMEIER, Reconsidering Egypt’s part…, Levant, p. 189. 189

IEI, p. 79. Donald Redford sublinha a importância desta frase, defendendo que a preocupação de Tutmés III é sincera, não se tratando de propaganda. Cf. REDFORD, Egypt, Canaan and Israel, p. 156.

48 Em jeito de síntese, podemos dizer que os primeiros faraós da XVIII dinastia fizeram acções punitivas, das quais resultaram espólio e cativos, e não tiveram uma atitude de ocupar permanentemente o espaço, até porque até ao reinado de Tutmés II ainda havia um grande esforço em restabelecer o controlo egípcio sobre a Núbia.

Com Tutmés III, consolidam-se as fronteiras alcançadas de forma permanente, e organizam-se esses territórios, alterando-se pois a relação entre o Egipto e a Síria-Palestina, com o estabelecimento de uma estrutura de governo na Ásia190. Para que tal fosse possível, em muito contribuiu a modernização do exército e a definição de uma nova doutrina no campo militar191. Estes foram passos fundamentais para que o Egipto deixasse de ser estrategicamente defensivo e passasse a uma acção ofensiva clara, com efeitos concretos, que se pautava pela subordinação militar e política das cidades-estado de Canaã e da Síria192.

190 GESTOSO, Las técnicas de la dominación…, Aegyptus Antiqua, p. 49. 191

«When Thutmose III came to power, he provided a new strategic vision and shifted the Egyptian strategic paradigm from defense to offense. In his new strategic perspective, Egypt’s defense required the military and political subordination of the city-states of Canaan and Syria (…) To achieve its strategic goals the new army would have to be larger, better equipped, and better organized logistically to carry out expeditionary campaigns almost without rest. Garrisons had to be constructed and manned, the professional cadre expanded and organize and train large numbers of conscripts, and new administrative roles had to be created and staffed. Transporting Egyptian forces by sea also required expanding and modernizing the navy, meaning Egypt needed new shipyards and large shipbuilding program. Egypt also had to secure the sources of important strategic materials and establish thousands of new workshops manned with skilled craftsmen to produce the necessary modern weapons and war machines in substantial number. While the army’s restructuring program probably began under Hatshepsut and incorporated previous improvements in supplying new weapons, most of the credit is owed to “the military genius of Thutmose III”» GABRIEL, Thutmose III, p. 55. Ver também SALES, Exército, DAE, pp. 351-354.

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CAPÍTULO III

O ESPAÇO EXPLORADO: HEGEMONIA EGÍPCIA?