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Capítulo IV — Os livros nas cartas dos jesuítas

3. As citações dos livros europeus

Adentrando em questões referentes ao litígio político estabelecido entre o padre Nóbrega e o bispo Sardinha, há cartas que explicitam as desavenças usando citações bastante específicas dos trabalhos do doutor Martín Azpilcueta Navarro e do cardeal Caetano. A carta do bispo para Simão Rodrigues, escrita provavelmente na Bahia em julho de 1552337 — mas só enviada para Roma em 6 de outubro de 1553, mais de um ano depois de escrita, juntamente com a segunda carta que o bispo escreveu de terras americanas —, trata de contrariar as práticas empregadas por Nóbrega com os índios.

Interessa-nos especialmente o trecho em que o bispo comenta as citações feitas por Nóbrega de trabalhos do doutor Martín de Azpilcueta Navarro e do cardeal Caetano para justificar a prática da confissão (aqui especificamente de mulheres mestiças) por intermédio de intérpretes (os “línguas”): “Yo lo dixe que no lo devia más, aunque

trezientos Na[va]rros y seiscientos Caietanos digan que se puede hazer de consilio”.

Nóbrega faz estas citações na carta escrita também da Bahia no fim de julho de 1552338 e ainda na carta escrita da Bahia no fim de agosto de 1552339, ambas ao Provincial Simão Rodrigues. A primeira deve ter seguido logo para Portugal posto que, conforme constata Serafim Leite, foi para Roma (traduzida para o espanhol) já em 16 de novembro do mesmo ano. Ainda segundo Serafim Leite, uma cópia desta carta (ainda em português) está bastante anotada por Polanco (“sublinhou palavras e escreveu à margem vários números”, no entanto, o organizador não transcreve as anotações no aparato crítico) e que, ao enviá-la a Loyola, o padre Mirón (então Provincial de Portugal substituindo o padre Simão Rodrigues, fato ainda desconhecido em terras americanas) acrescenta uma explicação em que pede as observações de Loyola sobre os “inconvenientes que en el Brasil [...] se ofrecen”340. Nesta, a citação está assim:

335Cartas, vol. III, carta 57, pp. 391-4, e Introdução Geral, p. 83*.

336Cartas, vol. III, carta 53, de Anchieta em São Vicente para Laynes em Roma, 30/7/1561, p. 382. 337Cartas, vol. I, carta 49, p. 357.

338Cartas, vol. I, carta 51, p. 369. 339Cartas, vol. I, carta 54, p. 407.

E nom o acostumey senão pelo achar scripto e ser mais comum opinião, como relatou Navarro in capite Fratres de Paenitentia, distinctione 5ª, n. 85, alegando Caietano e outros, verbo Confessio, cassu no 11.341

Na segunda carta, a citação da obra do doutor Navarro é novamente bastante precisa e a citação do cardeal Caetano é mais detalhada, e não apenas em citação indireta como na anterior: “[...] posto que Caietano in summam, 11ª conditione, e os que alega Navarro, c. Fratres, no 8o de penit. Dist. 5ª, digam que pode”342. Assim, faz crescer a suspeita de que efetivamente tivesse ambas as edições na Bahia para sua consulta. Em nota, Serafim Leite nos dá as edições do doutor Navarro e do cardeal Caetano as quais, pela data, poderiam ser as que Nóbrega possuía na Bahia: Martini ab Azpilcuelta

Navarri iuriscõsulti in tres de poenitetia distinctiones posteriores comentarii, Coimbra,

1542343, e “Confessionis Conditiones: Undecima: secreta” cf. Summula Caietana

Reverendissimi Domini Thome de Vio Caietani Cardinalis, Lugduni, 1550344 .

Ainda outro dado: Nóbrega teria escrito nessa mesma época ao próprio doutor Navarro, conforme vemos na carta que escreveu a Luís Gonçalves da Câmara, reitor do Colégio de Coimbra, de São Vicente, em 15 de junho de 1553, em que relata a falta de resposta de Mirón e de Navarro: “No escrivo al Pe Mirón porque aún no vi su carta ni

la respuesta de lo que escreví el año passado, ni la respuesta de lo que escreví al Doctor Navarro”345

. Sem resposta e, portanto, não sendo a correspondência do próprio Navarro a fonte das citações, reforça assim a eventual posse do livro.

O ano de 1560 foi marcado pelo sucesso da tomada da fortaleza do Rio de Janeiro aos franceses — feito que os padres atribuíam a um milagre. Em meio aos documentos desse ano, Serafim Leite entremeia ainda os depoimentos dos padres jesuítas no processo contra o francês João de Bolés, acusado pelo padre Luís da Grã de práticas calvinistas. Uma carta do irmão Anchieta ao Geral Diego de Laynes descreve o francês como “enseñado en las artes liberales, griego y hebraico, y muy versado en la Sagrada

Escriptura” e “que sabe bien la lengua español”346

. Nesta mesma carta conta ainda que o padre Luís da Grã, em seus sermões públicos, “amoestava al pueblo que se guardasse

destos hombres y de los libros, que truxeron, que eran llenos de herejías”347 .

341Cartas, vol. I, carta 51, p. 369. 342Cartas, vol. I, carta 54, p. 407. 343Cartas, vol. I, carta 51, p. 369, n. 4. 344Cartas, vol. I, carta 54, p. 407, n. 17. 345Cartas, vol. I, carta 69, pp. 501-2.

346Cartas, vol. III, carta 36, de São Vicente, em 1/6/1560, p. 264. 347Idem, p. 266.

Interessa-nos em particular nesses depoimentos a delação dos livros apreendidos com os franceses (“pelos livros que lhe acharão muytos”348 —, a tomar pelos relatos, em sua maioria livros defesos, mas também um missal, com as imagens devidamente rasuradas: “grande muchedumbre de libros heréticos, entre los quales (si por ventura

esto es señal de su recta fe) se hallo um missal con las imágines raídas”349

. Também interessam os indícios de como funcionava a prática calvinista na América portuguesa e o grande uso que se fazia dos livros, o qual Manuel da Nóbrega chega a mencionar mais tarde como exemplo a ser seguido pela própria Companhia de Jesus ao reforçar seu antigo pedido para se enviar meninos índios para a Europa para

aprender letras y virtud, para que buelvan después hombres de confiança” argumentando: “si unos herejes franceses que poblavan cierta tierra deste Brasil usavan desto, y embiavan muchos niños a Calvino y a otras partes para que enseñados en sus errores bolviessen a la tierra, quanto más razón será hazer nosotros lo mismo?350

Tomando primeiro o depoimento de Nóbrega, João de Bolés teria anotados consigo trechos de um livro de Lutero que argumentava não ser proibido em sua terra:

Bolés lera, em hum cartapasio, serta leytura, que tresladara de hum livro do Lutaro, dizendo-lhe que não achara nele outra cousa boa; dizendo-lhe ele testemunha [Nóbrega] que como lyo o tal livro, pois hera defeso sob pena de excomunhão? A que ele [Bolés] deu em reposta que na sua terra hera licito ler todos os livros351.

Ainda discutindo com Nóbrega, agora sobre a forma de rezar o pai-nosso, Bolés afirmou que usava palavras do grego que não haviam sido traduzidas pelos católicos e que as encontrara em “huns livros da doctrina luterana, que agorra vierão do Rio de Janeiro com outros muitos tambem luteranos”352. Os livros apreendidos no Rio de Janeiro circularam, portanto, na capitania de São Vicente, onde se realizava este processo. No entanto, não há indicações de qual foi o fim dado aos livros.

348Cartas, vol. III, carta 35, de Nóbrega ao Cardeal Infante D. Henrique, de São Vicente, em 1/6/1560, p. 244.

349Cartas, vol. III, carta 36, do irmão José de Anchieta para o Geral Diego Laynes, de São Vicente, em 1/6/1560, p. 268.

350Cartas, vol. III, carta 52, de Nóbrega para o Geral Diego Laynes, de São Vicente, em 12/6/1561, p. 363.

351Cartas, vol. III, documento 32, “documentos dos padres no processo de João de Bolés”, Santos, 22/4/1560, p. 184.

Em 1562, agora na Paraíba, os franceses ainda faziam troça com os livros piedosos dos padres: “tomavão por passatempo escarnecer e zombar dos livros de rezar, que levavão, e imagens, dizendo, deos de pao, deos de frandes”353.

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