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As colagens de Antologia mamaluca I e II

CAPÍTULO 3 – PALIMPSESTOS – A reverberação da colagem na obra de Nunes

3.3 As colagens de Antologia mamaluca I e II

As obras Antologia mamaluca I e II, (1988/1999), é composta de vários livros, num total de 352 páginas, antes impressas de forma anticonvencional, como folhetos, cartazes, envelopes com poesias. Com composições de teor satírico, no volume I, os poemas são: “O suicídio do ator”, “Finis operis”, “Última carta da América”; a outra metade do livro, impressa de cabeça para baixo, intitula-se Poesias, ou também Poesias em estilo New Romantic ou mesmo Pornô Nouveau, traz poemas inéditos, até sua compilação na antologia. No volume II, “Papéis

higiênicos”,362“A velhice do poeta marginal”, “Serenata em B menor”, “Zovos”, “A cidade de Deus” e, impresso de cabeça para baixo, o poema inédito “Aurea mediocritas”.363

No conjunto da obra de Nunes, as duas Antologias mamalucas são as que mais apresentam experimentação com o não-verbal. Há desde desenhos, fotomontagens, storyboards, plágios, capitulares, quadrinhos, manchas, rabiscos, até a poesia visual. Constituem composições

362 Ver tese: SOUSA, Ilza Matias de. Figuras e cenas brasileiras: leitura semiótica de Papéis higiênicos. Estudos sobre guerrilha cultural e poética de provocação de Sebastião Nunes UFMG, 1987.

363 Ver dissertação: MOREIRA, Wagner José. Aurea mediocritas: evidências de uma tradição. Estudo da poética de Sebastião Nunes. Dissertação, 1994, PUC/MG.

sedutoras e, à primeira visada, irreconhecíveis como gênero literário, pela exacerbação das experimentações tipográficas, conforme foi explanado na caracterização do “não-livro”.

FIGURA 53: Capas de Antologia mamaluca I e II.

Na capa de um livro há quase que uma obrigatoriedade de produção editorial estar inserido o título da obra. Nesse caso, o título ocupa grande parte do espaço e, como o mesmo autor é também editor e ilustrador, nota-se o jogo entre a tipografia e as ilustrações. Recorre-se tanto aos elementos icônicos – o sapo e as barras ornamentadas – como à moldura entrelaçada com arabesco na capa final do volume I, que funciona, também, como primeira capa da obra Poesia Pornô Noveau. Na capa de Aurea mediocritas, percebe-se a busca de simetria e equilíbrio nas laterais; o elemento ornamental repetido nos quatro cantos – e ao centro, com acréscimo de ornamentos – é formado por arabescos que circundam a imagem de uma coruja, e, conjugados

nas formas quadrada e circular, demonstram o domínio do trabalho gráfico, pelo jogo da harmonia com elementos orgânicos e geométricos.

(c) (d) FIGURA 54: Páginas do poema “Finis Operis”; Antologia mamaluca I.

A obra “Finis Operis”, em Antologia mamaluca I, a narrativa tem a primazia da imagem e

aproxima-se de um diário, ou bloco de anotações; assim, o leitor tem acesso a: diagnósticos, o processo criativo do escritor, palavrões e descrições de cenas do cotidiano do autor. É apresentada em diferentes linguagens gráficas: foto, numerais ampliados e outras ilustrações que não aparecem aqui, como fragmentos com intervenções no filme dos irmãos Lumière, e também imagens com fragmentos de corpos. Sobre as imagens acima (Figura 54), tem-se sob o ponto de vista da recepção a correferência do texto e da imagem, nas figuras 54 (b) e (d), pois são autônomas – as imagens não, necessariamente, têm de ilustrar o texto.

Em (d), o corpo de bebê decapitado é simultâneo ao texto “tratado geral de levitação”, apresentando oposição de significância; a figura 54(b) repete o jogo dos almanaques, convidando o leitor a leituras múltiplas.

Na figura 54(a), o número “1922”, como tipografia ou poesia visual, tem o seu valor icônico

ampliado, na medida em que os números ocupam toda a página, numa série de três, não

totalmente legíveis; ligados à série pela conjunção “ou”, dois números pequenos, sugerindo a leitura: “1922 ou 1956; 1922 ou 1964”, uma possível alusão à da Semana de Arte Moderna, ao

governo democrático de Juscelino Kubitschek e ao golpe militar que inaugura a ditadura brasileira – esta última associação é reforçada pela presença de insetos (baratas, moscas,

é transformado em mapa do Brasil. A imagem que dispensa o texto é completada pela consciência do leitor, que cria a legenda – o texto.

FIGURA 55: “Auto da virgem ensimesmada”, de “Carta da América”, Antologia mamaluca I.

Em “Auto da virgem ensimesmada ou Relatório da suave batalha entre o poeta e a musa”, em

o Depoimento das Testemunhas podem ser vistos dois retratos que “falam” pelos textos dispostos acima de suas cabeças, sinalizados com uma seta gráfica. Cada um repete uma frase, como em um refrão. As fotos vêm com retoque nas regiões mais escuras, acentuando o contraste. Em simultaneidade, imagem e texto dividem a cena (ou a página) e a imagem ocupa maior espaço gráfico, como em uma imagem publicitária.

(a) (b) (c)

Na imagem 56(a), na simultaneidade da letra e do texto, tem-se um poema visual híbrido, com uma caligrama (“a” inicial de amada substituído pela imagem de dois corpos nus), exibe uma

capitular (letra “E”) formada por animais. Na figura 56(b), um retrato ocupa a maior parte da

página, enquanto o poema de quatro versos faz referência à imagem, a partir da alusão aos nomes, nas formas diminutivas, de poetas do Romantismo (Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Castro Alves e Arthur Rimbaud). O retrato é manipulado com tiras de partes do(s) rosto(s) que lembram os poetas citados, como se fossem um só; não dissimulando a intervenção, provoca no leitor à recepção do processo do escritor. Como se trata de uma poesia, com experimentações gráficas em cada página, ou seja, sem unidade, resta ao leitor entendê-la como correferente a Poesias – título do livro que abarca os fragmentos poéticos. A imagem 56(c) traz a cena de enforcamento do artista Callot, sinalizada pela figura do macaco e pelo número da página, o que a torna correferente também a Poesias.

(a) (b) (c)

FIGURA 57: “Procissão da Chuva”, de “Papéis Higiênicos”, Antologia mamaluca II.

As imagens de Procissão da Chuva fazem parte da narrativa que começa com a história de João Cândido, que morreu de doença de chagas, dando início a outras tragédias. Nunes cria um

subtítulo para a narrativa: “Melopéia sertaneja sobre poeira, esqueletos e sol”. A partir de fotos

documentais, ele faz intervenção, inserindo a mão de um esqueleto, ora como ornamento, ora como elemento de cenário, como em 57(a) e (b). As imagens, sempre acompanhadas de um texto curto, como legendas. Pela situação de comunicação, as fotos ilustram os textos, que, por sua vez, passam a referenciá-las. Na foto da figura 57(a), ele apaga o rosto de três figuras humanas e deixa intacto o de uma senhora que olha para o leitor. Traz um texto informe e escatológico, não menos trágico que as fotos da procissão, vislumbrando a pobreza. Na foto da

figura 57(c), o autor-ilustrador percebe a semelhança entre as flores do vestido da mulher (que ocupa maior parte na imagem) com uma forma animalesca e a apropria, transformando-a num tipo de micróbio estilizado, ornamentando o fundo da imagem e concedendo ao texto o tom grotesco: “estômagos e intestinos, pulmões e corações, músculos e tendões: imensos auditórios: bilhões de micróbios realizam assembleias gerais: divisão de lucros e redistribuição material”.364

FIGURA 58: “Pneumonia dupla” – Antologia Mamaluca II.

Em oito páginas, Nunes poetiza a sobre o suicídio de Augusto dos Anjos. A imagem acima abre a narrativa. Nessa sátira escatológica, ele faz intervenção em fotografias de cemitério e faz a

inserção do texto como se lê acima “poéticos urubus cagam bem de cima com pontaria de míssil” – como alusão ao estilo escatológico do poeta. Como no jornal O Pasquim, não há

preocupação em inserir a foto correspondente, pois o texto acaba por confirmar qualquer imagem, e assim ele o faz. Nesse caso, o texto é legenda da foto, e a foto, que era anônima, torna-se o monumento de Augusto dos Anjos.

Já na obra “A cidade de Deus” predomina o texto com experimentações tipográficas. Com a

temática da morte, quatro imagens ilustram a sequência do texto que trata da vida do poeta:

“Vamos, vamos, ponham-se em fila! Um poeta ruim é uma punição excessiva para o meu gosto!

Um mau poeta é uma ofensa aos homens e ao Deus, à vida e à alegria, à morte e à dor! [...]”.365

Em seguida, o ilustrador traz o “Exame do corpo de delito”; a “Máscara mortuária” e o “Work

in progress”, a seguir, e, por fim, “Tratado Geral da Alquimia”.

FIGURA 59: “Work in progress”, de “A cidade de Deus”, Antologia mamaluca II.

Neste “Work in progress”, uma imagem que se apresenta como quadrinhos. Dividida em quatro partes, vê-se a imagem de um rosto, em alto contraste (dramaturgo Nelson Rodrigues?), e a

frase “honra ao mérito”, que vai se dando a ler à medida em que o rosto se esvanece sob insetos.

Nessa colagem, em simultaneidade da imagem e do texto, tem-se um discurso sincrético: a poesia visual em formato de quadrinhos.

A seguir, em “Blábláblá Ecumênico (Novas e notáveis opiniões sobre o autor e sua poiesis)”, Nunes cola os retratos de Homero, Dante, Shakespeare e outros em um novo contexto e ocupa todo o espaço, sobrando pouco para o texto, que faz o papel de legenda para cada imagem. E é evidente que a transgressão do autor cria uma legenda que não corresponde à imagem, como a de um militar do século passado que ele nomeia de “jovem jornalista paulista, séc. XX d.C”, e poetiza: “trata-se de um pobre coitado, que jamais conseguirá atingir a limpidez e a depuração semiológica que nós alcançamos”.366 Em gênero retrato, é o único livro da compilação que não

vai à exaustão na experimentação gráfica. Texto e imagem em “Blablablá Ecumênico”, tornam-

365 NUNES. Antologia mamaluca II, p. 68-70. 366 NUNES. Antologia mamaluca II, p. 52.

se correferentes, contudo, a própria noção de referencialidade pode ser posta à prova, considerando-se uma espécie de advertência no início da obra:

Você vai juntando, com os defuntos e os livros, um punhado de verdades ao longo da vida. Estas verdades te corroem como ratos e, se não tomar cuidado, você acaba virando um mesquinho ditador de boas maneiras literárias. A melhor maneira de evitar tais desastres é fazer uma enorme salada de verdades e mentiras, se é que existem mesmo verdades e mentiras. 367

FIGURA 60: Sequência de “Blábláblá Ecumênico”, Antologia mamaluca II.