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2 CAMINHO METODOLÓGICO

6.1 As concepções da atenção

A atenção em saúde mental vem se transformando, principalmente, pela possibilidade de ampliação do olhar sobre o objeto de intervenção, isto é, pelo fato de colocar o sujeito, e não mais a doença mental, e sua rede de relações em evidência, proporcionando um conjunto de ações dirigidas à melhora da qualidade de vida, resgate de direitos de cidadania e inclusão social. Portanto, a transformação da atenção requerida, está diretamente vinculada à noção de processo saúde-doença mental com a qual os trabalhadores operam os processos de trabalho empreendidos por eles.

Campos (1992) argumenta que os projetos reformistas são muito críticos ao que não deve ser feito, porém, tem grandes dificuldades em superar as práticas tradicionais e avançar efetivamente em relação à construção de práticas alternativas de atenção. Assim, uma das principais dificuldades encontradas na transformação da atenção, diz respeito à superação do modelo psiquiátrico, pois, esse reproduz o saber médico em relação às doenças mentais e sua ação, a partir da descoberta dos psicofármacos, se estabelece por meio de uma intervenção nos sintomas, pela via medicamentosa. Observa-se que esta concepção de atenção está presente no discurso dos trabalhadores, apontando ainda os medicamentos injetáveis como imprescindíveis na atenção realizada no CAPS:

“(...) deveriam ver a saúde mental não só como comprimidos, mas também os [medicamentos] injetáveis, porque uma enfermagem [no CAPS], com certeza, precisa injetáveis em várias ocasiões (...).”

Esse fragmento do discurso promove uma identificação entre “saúde mental e comprimidos”, indicando que a atenção estaria baseada nessa premissa. De outro lado, um dos indícios de que o modelo sintomatológico convive com uma compreensão mais ampliada de atenção em saúde mental, no CAPS, aparece em outro trecho:

“‘Eu quero o médico’, mas não adianta só o médico (...) há todo um contexto (...).”

Observa-se que, embora o discurso do trabalhador contemple uma perspectiva de ampliação da atenção, para além do médico e, portanto, da medicação, este também indica a expectativa do usuário em relação à atenção segundo o modelo médico tradicional.

O modelo de atenção também pode ser entendido como uma resultante entre a oferta e o consumo de ações de saúde, isto é, tem a ver com o que é produzido pelos agentes de saúde (atendimento médico) e o modo como a população consome estas ações para lidar com seus problemas (uso da medicação). O padrão de consumo seria determinado pelas características dos serviços ofertados e pela representação social da saúde e da doença, além do valor atribuído aos diferentes cuidados à saúde. (Dalmaso, 1994)

Desse modo, o usuário do serviço tende a responder ao que lhe é ofertado tradicionalmente em termos de saúde. Constata-se, então, que a oferta de serviços exclusivamente médicos é reconhecida como uma concepção de atenção tanto pelo produtor das ações, o trabalhador do CAPS, como pelo usuário, consumidor do serviço ofertado. No entanto, esta oferta tradicional baseada no modelo médico sintomatológico, é também relativizada no discurso dos trabalhadores:

“(...) ela [usuária] pode falar (...) a gente tem conversado cada vez mais e intentado aquela visão médica ortodoxa o menos possível.”

A possibilidade de abertura de espaços para a fala do usuário parece proporcionar a redução da atenção exclusivamente médica. Ao invés de silenciar os sintomas e organizar a “desordem” psíquica, investir na linguagem, que “passaria a ser considerada como meio de produção de um indivíduo que afinal não cessava de dizer coisas a seu respeito”. (Goldberg, 1994: 100)

Esse pressuposto, alinhado ao modelo psicanalítico de atenção, reconhece os sintomas como uma manifestação de conflitos inconscientes, positivando-os como um saber do sujeito sobre si mesmo e sua singularidade. A linguagem é o meio privilegiado de comunicação deste saber que, ao ser endereçado ao terapeuta, transferencialmente, permite o trabalho da análise.

Entretanto, a atenção que aborda o sujeito em seu universo individualizado é também considerada reducionista pelo discurso dos trabalhadores:

“Eu percebo que a gente traz muito o indivíduo aqui (...) a gente não consegue dar conta desse espaço fora da pessoa, a pessoa fora do CAPS (...) é quase como se a gente negasse o que acontece lá fora.”

“A atenção à saúde mental, ela não é só aquela atenção fragmentada, imobilizada, de uma visão técnica (...).”

A concepção de atenção mais representativa, entre os trabalhadores, considera a necessidade de ampliação do campo de intervenções, para além da doença e do sujeito, embora haja uma certa dificuldade em definir a abrangência deste campo:

“Eu acho que (atenção) é a gente permitir uma escuta que estabeleça um laço entre a vida da pessoa fora daqui (do CAPS) e a vida da pessoa aqui dentro.”

“(...) o que eu identifico só aqui [no CAPS] (...) é essa questão (...) de poder pensar no ser humano num todo (...).”

A psiquiatria ocupou-se do estudo da doença, colocou o doente entre parênteses, construiu um objeto fictício, pois não existe a doença sem o sujeito de sua experiência. A psicanálise considerou o sujeito singular, porém, ao “apostar” na construção de possibilidades desde o próprio sujeito, desconsiderou o significado social atribuído à doença, as condições concretas de vida dos sujeitos e o trabalho necessário de transformação das relações sociais.

Portanto, torna-se necessária uma concepção mais abrangente de atenção. A noção de desinstitucionalização vem ao encontro da idéia de desconstrução das instituições, entendidas como conjunto de saberes, práticas e dispositivos todos voltados às funções de normalização e disciplinamento da loucura. O objetivo a ser atingido é a produção de vida, a invenção de saúde e a reprodução social dos usuários de serviços de saúde mental, estes também, novas instituições inventadas. (Rotelli, 1990)

Estamos sempre mais convencidos de que o trabalho terapêutico seja este trabalho de desinstitucionalização voltado para reconstruir as pessoas como atores sociais, para impedir-lhes o sufocamento sob o papel, o comportamento, a identidade esteriotipada e introjetada que é a máscara que se sobrepõe à dos doentes. Que tratar signifique ocupar-se aqui e agora para que se transformem os modos de viver e sentir o sofrimento do paciente e que ao mesmo tempo se transforme a sua vida cotidiana. (Rotelli, 1990: 94)

No campo da reforma brasileira, toda essas tensões entre posições clínicas, políticas e sociais vêm sendo traduzidas, para um campo de práticas e cuidados, na chamada atenção psicossocial. A atenção psicossocial, além de incorporar os aspectos

psíquicos e sociais aos sujeitos da atenção, designa o conjunto de dispositivos e instituições e a forma de estruturar as relações terapêuticas, com implicações éticas radicalmente distintas das práticas asilares. (Costa-Rosa, Luzio, Yasui, 2003)

Desse modo, identifica-se no discurso dos trabalhadores que a concepção da atenção psicossocial é predominante, isto é, demonstra-se uma preocupação com práticas que abarquem aspectos da vida concreta e cotidiana dos usuários. Uma das formas em que aparecem representadas estas preocupações diz respeito ao cuidado com o usuário e o meio social mais próximo, os familiares:

“(...) a queixa vinha mais por parte da família (...) a gente fica naquela posição de fazer a escuta de todo o contexto (...).”

“Eu tenho que aconselhar um pouco esses dois [usuário e mãe] e tentar fazer com que ele tenha uma aderência ao tratamento e que ela também não boicote (...).”

“Você está sempre em contato com famílias, tentando amarrar o tratamento com a situação dele em casa, com a situação social dele (...).”

“(...) precisou conversar com a mãe e esperar essa irmã e orientar algumas coisas (...) a gente necessita de quem está próximo [do usuário] pra ajudar (...) quem vai fazer isso, na verdade, a parceria com a gente, é o familiar (...).”

“(...) eu acho que a família tem que se integrar (...) às vezes a família está distante, por isso que a família é importante vir e participar (...).”

É indiscutível a presença dos familiares dos usuários no tratamento, seja pelas implicações cotidianas no ato de cuidar, ou pela importância no favorecimento das relações familiares, influenciando o campo de relações sociais. A meta do tratamento comunitário em saúde mental implica, necessariamente, em criar condições para o convívio familiar. Observa-se também que a atenção psicossocial no discurso dos trabalhadores envolve outros aspectos da vida concreta dos usuários como questões sociais, econômicas, culturais, de direitos, de trabalho, dentre tantas outras:

“(...) [o usuário] continua tendo o problema dele e ele continua tendo a questão previdenciária (...) a parte clínica (...) caminha junto com a outra parte que aí no caso é a questão da previdência social.”

“(...) eles [familiares] já têm as dificuldades [econômicas], então, se a gente não dá um mínimo de orientação ou até de encaminhamento pra que aquela pessoa [usuário] (...) receba algum suporte de pensão, a pessoa [familiar] fica desesperada e abandona.”

“(...) teve uma intervenção que passa pela diminuição dos sintomas, passa por evitar a internação (...) também passa de trabalhar com ele [usuário] uma outra questão que é a dinâmica familiar, questões outras aí dele com a sociedade, onde ele mora, o território, o condomínio (...).”

“(...) eles [usuários] têm necessidade de atendimento inclusive de saúde bucal, na grande maioria eles estão numa situação de saúde bucal muito ruim (...) está tudo ligado, é impossível a gente separar (...).”

As práticas de atenção psicossocial devem abarcar os usuários “em suas múltiplas interações socioeconômicas e culturais; trata-se de ajudar o usuário em sua lida quotidiana por uma vida melhor”. (Delgado19 apud Tenório, 2001a: 55)

No campo do trabalho, como uma das vertentes socioeconômicas da vida dos usuários, é interessante observar que, no discurso dos trabalhadores, há uma certa indeterminação quanto aos objetivos deste tipo de práticas. A partir da experiência do projeto trabalho no CAPS, caracterizado originalmente como um projeto de geração de renda, fragmentos extraídos dos discursos evidenciam uma certa ambigüidade sobre a atenção realizada, ora valorizando a capacidade de responsabilização dos usuários pelo trabalho, ora considerando este aspecto secundário, na medida em que este projeto seria mais um dos espaços terapêuticos do CAPS:

“(...) eu colocava a mão na massa sim e eu percebia que eles [usuários] iam encostando (...) eu falei: ‘Não. Isso não é a proposta do trabalho.’ (...) eu estou ali acompanhando, orientando, sempre do lado e tal, mas fazer muito pouco (...).”

“(...) [os usuários] nem fazem muito o que a gente espera [no projeto trabalho], mas eu sei que é importante ele estar aqui, só dele sair de casa, tomar um ônibus, chegar aqui, ver os colegas, eu acho que isso já é terapêutico, é o lado terapêutico do trabalho.”

Por essa razão, fica evidente a necessidade de aprimorar a discussão do trabalho como um instrumento da atenção psicossocial na equipe do CAPS, pois uma das premissas do uso desta atividade no processo de reabilitação psicossocial é exatamente o sentido do trabalho enquanto valor social no projeto de vida dos usuários. (Saraceno, 1999)

A noção de atenção psicossocial pressupõe uma compreensão ampliada das necessidades de saúde mental da população usuária, além do que é trazido como queixa ou motivo para o sofrimento expresso. Portanto, os projetos terapêuticos emergem da

19

Delgado PG. A psiquiatria no território: construindo uma rede de atenção psicossocial. Saúde em Foco: informe epidemiológico em saúde coletiva 1997;VI(16): p.41-3.

possibilidade de diálogo entre os trabalhadores e os usuários. São singulares, pois envolvem realidades específicas de um sujeito, em relação às possibilidades também específicas dos trabalhadores e da equipe de cuidados:

“Eu acho que essa história com o [usuário] L, que foi obrigando a gente a ter o tempo inteiro que reinventar o tipo de atendimento, o tipo de oferecimento que a gente vai fazendo com ele, eu acho que é um exemplo, um modelo de atenção (...).”

Nessa lógica, há uma responsabilidade conjunta entre trabalhadores e usuários para a realização da atenção, ou seja, os usuários também são chamados a se implicar em seus projetos terapêuticos:

“Tenho a idéia de que atenção tem muito mais a ver com uma certa integração e com uma certa divisão com o sujeito pela responsabilização dos sintomas dele.”

“(...) quando eu cheguei [na lanchonete do projeto trabalho] eu falei pra eles: ‘A minha proposta não é fazer, é ensinar vocês’.”

Cuidar das questões dos usuários não significa fazer “por eles” ou assumir responsabilidades por eles. No plano do sujeito é preciso que cada um se responsabilize, pois se excluímos o sujeito de sua responsabilidade, o mantemos alienado de sua condição e sob a tutela de nossa responsabilidade. A noção de tomada de responsabilidade na atenção psicossocial se refere à capacidade de responder ativamente às questões dos usuários, considerando uma perspectiva ampla de intervenções. Não significa assumir todos os problemas e encontrar soluções, mas agenciá-los em conjunto com os outros recursos necessários. (Elia, 2004)

Vimos, então, que o discurso dos trabalhadores expressou preponderantemente a concepção da atenção psicossocial como noção para a abordagem dos problemas de saúde mental dos usuários do CAPS. Vejamos em seguida, como essa noção de atenção se articula com o conjunto de práticas, norteada pelas diretrizes da política de saúde mental, e se concretiza num determinado espaço institucional, o serviço CAPS.