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27 Na cidade setecentista e oitocentista, a arquitectura religiosa, deu lugar à arquitectura civil, muito por via da influência dos estrangeiros que agora habitavam a cidade, sendo que os novos modelos habitacionais reflectiam

2.1.2 As condições da procura

O período da Regeneração, vivido a partir da década de 1880, pode ser identificado como o marco histórico que dá início a uma nova fase de desenvolvimento industrial do país. Estas transformações implicaram não só significativos melhoramentos tecnológicos na indústria, como também marcou a afirmação da cidade do Porto como um importante centro industrial do país, pólo atractor de uma forte onda de migração do interior rural para a cidade (cf. Teixeira, 1996, p.93-95).

Para que se possa compreender a real dimensão dos efeitos das transformações sócio- espaciais e dos seus impactos na procura de habitação na cidade é necessário, desde logo, afunilar as escalas de medida. A cidade, de facto, conheceu um forte aumento da sua densidade demográfica, principalmente na zona histórica e nas freguesias mais industrializadas da cidade, com uma população rural extremamente pobre e atraída pelas oportunidades de trabalho na florescente indústria; é necessário ter em conta que, apesar do desenvolvimento industrial verificado, as quantidades envolvidas, assim como a fraca diversidade da produção, são sinais do elevado grau de artesanalismo da indústria portuguesa de então30. Este facto torna-se ainda de maior importância na medida em que nos ajuda a compreender as tomadas de posição dos diferentes grupos sociais envolvidos neste processos

30 Conforme afirma Alves (2010), na época “as actividades industriais são inúmeras, mas raras atingiram a dimensão fabril, ficando a grande maioria das unidades pelo estatuto de «pequena industria», ou seja, pela dimensão oficinal (…)” (p.51).

de (re)apropriação simbólica da cidade, em muito encontram subsidiários do modelo de desenvolvimento da economia portuguesa do século XIX.

Assim sendo, a abolição dos morgadios, no final do primeiro terço do século XIX, e a introdução de um regime liberal não tiveram como consequência a emergência de uma nova Burguesia voltada para o capitalismo industrial e agrícola. Em vez disso, tal como aponta Teixeira (1996), na linha de Hobsbawm, nos países do sul da Europa assistiu-se à “(…) absorção pela burguesia do velho mundo aristocrático: dos seus privilégios e interesses económicos, em primeiro lugar, mas também dos seus valores culturais” (p.97). Assim, terminadas as guerras liberais, a emergência da classe burguesa não teve como consequência o derrube do Antigo Regime e dos privilégios de classe da antiga aristocracia, mas sim, culminou com a transmissão desses privilégios para a nova classe burguesa.

Deste modo, no Porto da segunda metade do século XIX, encontramos um padrão de forte imbricação entre as relações económicas e sociais, onde um dos mecanismos de ascensão social entre as fracções da Burguesia, mas também entre os pequenos manufactores e artífices, era o envolvimento em negócios imobiliários ou, num patamar económico mais elevado, a incursão nas «novas» sociedades por cotas e investimentos na banca que lhes permitia chegar à condição de capitalistas31.

Por sua vez, as classes trabalhadoras ou laboriosas agregavam no seu seio uma pluralidade de origens e trajectórias que tinham em comum os baixos salários auferidos no trabalho na indústria e serviços que proliferavam pela cidade32. Deste modo, as origens sociais daqueles que se fixaram na cidade e em particular nas ilhas são maioritariamente rurais, meio onde se fazia sentir uma profunda crise agrícola e que com o desenvolvimento das vias de comunicação via a prosperidade da cidade, mais próxima33.

31 No Porto oitocentista, tornar-se proprietário ou capitalista significavam um ganho simbólico importante para aqueles que se dedicavam a actividades mercantis, ainda que esta posse, em muitos, casos não significasse mais do que a detenção de uma ou duas ilhas. Como Manuel Teixeira, “por norma aqueles que se envolviam, mesmo que a escala reduzida, na promoção imobiliária ou na construção de habitação, começavam a intitular-se a si próprios proprietários em todas as escrituras e registos públicos. Era assim que eram vistos, mesmo que, por vezes, tais empreendimentos acabassem por se revelar verdadeiros fracassos” (Teixeira, 1996, p.102).

32 Contrariamente à ideia de que nas ilhas habitavam exclusivamente os indivíduos pertencentes à classe operária, o inquérito às ilhas, realizado em 1914, revelou que 68% dos habitantes nas ilhas eram trabalhadores industriais, mas apenas 6,5% destes eram operários fabris. Por sua vez, os restantes 32% da população residente, tinham ocupações muito variadas ligadas ao sector dos serviços (como é o caso de empregados de escritório), vendedores ambulantes e carregadores, assim como bombeiros e polícias (Teixeira, 1996, p.57). A heterogeneidade da população residente nas ilhas é um dos factores-chave na compreensão da procura desta forma de habitação, uma vez que é reveladora da situação estrutural dos baixos salários auferidos pelas classes laboriosas.

33 O desenvolvimento da via-férrea, a partir de meados do século XIX veio facilitar a migração masculina rumo ao trabalho nos meios urbanos mais industrializados. Tal como afirma Pinto (2007), “a expansão da rede de estradas e a inclusão do caminho-de-ferro na paisagem rural, ao mesmo tempo que os transportes urbanos se expandiam até aos núcleos periurbanos do Porto, permitiam quer às pequenas aglomerações suburbanas, quer ao

Juliana Patrícia da Silva Tomé Cap. III – O empreendimento das ilhas – o liame entre os limites técnicos e a tomada de posição entre os diferentes grupos sociais Do quadro que temos vindo a esboçar, a partir do modelo explicativo traçado por Manuel Teixeira (1996), acerca do desenvolvimento socioeconómico do Porto oitocentista, interessa sublinhar não só aumento da densidade de ocupação das zonas intra-muralhas medievais, como a crescente localização destas classes na zona oriental da cidade mas, acima de tudo, o retrato de uma classe social cujos rendimentos eram de tal forma exíguos que a alimentação nutricionalmente pobre e a habitação insalubre e minúscula recolhiam praticamente toda a disponibilidade orçamental dos agregados familiares.

No mesmo sentido Pereira (1986) afirma, que em meados do século XIX, as ilhas, mais do que qualquer outra conotação ideológica, são conhecidas enquanto «ilhas de pobreza», muito próximas simbolicamente do «beco» do Antigo Regime portuense, que concentrava “as camadas mais pobres, mas ainda muito heteróginas: mulheres viúvas, mães solteiras, mendigos, trabalhadores dos ofícios, operários e soldados” (p.85); ainda longe da dimensão que vieram a atingir cerca de uma década mais tarde. Mas ainda assim, lugares em que a necessidade ou a pobreza que os caracterizava, condizia à partilha da unidade de habitação por mais do que uma unidade familiar, que se via assim alargada a elementos do agregado aparentados, que entretanto chegavam dos meios rurais. As ilhas eram, assim, uma solução habitacional anterior à industrialização, esta ampliou e aprofundou a lógica de máxima racionalização de ocupação do espaço que lhe subsiste.

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