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As condicionantes da participação popular direta nos negócios públicos

2 A SUPERAÇÃO DA INCONSTITUCIONALIDADE POR DELIBERAÇÃO

3.2 As condicionantes da participação popular direta nos negócios públicos

A escolha pela positivação de instrumentos de participação popular direta na conformação da ordem constitucional positiva perpassa uma necessária reflexão acerca dos fatores condicionantes do bom funcionamento do modelo.

Se, por um lado, a consulta popular para a conformação da ordem constitucional aproxima o corpo eleitoral de uma experiência democrática mais profunda, bem como gera o comprometimento dos destinatários com o comando normativo, de outro é preciso ponderar sobre razões de natureza filosófica, histórica e política que explicam as resistências que se pode opor à ideia da democracia participativa.

Ora relacionam-se com a desconfiança sobre a racionalidade e sensatez dos indivíduos para tomar decisões políticas coerentes e oportunas aos fins que almejam, ora provêm da lembrança de Estados totalitários do século XX que fizeram uso intenso do engajamento civil e das manifestações de massa para a consecução de objetivos perversos.

279 Cf. G. A

TALIBA,Constituinte e « Referendum », p. 70;

280 Cf. F.C.P

E, ainda, mais especificamente no contexto político hodierno nacional, identifica-se a preocupação de alguns setores com o aparelhamento do Estado brasileiro por uma "cultura patrimonialista radicalizada"281 nos últimos anos.

Como consabido, a sociedade ideal de Platão deveria ser aquela governada por uma casta de filósofos ou pelo rei-filósofo, que detém o pleno conhecimento do bem, do belo e do justo. Nesse sentido, governar exige o verdadeiro saber, a episteme.

N'O espírito das leis, há referência expressa à absoluta incapacidade do povo em discutir os negócios públicos. Tão bem delineada é a desconfiança que se excluem aqueles "que estão em tal estado de baixeza que são considerados sem vontade política"282 até mesmo para proceder a simples escolha dos representantes283.

De igual forma, é possível extrair na campanha de Madison uma valoração negativa da democracia pura, que, a princípio, parece ser contraditada com o elogio que o autor sustenta ao direito de autodeterminação do homem. Ocorre que o autor está a defender um modelo de república representativa, dirigida por um corpo de cidadãos virtuosos, idôneos para discernir os verdadeiros interesses da comunidade284.

A face mais recente dessa desconfiança liga-se ao desenvolvimento da democracia referendaria e da democracia eletrônica, de que trata Giovanni Sartori285. Diferentemente da democracia direta que se realiza mediante o debate entre presentes, as decisões políticas da democracia eletrônica são tomadas, mediante um click, por cada cidadão solitário sentado em frente ao seu computador, sem maiores reflexões.

A outra advertência funda-se na experiência histórica, de que regimes autoritários fizeram uso da consulta popular para obter legitimidade por meio de altas taxas de aprovação, desvirtuando seu verdadeiro sentido constitucional:

“Na verdade, esses instrumentos pouco servem - demonstrou a experiência - para aumentar significativamente a participação popular no processo governamental. Ademais, é preciso ter presente que instrumentos como o referendum ou plebiscito (que não raro são confundidos) podem desservir à democracia. Ou melhor, podem servir para que o detentor do poder (que é o mais das vezes quem pode convocá-los) deles use para implantar em seu favor, com o aparente

281 Cf. O. V. V

IEIRA, Participação não é o problema, Folha de São Paulo, São Paulo, p. S32, 14 jun. 2014;

282

Cf. O espírito das leis, p. 184;

283

Interessante ressaltar que nem mesmo ao corpo representante, cujos componentes são presumidamente mais lúcidos que a maioria, é franqueado o poder de tomar qualquer resolução ativa. Os representantes exercem somente as funções de fazer as leis e verificar se são bem executadas. Cf. MONTESQUIEU, O espírito das leis, p.184;

284 Cf. J.M

ADISON, Federalist n. 10, p. 44;

consentimento popular, um regime autoritário. Isto se viu com os Bonapartes, Napoleão e seu sobrinho Luís Napoleão (Napoleão III), que deles se serviram para implantar os seus Impérios”286.

Está essa objeção intimamente ligada, portanto, ao uso abusivo da consulta popular, de que resulta a atração da opinião pública para o âmbito do conflito político.

Em sistemas democráticos estáveis, em que o referendo é instrumento tradicionalmente utilizado e as questões políticas normalmente resolvem-se por meio de acordos e concessões entre os grupos de interesses, o instrumento mantém sua essência.O corpo eleitoral tende a se manifestar sobre o questionamento que se impõe, sem que essa decisão implique reflexos políticos sensíveis ao grupo político cuja posição restou vencida. Por outro lado, ocorre o apelo abusivo à consulta popular no cenário de acentuada conflituosidade no sistema partidário. A falência da capacidade negocial no âmbito legislativo, com posições radicalizadas, conduz à utilização do referendo como instrumento para o fortalecimento de uma posição política.

Disso resulta que a votação popular, embora inicialmente vocacionada a responder consulta específica, transcende a questão e repercute, favorável ou desfavoravelmente, sobre os grupos políticos, à medida que o corpo eleitoral pronuncia-se também sob a influência dos partidos287.

Há um episódio mais ou menos recente que é capaz de ilustrar a questão: a realização do referendo suíço que aprovou a proibição de construção de minaretes no território do país, em 29 de novembro de 2009.

Esse referendo, que teve como reflexo jurídico a inclusão de nova proibição constitucional no artigo 72.3 da Constituição Federal Suíça, foi promovido a partir da iniciativa de dezesseis pessoas, quase todas ligadas ao “Schweizerische volkspartei”, cujo programa político se opõe à imigração.

Na verdade, a iniciativa de reforma constitucional deve ser subscrita por cem mil cidadãos e, no caso, não se verificaram maiores dificuldades na obtenção do apoiamento.

Nos termos do artigo 139.2 e artigo 173.1, a Assembleia Federal é o órgão incumbido de exercer o controle de admissibilidade da iniciativa.Trata-se de uma decisão do constituinte, pois o controle pela Assembleia nacional é mais democrático do que o realizado pelo tribunal: a Assembleia é composta por membros eleitos pelo sufrágio, ao passo que os membros do Tribunal detém legitimidade indireta, pois os juízes são eleitos

286 Cf. M.G.F

ERREIRA FILHO, A democracia no limiar do século XXI, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 23;

287 Cf. G. G

pela Assembleia288.

Na Resolução sobre a admissibilidade da iniciativa, a Assembleia Federal destacou que a adoção da iniciativa implicava violação de direito internacional, entretanto, carecia do poder de declarar a inadmissibilidade da iniciativa pois estava limitada ao jus cogens.

A iniciativa foi então submetida à decisão popular.

Durante a campanha, o governo e grande parte dos partidos manifestaram-se pelo voto contrário à proposta. Inobstante a campanha, venceu a proibição, a qual é possível interpretar como a materialização de uma resistência, difusa, à islamização da sociedade. Com o resultado, o mesmo partido que apresentou a proposta, anunciou o intento de realização de novo referendo acerca da proibição do uso de burkas em público.

Há, por fim, uma última questão a ser considerada: o controle para o desenvolvimento regular do referendo.

Na Itália, o controle é parte integrante do procedimento, previsto pela Lei nº 352/1970 e se realiza por meio de dois órgãos. O Ufficio Centrale, ligado à Corte de Cassação é responsável pela higidez do procedimento. Responde pela verificação e contagem das assinaturas, pelo combate às fraudes e pela apreciação de mérito na solicitação, quanto à natureza do ato objeto da deliberação. A Corte Constitucional italiana é responsável pelo juízo de admissibilidade da solicitação referendária.

No Brasil, em princípio, o contencioso referendário compete aos tribunais, assim como todo o procedimento de controle da regularidade da votação. No entanto, na oposição entre a lei e a decisão judicial de inconstitucionalidade, impõe-se verificar quem exercerá o controle.

Isso porque o Tribunal Superior Eleitoral, nos termos do artigo 119 da Constituição Federal, compõe-se também por três Ministros oriundos do órgão que julgou, por maioria, a inconstitucionalidade da norma.

É preciso elaborar e controlar a pergunta que será submetida à consulta, bem como toda a regularidade da campanha e das votações. Outrossim, o procedimentoreferend

No mínimo, para evitar manipulações e veleidades em detrimento da qualidade da democracia seria prudente concertar os Poderes de modo que cada um tome parte em diferentes etapas da consulta exercendo as funções de controle.

288 Cf. A.P

ETERS, El referendum suizo sobre la prohibición de minaretes, Teoría y realidad constitucional, nº 25, Madrid, Uned, 1º sem 2010, p. 430