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As conjunções e sua gramaticalização

1.4 A gramaticalização de conjunções

1.4.2 As conjunções e sua gramaticalização

A formação histórica das conjunções em diferentes línguas fornece exemplos bastante ilustrativos de processos de gramaticalização. Barreto (1999), por exemplo, descreve os processos de gramaticalização experimentados pelos 136 itens conjuncionais encontrados no

corpus por ela consultado, constituído de amostras do português do século XIII ao século XX. Segundo Longhin-Thomazi (2003, p. 175), o português apresentou grande perda de conjunções latinas; daí ter havido muitos processos de gramaticalização, de modo que novos itens foram recrutados para codificar as relações gramaticais presentes nas conjunções perdidas. Meillet (1912 apud LONGHIN-THOMAZI, 2003, p. 82) aponta que as conjunções representam uma classe bastante sujeita à renovação nas línguas em geral, podendo até desaparecer, dado o seu caráter gramatical: quanto menos expressivo é um determinado item, maior a predisposição para renovar-se. Segundo Meillet, o procedimento mais simples de renovação das conjunções consiste na recategorização de palavras de diferentes classes (nomes, pronomes, advérbios e preposições) e seu emprego em contextos em que servem à conexão de orações, mesmo que haja na língua outras conjunções com valor semelhante, como aconteceu, por exemplo, com o advérbio comparativo magis, do latim, que deu origem

à conjunção adversativa “mas”, do português. Castilho (2010, p. 341) aponta que as conjunções procedem das seguintes classes: a) substantivo>conjunção (“a modos que”, arcaica, causal); b) verbo>conjunção (“feito”, comparativa); c) advérbio>conjunção (“magis”>”mas”) e d) pronome>conjunção (“que”, para o autor, pronome relativo que está perdendo propriedades pronominais).

Outro processo responsável pela emergência de itens conjuncionais no português diz respeito à generalização de um fenômeno, iniciado no latim vulgar, que consiste em juntar a partícula “que” a palavras de diferentes classes, resultando em perífrases conjuncionais, como em “ainda que”, “logo que”, “já que”, “só que” (Cf. BARRETO, 1999; LONGHIN- THOMAZI, 2004).

Conforme se destacou anteriormente, um item em gramaticalização sofre alterações semânticas e/ou morfossintáticas que resultam na sua recategorização. No caso da gramaticalização de conjunções, Barreto (1999) e Longhin-Thomazi (2003) mostram que, de fato, há uma forte tendência de conceitos mais abstratos serem conceptualizados a partir de categorias mais concretas, como propõem Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991, p.48):

By means of this principle, concrete concepts are employed in order to understand, explain, or describe less concrete phenomena. In this way, clearly delineated and/or clearly structured entities are recruited to conceptualize less clearly delineated or structured entities, and nonphysical experience is understood in terms of physical experience, time in terms of space, cause in terms of time, or abstract relations in terms of physical processes or spatial relations”. 20

Barreto (1999, p. 179) destaca que um grande número de formas conjuncionais do português empreendeu a seguinte trajetória:

ESPAÇO > TEMPO > TEXTO

É o que ocorreu, por exemplo, com o item “logo”, que, no português arcaico, indicava espaço, aparecendo em expressões como “en seu logo”, “em logo de” (“em seu lugar”; “no lugar de”); ainda nesse período, poderia indicar tempo, sendo parafraseado pela expressão “em breve”. Só no século XVII começa a haver ocorrências de “logo” como conjunção

20 Por meio desse princípio, conceitos concretos são empregados para entender, explicar, ou descrever fenômenos menos concretos. Nesse sentido, entidades e/ou estruturas claramente delineadas são recrutadas para conceituar entidades ou estruturas menos delineadas, e experiência não física é compreendida em termos de experiência física, tempo em termos de espaço, causa em termos de tempo, ou relações abstratas em termos de processos físicos ou relações espaciais.

conclusiva (segundo terminologia da gramática tradicional), passando, assim, a ter também um uso textual (GONÇALVES et al., 2007, p. 95).

A proposta delineada acima pauta-se na ideia de que a metáfora é um dos mecanismos de gramaticalização, pois, através dela, processa-se a transferência mental de conceitos numa escala crescente de abstratização. Entretanto, no que respeita à gramaticalização de conjunções (e de muitos outros itens), a metáfora não atua isoladamente no processo, havendo, portanto, a ação de outros mecanismos, como a metonímia e a analogia. A metonímia é a mudança que se dá por contiguidade posicional ou sintática e envolve toda a expressão, e não apenas uma única forma (MARTELOTTA, VOTRE, CEZARIO, 1996, p.30). Há, no processo metonímico, uma reinterpretação/reorganização dos elementos na frase, o que evidencia sua relação com a reánalise, isto é, “change in the structure of an expression or a class of expression that does not involve any immediete or intrinsic

modification of its surface manifestation”21(LANGACKER, 1977, p. 58). A metonímia pode

envolver, ainda, a interferência da pressão de informatividade (TRAUGOTT; KÖNIG, 1991), que diz respeito ao processo em que um item linguístico passa a assumir um novo valor semântico em decorrência direta de questões pragmáticas. A analogia, por sua vez, refere-se aos casos em que uma mudança é desencadeada pela associação a outras formas da língua. Dessa forma, por imitação a outra forma, o falante pode criar uma inovação em um uso já regularizado.

A título de ilustração, vejam-se, abaixo, as considerações a respeito da atuação do mecanismo de metonímia na gramaticalização do item “primeiro que”:

Na sua trajetória de gramaticalização o item conjuncional primeiro que parece ter experimentado, inicialmente, uma recategorização – passagem do numeral

primeiro, ao advérbio primeiro = ‘primeiramente’ e posteriormente à conjunção primeiro que, ‘antes que’. A passagem do advérbio à conjunção parece ter ocorrido

em conseqüência de uma reanálise, isto é, de uma nova interpretação de períodos em que o advérbio primeiro aparecia seguido da conjunção que com o valor semântico temporal. Por um processo metonímico, o advérbio assimilou o valor semântico da conjunção e passou a constituir com ela um único item conjuncional temporal . Embora o valor semântico temporal do que só tenha sido detectado em textos do séc. XX, o fato de esse item conjuncional ter sido, na história da língua portuguesa, um signo abstrato de subordinação, cujo sentido era determinado pelo contexto em que ocorria, ou melhor, pela pressão pragmático-discursiva, permite admitir que ocorresse, em séculos anteriores, também com esse valor semântico o que explica a constituição do item primeiro que.(BARRETO, 1999, p.358-9, grifos da autora)

21

Mudança na estrutura de uma expressão ou classe de expressão que não envolve nenhuma modificação intrínseca ou imediata na sua manifestação superficial.

A autora aventa, ainda, a hipótese de ter havido analogia na constituição dessa locução conjuntiva, na medida em que, por associação a outros itens conjuncionais como “ainda que”, “até que” etc., pode ter ocorrido a junção do “que” ao advérbio “primeiro”.

Todas as observações feitas nesta seção interessam, de alguma forma, ao estudo da locução que constitui o objeto de estudo deste trabalho. Assim, a consideração das ideias

arroladas acima no estudo da locução por causa que licencia as seguintes postulações22:

i) na trajetória espaço>tempo>texto, caberia a seguinte reformulação: espaço>tempo> causa> texto. Desse modo, pode-se admitir que essa locução transita entre os domínios “causa” e “texto”, dado o seu estatuto de elemento de coesão textual-discursiva;

ii) na escala crescente de abstratização, pode-se atestar o percurso tempo> qualidade (causa) experimentado pela locução por causa que, sendo que, dentro do domínio de causalidade, há também nuances que evidenciam a continuidade dessa abstratização: causa estrita > causa ampla (Cf. capítulo 5).

iii) o elemento que passou a integrar a locução por causa de via reanálise, em que houve a reorganização sintática nas sentenças que apresentavam essa construção: [por causa de] [que] > [por causa de que], como exemplificado abaixo:

(7) Eu não vou por causa de [você] / Eu não vou por causa de [que eu não quero ir] / eu não vou [por causa (de) que eu não quero ir]

ou

iii) o elemento que passou a integrar a locução por causa de via analogia, haja vista o grande número de perífrases conjuncionais de base que, muitas de largo uso no discurso oral: assim

que, antes que, no momento (em) que, (n)a hora que, na medida (em) que etc.