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AS CONSEQUÊNCIAS DA MOBILIZAÇÃO POLÍTICA E A CONSTANTE LUTA POR RECONHECIMENTO

MOBILIZAÇÕES POLÍTICAS E AS AÇÕES COLETIVAS NA BUSCA POR RECONHECIMENTO NO CENÁRIO BRASILEIRO

CAPÍTULO 3 AS CONSEQUÊNCIAS DA MOBILIZAÇÃO POLÍTICA E A CONSTANTE LUTA POR RECONHECIMENTO

“Eu só estou pedindo RESPEITO. Respeito a pluraridade de idéias, pensamentos, teorias. Respeito à Libras, à Cultura Surda, aos Surdos que tanto lutaram e hoje estão conseguindo cada vez mais atingir espaços antes fechados para nós.” (Mariana Hora, Em

resposta ao e-mail da Sra. Maria Teresa Mantoan, 2011)

Após o ato político ocorrido em Brasília, uma série de atividades foram sendo organizadas e articuladas, também por meio da internet, mobilizando redes de coordenações e lideranças regionais no intuito de alterarem o projeto de lei que dizia respeito às escolas inclusivas. A partir da lista de e-mails e de um grupo fechado no Facebook, muitas informações circularam e diversas pautas foram sendo construídas nesse espaço cibernético. Por meio desses espaços, alguns arquivos, relatos e depoimentos foram coletados para auxiliar na compreensão do contexto dessas mobilizações; dados extraídos a partir dessas redes informaram sobre uma dinâmica interna que contribuiu para dar início à análise proposta nesta pesquisa.

O intuito deste capítulo é discorrer sobre os investimentos simbólicos na constituição desse movimento e seus significados, percebendo como eles se afirmam enquanto movimento social, levando em consideração as práticas políticas por eles realizadas e que serão apresentadas neste momento. De início, alguns relatos serão expostos e organizados de acordo com o acompanhamento do processo, ainda que muitas outras ocorrências sobre as dimensões das mobilizações desses sujeitos não se façam presentes nesta pesquisa.

3.1. Construção de agendas e discursos: sobre as estratégias de luta da

Comunidade Surda

Diante da positiva repercussão e visibilidade conquistada pelos surdos através dos atos políticos em maio de 2011, a principal agenda política continuou sendo a proposta pela mudança do texto do projeto inicial do PNE, que, segundo a perspectiva do movimento,

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não daria garantias para a implantação das escolas bilíngues. O texto presente na Meta 4 do PNE apresenta a proposta de “Universalizar, para a população de quatro a dezessete anos, o atendimento escolar aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede de ensino.” As estratégias propostas no PNE em relação aos alunos com deficiência consolidam a implantação de reforços nas escolas regulares para que estas pudessem estar aptas a receber alunos com quaisquer tipos de necessidade especializada.

Estratégias:

4.1 Contabilizar, para fins do repasse do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, as matrículas dos estudantes da educação regular da rede pública que recebem atendimento educacional especializado complementar, sem prejuízo do cômputo dessas matrículas na educação básica regular.

4.2 Implantar salas de recursos multifuncionais e fomentar a formação continuada de professores para o atendimento educacional especializado complementar, nas escolas urbanas e rurais.

4.3 Ampliar a oferta do atendimento educacional especializado

complementar aos estudantes matriculados na rede pública de ensino regular.

4.4 Manter e aprofundar programa nacional de acessibilidade nas escolas

públicas para adequação arquitetônica, oferta de transporte acessível,

disponibilização de material didático acessível e recursos de tecnologia assistiva, e oferta da educação bilíngue em língua portuguesa e Língua Brasileira de Sinais – Libras.

4.5 Fomentar a educação inclusiva, promovendo a articulação entre o ensino

regular e o atendimento educacional especializado complementar ofertado em salas de recursos multifuncionais da própria escola ou em instituições especializadas.

4.6 Fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso à escola por parte dos beneficiários do benefício de prestação continuada, de maneira a garantir a ampliação do atendimento aos estudantes com deficiência na rede pública regular de ensino. (CÂMARA DOS DEPUTADOS, Projeto de Lei do Plano Nacional de Educação, 2011, grifo meu).

A maior crítica do Movimento Surdo em relação às estratégias da Meta 4 girou em torno do fortalecimento dos atendimentos educacionais especializados (AEEs) que, para o contexto da educação de surdos, não contemplariam as necessidades básicas de sua alfabetização, além de não dar chance para a convivência entre as crianças surdas,

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dificultando sua sociabilidade. Com base nessa crítica principal, propostas de alteração do texto-base surgiram paulatinamente de acordo com as discussões e debates fomentados pela Comunidade Surda, que foram acontecendo pelo Brasil nos anos que sucederam os protestos de Brasília.

No período de 2011-2012, algumas pesquisas de campo foram realizadas, principalmente na cidade de Fortaleza-CE, de onde emergiram nomes importantes dentre a Comunidade Surda com repercussão nacional na luta pelas escolas bilíngues para surdos. Entre o período de março de 2013 a julho de 2014, o locus da pesquisa foi na cidade de São Paulo. Eventos acadêmicos, seminários, filmes e conversas informais fizeram parte da pesquisa de campo realizada, e trouxeram experiências bastante promissoras no que diz respeito às discrepâncias de pensamento entre pessoas com deficiência auditiva e integrantes da Comunidade Surda.

Audiências, palestras e manifestações foram organizadas pela comunidade a fim de divulgar a pauta nacional entre os surdos da cidade. A instituição que esteve responsável por essa difusão de informações nos estados foi a FENEIS, com o apoio das filiais locais. Nesses espaços, é possível notar que há discursos padrões que ressaltam a disputa política e discursiva pelo “melhor conceito” de inclusão, e é intenção realizar discussões que fomentem a construção de um ponto de vista sobre como os debates se apresentam em torno dessa questão. Tendo o conhecimento de que há um contexto de confronto político relacionado à elaboração de argumentos legais para a realização de uma política pública, fez-se necessário observar como os conceitos nativos de cultura surda e identidade surda vão sendo inseridos na construção das ideias a fim de justificar a necessidade das escolas bilíngues para surdos.

Em 2011, com a continuidade das organizações da Comunidade Surda nas redes sociais, a FENEI-CE promoveu uma sequência de ações politizadoras, visando divulgar as pautas para os demais surdos que não estavam envolvidos diretamente com as mobilizações. Ocorreu, logo após o ato em Brasília, um ciclo de exposições realizado pelas lideranças que viajaram a Brasília, com o propósito de repassar o que ocorrera a quem não

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pôde estar presente no ato. Todas as lideranças – incluindo a mim, que viajei com esse “título” na lista de inscritos – tiveram que relatar as suas experiências na manifestação e explicar as pautas da educação bilíngue e educação inclusiva50. O evento teve duração de um dia (manhã e tarde) e contou com a presença de aproximadamente 20 surdos. Na maioria das vezes, a dinâmica foi mais expositiva, com pouco debate: os surdos que estavam presentes se fizeram mais ouvir do que falar.

Organizado em âmbito nacional, um ciclo de debates e formações se seguiu, dentre elas o movimento denominado Setembro Azul, ocorrido no mês em que se comemora o Dia da valorização das Línguas de Sinais (10 de setembro) e o Dia do Surdo (26 de setembro)51. As principais lideranças de alguns estados começaram a divulgar vídeos com coordenadas organizativas, a fim de propor quais seriam as atividades que cada instituição representante da comunidade surda daquele estado envolvido deveria promover52. A orientação é que se constituíssem núcleos locais de formação para discutir as propostas sobre as escolas bilíngues com os surdos que ainda estavam alheios às pautas do período das passeatas em Brasília.

A convocatória de uma das líderes de Pernambuco, divulgada através de um vídeo na internet, sugeria que a luta dos surdos deveria ser difundida nas mobilizações locais, em uma continuidade do processo de conscientização da sociedade como um todo, na busca por maior visibilidade.

50 Apresentei para os surdos que estavam reunidos na sede da FENEIS-CE, situada no bairro Aldeota, em

Fortaleza, sobre a história dos surdos na atualidade. No dia, e hoje ainda mais, pareceu-me contraditório contar uma história dos surdos para os surdos; na minha concepção eles já saberiam na sua própria experiência de vida sobre o que eu falara. Depois compreendi o papel de formação continuo que a FENEIS estabelece com seus membros e filiados; mesmo eu admitindo a eles “vocês já sabem dessa história melhor que eu”, não necessariamente isso era uma verdade. Como já mencionei, e também menciona Comerford (1999), eventualmente estaria eu sendo uma formadora para surdos que desconheciam mais da “sua história” que eu.

51 No Brasil, a Dia do Surdo é comemorado no dia 26 de setembro, devido correspondência com a data de

fundação do INES, que ocorreru em 26 de setembro de 1857. Disponível em:

<http://www.feneis.org.br/page/Anexos/Cartilha_Dia_Nacional_Surdos.pdf.> Acesso em: 02 set. 2014.

52 Segundo os dados coletados nas listas de e-mails, grande parte dos estados brasileiros (com exceção do

estado do Maranhão e Tocantins) promoveram ciclo de debates e seminários locais para discutir a importância das escolas bilíngues e conscientizar outros surdos sobre tal temática.

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É importante que os surdos debatam em grupos sobre a proposta das escolas bilíngues. [...] Cada estado é livre para se manifestar como quiser, seja pintando o rosto, ou em passeatas, diversas formas. As lideranças estaduais estão se organizando em grupos por todo o Brasil [...] e no dia do surdo é importante fazer uma ampla divulgação para que nesse dia todos possam participar, surdos, ouvintes, intérpretes, pais de surdos, amigos, todos precisam participar, para que juntos fortaleçamos a luta da comunidade surda. (Mariana Hora, 21/07/2011,

vídeo “Divulgação sobre SETEMBRO AZUL”).

O movimento Setembro Azul é compreendido não somente como um prosseguimento das mobilizações relacionadas às escolas bilíngues, mas também como uma estratégia de fortalecer o discurso da identidade surda através da defesa da língua de sinais como marca definidora desses sujeitos. A agenda foi composta por uma série de atividades, baseadas nas seguintes pautas:

Dias 09, 12 e 16 de setembro – Seminários Estaduais em Defesa das Escolas

Bilíngues para Surdos no PNE nas Assembleias Legislativas Estaduais, e em outros espaços públicos com o objetivo de apresentar as sugestões de emendas feitas para o Plano Nacional de Educação em relação à educação de surdos. Voltado para parlamentares (deputados e vereadores), promotores, secretários e gestores em educação.