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AS CONTRIBUIÇÕES DA ERGONOMIA E DA CLÍNICA DA ATIVIDADE PARA O ESTUDO DO TRABALHO

O estudo do trabalho do professor no campo da Linguística Aplicada, no Brasil, vem recebendo contribuições de várias perspectivas teóricas, a exemplo da Psicologia do Trabalho, da Ergonomia da Atividade dos profissionais da Educação e do Interacionismo Sociodiscursivo, que têm em comum a visão do ensino como um trabalho e a atividade como unidade de análise. Nesta seção, debruçamo-nos mais especificamente no campo da Ergonomia da Atividade e da Psicologia do Trabalho, apresentando algumas noções fundamentais ao estudo da atividade profissional, incluindo aí o trabalho do professor.

Nessa linha de pensamento, uma das fortes contribuições para o estudo do trabalho do professor são os aportes da Clínica da Atividade, explicitados por Ives Clot em a "A função psicológica do Trabalho" (1999 [2006]). Na referida obra, o autor considera o trabalho como uma forma de atividade que possui uma função psicológica central e que, por isso, desempenha um papel essencial no desenvolvimento das funções psíquicas tipicamente humanas.

Segundo Clot (1999[2006]), o trabalho apresenta uma dimensão social, uma vez que a atividade do trabalhador é direcionada a três diferentes pólos: o objeto, o próprio sujeito e os outros, sendo mediada, frequentemente, por instrumentos. A constituição dos instrumentos, para o autor, só ocorre verdadeiramente por meio da apropriação pelos sujeitos daquilo que denominou de “artefatos” de ordem material ou simbólica, construídos sócio-historicamente e disponibilizados pelo meio social.

A relação entre tais elementos, conforme o autor, nem sempre se estabelece de forma tranquila, tendo em vista que os trabalhadores, por vezes, em situação de trabalho, são

impedidos de agir, sendo silenciados e tendo suas atividades potenciais ocultadas. Desse modo, o autor defende que a atividade humana exige, simultaneamente, "uma concepção dos homens como seres irredutíveis às formas predeterminadas e como potencialmente criadores do novo." (MACHADO, FERREIRA e LOUSADA, 2011, p. 18).

Nesse sentido, cabe uma primeira distinção entre as noções de tarefa e atividade. A tarefa refere-se àquilo que deve ser feito e pode ser descrito objetivamente em termos de condições, meios (materiais, técnicos...) e de objetivos utilizados pelo sujeito; já a atividade diz respeito ao que o sujeito faz mentalmente para realizar a tarefa, não sendo, por isso mesmo, passível de observação direta, mas inferida a partir das ações concretas do sujeito (AMIGUES, 2004).

A esse respeito, Amigues (2004) nos alerta para o fato de que no trabalho a tarefa, longe de ser definida pelo trabalhador, tem suas condições e objetivos prescritos por planejadores, pela hierarquia. Por essa razão, há uma distância sistemática entre o trabalho prescrito e o trabalho efetivamente realizado pelo trabalhador, que, segundo o autor, pode ser compreendida a partir, sobretudo, da análise do ponto de vista do trabalhador e de sua construção (mais ou menos conflitual) para regulação dessa distância.

Clot (1999 [2006]) avança, em sua formulação, uma vez que, às duas dimensões do trabalho estabelecidas pela Ergonomia (trabalho prescrito e trabalho realizado), acrescenta uma terceira dimensão, a do trabalho real. O trabalho prescrito, para o autor, diz respeito àquilo que o trabalhador deve fazer para a realização das tarefas; o realizado refere-se aquilo que foi efetivamente realizado; e o trabalho real inclui tanto o que foi realizado como o trabalho impedido, ou melhor, aquilo que o trabalhador não pode realizar, o chamado "trabalho contrariado". Assim, na atividade, tanto o realizado como o não-realizado adquirem igual importância, considerando-se que é na tensão entre eles que “o sujeito vai mobilizar e construir recursos que contribuirão para o seu desenvolvimento profissional e pessoal.” (AMIGUES, 2004, p.40).

Clot, juntamente com Faïta, ainda discute a influência dos coletivos profissionais na organização do trabalho pelos sujeitos. Os autores afirmam que uma prescrição coletiva, interna à profissão, aponta as formas de realizar a atividade em um determinado tempo. Essa prescrição, de caráter histórico e transitório, é denominada por eles gênero da atividade ou gênero profissional, guardando semelhanças com o conceito de gêneros do discurso de Bakhtin. Como estes últimos, que se constituem em tipos relativamente estáveis de enunciado, os gêneros profissionais/gêneros da atividade são definidos como gêneros relativamente estáveis de atividades socialmente organizadas por um meio profissional,

constituindo-se como “os antecedentes ou os pressupostos sociais da atividade em curso, uma espécie de memória impessoal e coletiva que dá conteúdo à atividade pessoal: maneiras de se portar, maneiras de falar, maneiras de começar uma atividade e de terminá-la” (CLOT e FAÏTA, 2000, p.120).

Para Souza-e-Silva (2004, p.97), o gênero profissional ou gênero da atividade está calcado no que ela denomina de economia da ação, pois consiste na parte subentendida da atividade, aquilo

que os trabalhadores de um dado meio conhecem, esperam, reconhecem, apreciam: o que lhes é comum e o que os reúne sob condições reais de vida; o que eles sabem dever fazer sem que seja necessário reespecificar a tarefa cada vez que ela se apresenta.

Dessa forma, os gêneros de atividade constituem-se como modos de fazer que se espelham nas regras do ofício, isto é, em regras de ação partilhadas entre os profissionais que são, a um só tempo, “uma memória comum e uma caixa de ferramentas” (AMIGUES, 2004, p.43). Nesse sentido, Clot e Faïta (2000) chamam nossa atenção para o fato de que, em determinados coletivos de trabalho, as regras podem não estar claras ou mesmo consensuadas, o que pode provocar a sua problematização, para que, em situação de instabilidade ou crise, elas possam ser melhor estabelecidas.

Saujat (2002 apud FAÏTA, 2004) propõe considerar a categoria do gênero profissional do professor iniciante, que apresentaria traços comuns no seu agir docente. Assim, para o autor os professores iniciantes tentariam compensar “a insuficiência transitória de sua capacidade de tratar de situações profissionais complexas mediante o desenvolvimento de recursos intermediários” (p.63). A esse respeito, Faïta (2004) observa que é possível pensar que a exposição desses professores a obstáculos semelhantes na realização de suas tarefas pode gerar estratégias e condutas comuns, indepedentemente dos seus lugares de trabalho. Desse modo, para Faïta (2004, 64), os professores iniciantes definem formas ou condutas comuns de trabalhar que contemplam o reforço de determinadas práticas, menos centrais para professores mais experientes, ou mesmo a contestação “da pertinência ou eficácia de certas escolhas destes últimos”, consistindo assim uma comunidade, apesar da dispersão geográfica.

Articulada ao conceito de gênero profissional, Clot e Faïta (2000) formulam também a noção de estilo profissional, que se refere às intervenções individuais para solucionar uma situação imprevista no trabalho, frutos da adaptação do gênero da atividade a uma determinada situação de trabalho. Melhor dizendo, podemos afirmar que estamos diante de

uma estilização de um gênero profissional, quando a partir dele o trabalhador age individualmente, adaptando-o conforme sua necessidade. Dessa forma, o estilo é definido por Clot e Faïta (2000, p.15) como a metamorfose do gênero no curso do agir.

Depreende-se disso que enquanto a noção de gênero da atividade contempla a dimensão social do trabalho, o conceito de estilo evidencia o aspecto subjetivo do profissional, considerando que a ação dos trabalhadores não é dirigida apenas pelo coletivo de trabalho, mas também pela individualidade do trabalhador.

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