• Nenhum resultado encontrado

2 A FORMAÇÃO DISCURSIVA DOS PRESSUPOSTOS QUE VIABILIZARAM

3.3 As cotas étnico-raciais e as ações afirmativas

As cotas étnico-raciais são uma modalidade de ação afirmativa, ou seja, uma política pública que atua ativamente, cuja intenção é possibilitar a igualdade de acesso a bens fundamentais, tais como a educação150.

O primeiro país das Américas a instituir o sistema de cotas para negros foi os Estados Unidos, com a intenção de alterar o padrão de marginalização da população negra, porém outros países dos continentes europeu, asiático e africano as instituíram com as adaptações necessárias às realidades locais.151 Nos Estados Unidos, as cotas surgiram a partir das lutas e movimentos pelos direitos civis nos anos 1960, para acabar com a segregação racial instituída e, mais tarde, para acabar com o padrão do racismo implícito na sociedade. Os norte-americanos chamam de glass ceiling as barreiras artificiais e invisíveis que impedem negros e mulheres de crescimento profissional, apesar de possuírem qualificação. Dessa forma, as ações afirmativas se enquadram nos resultados de pesquisas relacionadas a esses obstáculos, identificando-os e criando estratégias para promover oportunidades de inclusão e acesso para as minorias.152

O fundamento do sistema de cotas americano é a igualdade de oportunidades em detrimento da igualdade de direitos, ou seja, é sedimentado com base na igualdade material. O modelo norte-americano é fundamentado no princípio da hipodescendência, o one drop rule, segundo o qual “qualquer ascendência africana, ou seja, ‘uma só gota de sangue negro’ determina a sua

‘raça’”.153 Isto ocorre, grosso modo, em função do regime segregacionista vigente até meados dos anos 1960, em que havia determinação legal de

150 Ibidem, p. 27.

151 Ibidem, p. 26.

152 GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:

LOBATO, F.; SANTOS, R. E. (Org.). Ações afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DPA, 2003, p. 31.

153 AZEVEDO, Celia Maria Marinho. Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, 2004, p. 17.

proibição de casamentos entre brancos e não brancos, ou seja, ocorreu um processo de eugenia estatal que acabou por abolir do censo americano a categoria miscigenada em 1920.154

No ano de 1973, uma determinação federal impôs o ingresso de estudantes negros em universidades federais americanas (de 19 Estados do sul e meio-oeste) onde, historicamente, havia maior concentração de estudantes brancos e, com isso, instituiu o sistema de reserva de vagas em instituições de ensino para minorias sem acesso a esses espaços sociais.

Retomando a discussão sobre as ações afirmativas, é importante a verificação de como elas funcionam e de como ocorre a sua justificação política e jurídica.

As políticas de ações afirmativas buscam intervir nas searas públicas e privadas a partir da criação de dispositivos legais cujo objetivo é minimizar as diferenças existentes entre os indivíduos. Atuam no âmbito da igualdade material, cujo sentido está sempre em movimento, é algo pelo qual se luta, é uma situação dinâmica e permanente, um caminho para se chegar a uma situação de igualdade. De acordo com esse entendimento, a política de cotas étnico-raciais torna-se uma ferramenta afirmativa, com o intuito de remediar e minimizar as condições sociais existentes, equilibrando a balança e incluindo parcela da população excluída do espaço universitário.

Como já colocado anteriormente, a publicação da Lei de Cotas marca uma mudança substancial na maneira de o legislador brasileiro encarar os problemas relacionados às discriminações raciais e cria uma nova estratégia nos rumos do cenário das políticas públicas e das políticas de inclusão no Brasil155, tal como ocorreu com a inclusão no currículo oficial da rede de ensino da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, conforme a Lei nº10.639156, de 2003, e o Parecer do Ministério da Educação nº CNE/CP 003/2003, que estabelecem: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura

Afro-154 Ibidem, p. 61.

155 SIQUEIRA, Carolina de Freitas Corrêa. Narrativa histórica, cultura afro-brasileira e governamento biopolítico, 2015. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Santa Cruz do Sul 2015, p. 43.

156 A Lei nº10.639 de 2003, alterou a Lei nº 9.394 de 1996 que estabelece as diretrizes e bases

da educação nacional.

Brasileira”, sendo que “O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”.

Esse processo iniciou a partir do momento da desconstrução da ideia da

“democracia racial” e da posterior construção de uma nova discursividade nacional, calcada na política de inclusão, a partir de um pertencimento na nação para a nova unificação do país.

Nas leis que punem práticas racistas, ocorre a criação de um tipo penal para as condutas realizadas pelos agentes que praticam a ação descrita na lei.

A proteção do bem jurídico na legislação que pune a discriminação atinge determinado marco social, estabelece que aquele bem é caro para a sociedade e que merece respeito. Não tem, todavia, o poder de alterar a realidade, permitindo, tão somente, uma resposta emergencial aos anseios da população.

Já as ações afirmativas têm natureza multifacetada e permitem um deslocamento na produção do discurso: alteram a lógica do racismo nas suas bases de produção, além de possibilitarem igual acesso de oportunidades para todos os seres humanos.157

As políticas afirmativas buscam transformar o discurso vigente, possibilitando uma ruptura no imaginário coletivo e permitem, assim, uma alteração da realidade. Conforme Joaquim Barbosa Gomes,

Nesse sentido, o objetivo mais visível dessas políticas, além do estabelecimento da diversidade e representatividade propriamente ditas, é o de eliminar as barreiras artificiais e invisíveis que emperram o avanço de negros e mulheres, independentemente da existência ou não de política oficial tendente a subalternizá-los.158

E segue:

157 GOMES, Joaquim Barbosa. Ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social - A experiência dos EUA. Rio de Janeiro:

Renova, 2001, p. 41.

158 GOMES, Joaquim Barbosa. O debate constitucional sobre as ações afirmativas. In:

LOBATO, F.; SANTOS, R. E. (Org.). Ações afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DPA, 2003, p. 27.

Em suma, com esta conotação as ações afirmativas atuariam como mecanismo de incentivo à educação e ao aprimoramento de jovens integrantes de grupos minoritários, que invariavelmente assistem ao bloqueio de seu potencial de inventividade, de criação e de motivação ao aprimoramento e ao crescimento individual, vítimas das sutilezas de um sistema jurídico, político, econômico e social concedidos para mantê-los em situação de excluídos.159

Dessa forma, a proposta das ações afirmativas é distribuir, de maneira equânime, os recursos e as possibilidades disponíveis. Um dos fundamentos político-filosóficos para programas de políticas públicas, considerando a matriz americana dessas propostas, é a teoria da justiça de John Rawls. As políticas afirmativas ou Affirmative Actions encontram justificativa ético-jurídica na construção filosófica de Rawls. Ou, ao contrário, é possível que a teoria do autor tenha lançado os fundamentos necessários para a construção político-filosófica de tais políticas públicas. Além disso, o Estado Democrático de Direito está amparado nos pilares que consagram a divisão dos recursos e possibilidades estatais de maneira equânime e justa.