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AS CRENÇAS POPULARES NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE

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4 AS CRENÇAS RELIGIOSAS E SUAS DIFERENTES MANIFESTAÇÕES NO

4.4 AS CRENÇAS POPULARES NO ROMANCE GRANDE SERTÃO: VEREDAS, DE

“O diabo é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! O diabo na rua, no meio do redemunho. O Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o

Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o Pé- Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O-que- nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, não existe! E se não existe, como é que se

pode se contratar pacto com ele?” Grande Sertões: Veredas

Guimarães Rosa é mais um autor brasileiro que nutre suas obras com a presença das crenças populares do homem simples que busca responder as suas

indagações por esses elementos tão presentes no imaginário humano. Em Grande sertão: veredas dá forma artística ao crer em acontecimentos sobrenaturais, ao fazer do narrador do romance, Riobaldo, um herói que se vale de todas as religiões, crenças e crendices populares para vencer o inimigo, Hermógenes, e, por extensão, o demônio. Temática de um contexto tão desesperado e confuso que leva o narrador a dilemas humanos tão profundos que passam a ganhar contexto determinante na busca de respostas.

Ferretti (2001, p. 14) aponta que a própria história da formação social do nosso país conduz ao sincretismo, já que povos de diferentes nações e línguas sempre fizeram parte de nossa cultura. Assim, as formas de crer também se apresentam de formas diferenciadas para atenderem as diferentes necessidades de que essa prática busca.

Para Carvalho (1991), todas as religiões no Brasil dialogam de algum modo, não ficam presas às suas raízes, mas permeiam diferentes contextos e necessidades, pois as formas de olhar e entender as religiões estão diretamente ligadas à forma como se crê.

No entanto, Andrade (2002) considera que o caráter religioso brasileiro tem base no sincretismo, muito mais do que no catolicismo puro. Os Dicionários Aurélio e Aulete assim definem sincretismo:

Fusão de elementos culturais diferentes, ou antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns traços originários com acomodação entre seus elementos. (AURÉLIO, 2001, p. 637).

Fusão de cultos religiosos ou de elementos culturais diferentes com acomodação entre seus elementos. Função de filosofias ou ideologias diversificadas. (AULETE, 2009, p. 734).

O fato é que tanto o culto religioso como o culto às culturas se misturam e se fazem presentes nas manifestações das crenças de cada sujeito. O aluno-leitor do terceiro ano pode perfeitamente navegar por esses dois ambientes sem misturá-los, dando importância aos elementos que permeiam o cotidiano de cada um.

Riobaldo é um desses elementos da cultura brasileira. Homem simples que participa das mais diferentes manifestações culturais e religiosas que fazem parte de seu dia a dia, muitas vezes misturando todos os elementos sem se dar conta por qual universo está navegando.

[...] Riobaldo sabe que “a vida não é entendível”. Afinal de contas, faz a confissão para si mesmo, querendo decifrar “as coisas que são importantes” e preservá-las do esquecimento... Desejando reconstruir seu passado, ele está movido pelo anelo confuso de reafirmar a unidade do seu eu, de sentir que efetivamente desempenhou algum papel ativo nas vicissitudes da própria existência. (p. 18).

O que ele busca, enfim, é tentar compreender a própria existência diante da diversidade humana e cultural presente em cada sujeito, assim como dilemas voltados para elementos que fazem parte apenas das questões que envolvem o sobrenatural que fogem do compreensivo e do aceitável.

No cerne mesmo de sua vida há um segredo aterrador a que faz alusão incessante, mas que não se atreve enfrentar de vez e do qual se acerca a meias palavras, criando no espírito do ouvinte uma expectativa. Suas contínuas indagações sobre a existência do Diabo, a natureza e o poder dele, preparam-nos para algum mistério espantoso. (p. 18).

Muitos de nossos alunos também navegam pelas diferentes manifestações religiosas e culturais sem se dar conta dos elementos místicos que fazem parte e que se apresentam de diferentes formas. Céu, inferno, Deus, diabo, morte, vida, do outro lado são questões que habitam o pensamento humano desde que o homem se deu conta que existe um início e um fim, mas que não sabe para onde o levará.

Se por um bom tempo da existência humana a morte fazia parte do contexto como um elemento natural, vinculado à natureza que regia o pensamento humano, com a reorganização da religião, em particular com o nascimento do cristianismo e todos os seus elementos norteadores, a morte passa a desempenhar um novo papel nesse contexto. Não se liga mais ao natural, mas à condição final do indivíduo e a ela estão agregadas ainda as ações realizadas ao longo da vida.

O que o sincretismo religioso possibilita é que o sujeito agora pode escolher por onde navegar e ancorar suas escolhas para ter a possibilidade de obter sucesso pós-morte. Aluno 6: “Nas aulas de história a professora nos disse que os escravos africanos buscavam uma maneira criativa e inteligente de enganar os senhores de Engenho. Invocavam os seus deuses, Oxóssi como São Sebastião, Ogum com São Jorge e Oxalá como Deus, e os negros Bantos identificaram Cosme e Damião como os orixás [...]. E fizeram o mesmo com outros santos também, como Santa Bárbara, entre outros. E aí está o princípio do sincretismo no Brasil”. E, agregadas a esses elementos, estão as crenças também nascidas de diferentes contextos sociais.

Boa análise, boa conexão, que também pode ser explicada de forma minuciosa por Roger Bastide (1971, p. 359): para subsistir no período de escravidão, os fiéis dos deuses negros sentiram-se obrigados a dissimulá-los por trás das figuras de santos ou de uma virgem católica, como no caso, por exemplo, do casamento entre o catolicismo e a religião africana. Os chamados pais-de-santo já tinham plena consciência do sincretismo a ponto de Bastide (1971, p. 360) explicar, com base em sua na fala que:

[...] enquanto o católico canoniza seus santos, o africano ignora a canonização; os orixás se manifestam, isto é, descem no corpo de seus fiéis originando o transe místico, ao passo que os padres proíbem as manifestações de seus santos. O espiritismo, por sua vez, é culto dos mortos, cujos espíritos entram nos médiuns para, por seu intermédio, falar aos fiéis; na religião africana, os Eguns (almas dos mortos) não se manifestam no transe; “não descem, aparecem”, e surgem na forma de personagens disfarçadas que desempenham suas funções, ou melhor, “falam de fora” e é a voz dos mortos que se faz ouvir na ilha de Itaparica.

Momento rico esse na sala de aula. Um aluno que não está participando da pesquisa se manifesta como umbandista e explica aos colegas os nomes das entidades, fala do culto aos orixás, fala ser filho de santo, assim como seus pais, e tenta explicar a diferença entre umbanda e candomblé. Declarou que, assim como muitos do seu terreiro, ele um dia foi católico, e que acredita e respeita os santos católicos, que inclusive estão presentes em seu barracão.

Os medos que habitavam o imaginário de Riobaldo como céu, inferno, Deus, diabo, também habitam o imaginário de muitos de nossos alunos que não compreendem a importância de se entender o que é de fato místico ou que faz parte do sincretismo tão presentes em nossa cultura. Permitir dialogar sobre questões tão obscuras como essas possibilitam uma reflexão sobre as atitudes e ações desenvolvidas em seus ambientes religiosos, fazendo a diferença também dentro das ações sociais que cada um desempenha cotidianamente, sem deixar de lado a importância do crer nas mais diferentes relações humanas.

Riobaldo, apenas como mais uma das personagens das obras literárias, permite que o aluno-leitor caminhe mais adiante na reformulação dos olhares, uma vez que esse personagem se constrói pelos próprios dilemas, ora buscando respostas em uma racionalidade, ora pelas religiões que o acompanham por essa jornada.

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