• Nenhum resultado encontrado

As crises políticas em Portugal durante a Ditadura Militar

2. Uma visão da Marinha e do poder naval

2.8. As crises políticas em Portugal durante a Ditadura Militar

A estabilidade política portuguesa também deve ser atendida na medida da influência dos cenários além-fronteiras. Na vizinha Espanha, a situação política é fator condicionante dos impulsos dos republicanos portugueses, desde que a Monarquia espanhola dera lugar à ditadura de Primo de Rivera, após o

pronunciamento de 1923. Naquela ocasião, Rivera suspendeu a constituição e

governou a Espanha até ser afastado pelo monarca Afonso XIII, em 1930. A queda de Primo de Rivera deu-se, em parte, ao desprezo que votou à classe média e liberal, e também à crise internacional de 1929 que originou o colapso dos planos que havia proclamado369. No período que medeia entre a demissão de Primo de Rivera e as eleições de 1931, a Espanha é liderada por governos de iniciativa do monarca reinante. Os resultados nas eleições de 1931 ditaram o abandono de Espanha por Afonso XIII e a proclamação da II República Espanhola, vigente desde abril de 1931 até 1939. A vitória dos republicanos espanhóis depois do período de governação de Primo de Rivera coloca novos desafios ao entendimento ibérico entre o governo português de Ditadura Militar e o governo espanhol de Frente Popular.

O início da década de 30 em Portugal assume-se de conflito social. A origem do descontentamento social estava longe de se esgotar nas ambições republicanas e democráticas da oposição política370, com efeito elas podem igualmente encontrar-se quer na crise monetária europeia de 1931 com consequências sensíveis para Portugal, quer nas medidas draconianas do

369 Cf. Hugh Thomas, A Guerra Civil de Espanha, Ulisseia, Lisboa, 1961, pp. 13. 370

Como por exemplo na revolta militar de fevereiro de 1927. Cf. COSTA, António Luís Pinto da, “A primeira frente de oposição à Ditadura Militar portuguesa: a Liga de Defesa de Paris ou Liga de Paris”, Revista da Faculdades de Ciências Sociais, 1990, pp. 247-274. Sobre a Liga de Paris e as reações à questão do empréstimo externo consultar A. H. Oliveira Marques, A Liga de Paris e a Ditadura Militar (1927 1928), Publicações Europa-América, Mem Martins, 1976. Ver ainda o artigo de Oliveira Salazar publicado no Novidades, em 3 de janeiro de 1928, sobre o empréstimo externo, também publicado em António de Oliveira Salazar, Inéditos e Dispersos II, Estudos Económico-Financeiros (1916-1928), Tomo 2, (Org. Manuel Braga da Cruz), Bertrand Editora, Lisboa, 1998, pp. 241-245.

120

ministro das finanças (aumento e criação de impostos) que provocaram um descontentamento generalizado entre a população. Adicionalmente, o conflito académico também grassa entre os estudantes universitários371 e os tumultos tomaram, por diversas vezes, conta das cidades, como o ocorrido no 1.º de maio de 1931 com o registo de vários mortos372.

A revolta militar na Ilha da Madeira vai internacionalizar a crise portuguesa, levando à intervenção de militares ingleses, que seguiam a bordo dos navios da Royal Navy, na cidade do Funchal. Em abril de 1931, a revolta da Ilha da Madeira, com réplicas no Arquipélago dos Açores e na Colónia da Guiné, obriga o poder em funções em Portugal a apelar aos militares para o retorno à coesão territorial, através de uma campanha naval destinada a pôr fim à rebelião. Apesar de ser uma questão puramente portuguesa, verifica-se uma intervenção estrangeira neste conflito doméstico. Pela primeira vez em muitas décadas, e mesmo sem uma intervenção direta evidente, ocorre uma iniciativa militar estrangeira em território português373, quando um grupo de marinheiros ingleses armados desembarca na Ilha da Madeira com a missão de proteger a população civil estrangeira.

A revolta da Ilha da Madeira foi o corolário das incertezas sociais e políticas contemporâneas colocando em campos opostos os militares que ainda acreditavam num regresso à normalidade partidária e os militares que apoiavam o regime saído do 28 de Maio. No seguimento do golpe militar, o movimento revoltoso encabeçado pelo General Sousa Dias envia, a 4 de abril, um telegrama ao governo indicando, que “só obedecerá a um governo republicano que restaure liberdades públicas e procure realizar em curto prazo voltar à

371

Cf. Diário de Lisboa, edição de 29 de abril de 1931, pp. 8, com transcrição de relato publicado no Diário de Notícias.

372

A imprensa escrita noticiava “O dia 1.º de maio – Em Lisboa e no Porto produziram-se ontem tumultos e correrias”. Cf. Diário de Lisboa, edição de 02 de maio de 1931, pp. 7.

373 Consideramos que as incursões monárquicas no norte do país, em 1919, comandadas por Paiva Couceiro, foram uma manifestação militar de natureza doméstica.

121

normalidade constitucional sem subterfúgios”374. O poder é assumido pelo chefe militar que se autoproclama Presidente da Junta Governativa da Madeira375.

O Boletim Oficial, órgão de comunicação especialmente criado como réplica do Diário do Governo, por Decreto n.º 1, de 10 de abril de 1931, estabelece que “é confiado ao General Adalberto Gastão Sousa Dias a plenitude do Poder Executivo e Legislativo que acumulará com o Comando Militar da Madeira, com o título de General Comandante em Chefe e Comandante da Madeira”376.

O governo reage com produção legislativa e com uma decidida ação militar. São encerrados os portos do arquipélago da Madeira a toda a navegação e comércio377, e demitidos dos postos e lugares que ocupam no Exército e na Marinha, ou no funcionalismo, os indivíduos que “tiverem sido ou vierem a ser investidos no exercício de funções militares ou civis na Ilha da Madeira, sem nomeação do Governo da República”378. Em complemento, o regime planeia uma intervenção militar, cuja ação legislativa imediata é o aumento dos soldos às tropas expedicionárias projetadas para a operação379.

A Marinha acabaria por desempenhar um papel central ao serviço do governo, no apoio e em ação direta à operação militar na Ilha da Madeira380. A força então constituída, com o contributo dos navios da esquadra, meios aéreos

374

Cf. João Ameal (direção de), Anais da Revolução Nacional, Vol. III, pp. 81.

375 Ver ainda a obra de A. H. Oliveira Marques, O General Sousa Dias e as Revoltas contra a Ditadura,

1926-1931, que junta correspondência trocada entre os autores do golpe na Ilha da Madeira e entidades terceiras como os cônsules dos Estados Unidos e da Inglaterra, notas oficiosas dos partidos políticos e transcrição das proclamações da autonomeada Junta Governativa, pp. 109-120.

376

Cf. Ameal, Op. Cit., Vol. III, pp. 82-84. 377

Cf. Decreto n.º 19569, de 07 de abril de 1931. 378

Ibid..

379 Cf. Decreto n.º 19568, de 07 de abril de 1931. O aumento é de 50% no caso dos oficiais e sargentos e de um valor pecuniário fixo no caso das praças.

380 Como a sublevação não foi circunscrita à Madeira e ocorreu, também, ainda que em menor intensidade, nos Açores e na Guiné, houve a necessidade de desmultiplicar os recursos militares disponíveis.

122

e navios fretados à marinha mercante, mostrou-se bastante eficaz face aos revoltosos, debelando rapidamente as forças sitiadas na cidade do Funchal381.

A fórmula seguida pela Marinha para constituição da esquadra repetia um modelo aproximado do utilizado na Grande Guerra, recorrendo ao afretamento de navios de comércio para a realização das missões, pela evidente inexistência de meios estritamente militares. Assim, o governo mandou que os vapores382 PORTUGAL, JOÃO GUALDINO, AZEVEDO GOMES e MARIA CRISTINA I, e os paquetes383 CARVALHO ARAÚJO e NIASSA384, fossem aumentados temporariamente ao efetivo dos navios da Marinha de Guerra e passassem ao estado de completo armamento com lotações conjuntas de militares da Marinha e de marítimos civis.

Os navios da esquadra também se preparam para participar na expedição, e outros se aprontam, como a canhoneira BENGO385. No dia 8 de abril de 1931, largaram de Lisboa o paquete CUBANGO, comboiado pela canhoneira ZAIRE, e outros se seguiriam. No dia 28 daquele mês chegaram às imediações do Funchal o cruzador VASCO DA GAMA, a canhoneira IBO, e os paquetes PEDRO GOMES, NIASSA e CARVALHO ARAÚJO, onde se encontrava embarcado o

381

Registam-se contrariedades relevantes como o afundamento do contratorpedeiro VOUGA. Este navio foi abalroado pelo paquete PEDRO GOMES na noite de 30 de abril quando os navios evoluíam em ocultação de luzes a sul de Machico para tomar posições para o início do bombardeamento das forças revolucionárias em 1 de maio. O abalroamento provocou um rombo a meio navio do VOUGA não sendo possível a sua recuperação, o navio afundou não se registando vítimas. Ver breve relato deste incidente na última página do Diário de Lisboa da edição de 4 de maio de 1931.

382

As lotações dos vapores eram de 7 militares e 16 civis, num total de 23, por cada navio. Cf. Portaria n.º 7081, e Portaria n.º 7082, ambas de 21 de abril de 1931.

383

A lotação do paquete CARVALHO ARAÚJO era de 19 militares e de 98 civis, num total de 117. A lotação do paquete NIASSA era de 24 militares e de 149 civis, num total de 173. Cf. Portaria n.º 7086 e Portaria n.º 7087, ambas de 21 de abril de 1931.

384 Relativamente ao Niassa, a imprensa escrita dá-nos conta de pormenores do embarque. “Às primeiras horas da manhã de hoje terminou o embarque de gado e material a bordo do Niassa. Durante a noite, procedeu-se à conveniente arrumação dos dois hidroaviões que ontem foram embarcados”. Cf. Diário de Lisboa, 25 de abril de 1931, pp. 12.

385

123

Contra-almirante Magalhães Correia, então o ministro da marinha386, que comandou a operação.

O Império Britânico, por seu turno, fez deslocar os cruzadores britânicos LONDON e CURLEW (que serviria de refúgio a revoltosos portugueses) para a Ilha da Madeira. Foi destes navios que desembarcam três pelotões de fuzileiros navais britânicos no Funchal, estabelecendo uma zona neutra junto dos hotéis que serviram de refúgio aos cidadãos estrangeiros.

A revolta da Ilha da Madeira representou um marco das sedições militares que marcaram o período posterior ao golpe militar de 1926. Por um lado, permitiu a legitimação e consolidação do poder instituído pelo golpe militar, por outro, assistiu-se à confirmação do reconhecimento do regime por parte da Inglaterra.

Ultrapassada a crise da Ilha da Madeira, o governo apressou-se a legalizar o afastamento dos elementos incómodos ao regime. Esse facto foi noticiado na imprensa escrita como o “Relatório que procede o decreto relativo aos funcionários”387, publicado por decreto nos seguintes termos, “pelos Ministérios competentes sejam temporariamente afastados do serviço, reformados, aposentados ou demitidos os magistrados, funcionários e empregados civis e militares ou das autarquias locais que demonstrem espírito de oposição à política nacional do Governo”388. Contudo, o continuado insucesso nas tentativas de golpe e da mudança de regime não esfriam o empenho republicano na edificação de propostas para a organização do Estado Português, culminando com a Conferência Política realizada em Beyris, nos dias 22 e 23 de novembro de 1931, na residência de Bernardino Machado389.

386

A operação é, portanto, comandada no nível político.

387 Cf. Diário de Lisboa, edição de 17 de setembro de 1931, pp. 16. 388 Cf. Decreto n.º 20314, de 16 de setembro de 1931, artigo 1.º. 389

124

Ainda no mês de abril, a 25 e em plena crise na Madeira, Lisboa recebeu a visita de Eduardo, herdeiro da coroa britânica390, e do seu irmão, Jorge, a bordo do ARLANZA, numa outra manifestação britânica de apoio ao regime português.

Prosseguindo as iniciativas sobre a requalificação da esquadra, o Diário de

Lisboa, no seu editorial de 21 de abril de 1931, ainda no auge das operações

militares na Ilha da Madeira, é premonitório sobre o programa naval português:

“O Diário de Lisboa […] vê com satisfação que o governo encarou o problema de frente, dando-lhe a necessária e desejada solução […]. Há muitos, muitíssimos anos que oficiais da marinha dos mais distintos vinham pedindo aos governos que reparassem na situação miserável em que se encontrava a nossa armada que lentamente, mas fatalmente se encaminhava para o extermínio que o sr. Comandante Pereira da Silva apelidava de «Zero Naval»391.

O actual ministro da Marinha, o sr. Comandante Magalhães Correia […] resolveu, com o apoio indispensável do sr. ministro das Finanças […] a restauração do nosso prestígio marítimo.

Confiamos plenamente em que uma vez começada a construção dos barcos que, daqui a alguns anos, hão-de constituir a nossa esquadra não haverá sobressalto ou erro de visão política que interrompa a realização completa do programa estudado e fixado por técnicos distintos.

O sentimento das nossas passadas grandezas manifesta-se nalgumas pessoas, sob a forma dum delírio que não se contenta com pequenas coisas, exigindo torres e castelos para melhor se deliciarem com as memórias das velhas crónicas. Não toleram, por exemplo, uma marinha modesta, sem formidáveis cruzadores de batalha, achando medíocre, insignificante, tudo o que se fizer, fora desta compreensão megalómana.

390

Eduardo é coroado monarca inglês como Eduardo VIII, abdicando a favor do irmão Jorge, que tomou o título de Jorge VI. Ler cobertura jornalística na edição do Diário de Lisboa, de 25 de abril de 1031. 391 Maurício de Oliveira classificaria a mesma situação de «mentira naval». Cf. Maurício de Oliveira, Op.

125 Claro que, se alguém lhes prestasse atenção, nós continuaríamos a deambular na via láctea, sonhando Indias e procelas, incapazes de lançar às ondas o casco de um simples «destroyer». […]

Contentemo-nos, pois, com a marinha que exige a defesa do país e a do nosso império colonial. Tudo o que for além disso é luxo e dispêndio desnecessário […].”392.

A participação da Marinha no esmagamento da revolta na Ilha da Madeira fica ligada à publicação da notícia sobre os contratos para a construção dos navios de guerra393. Apesar dos benefícios dos militares, nos aumentos dos soldos, a eficácia da demonstração de força governamental representou mais um episódio sobre os conflitos latentes que persistiam na sociedade portuguesa e nas fileiras. Outro facto ficou demonstrado, o apoio britânico ao governo de ditadura em funções.

392 Cf. Diário de Lisboa, edição de 21 de abril de 1931, pp. 1. 393

Na mesma primeira página surge a notícia: “O estado-maior naval, em colaboração com o Conselho Superior Técnico da Armada, iniciou hoje a elaboração dos cadernos, que habilitam o Sr. ministro da Marinha a promover a assinatura dos contratos para a construção dos novos navios de guerra.” Cf. Diário de Lisboa, edição de 21 de abril de 1931, pp. 1.

126