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CAPÍTULO III A INCOMPATIBILIDADE DA JUSTIÇA PENAL NEGOCIADA COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

1. As delações premiadas nos sistemas processuais penais tradicionais

1.1. As matrizes históricas e conceituais dos sistemas inquisitorial e acusatório

O desenvolvimento do sistema inquisitório está intimamente atrelado à crise de legitimidade que a Igreja Católica enfrentou a partir da ascensão da burguesia, no período que ficou conhecido como Baixa Idade Média.

Como forma de superar a progressiva perda de poder e influência, as autoridades máximas católicas elaboraram, no IV Concílio de Latrão, realizado em 1215, uma série de procedimentos para a criminalização, investigação e repreensão dos dissidentes da fé, os hereges. (COUTINHO, 2010, p. 103-105). Esse processo caracterizou-se pela atribuição de largos poderes ao julgador, que atuava de ofício na produção probatória; pela extinção de qualquer possibilidade de contraditório por parte do acusado; por um rito e uma acusação secretas; e, principalmente, pelo emprego da confissão como principal método de prova. (ANDRADE, 2013, p. 148)

Assim nascia uma das principais ideologias definidoras da matriz inquisitorial: a crença de que o acusado detém em si a verdade real do processo, a qual deve ser extraída independentemente de sua vontade, utilizando-se de coação física e psicológica, se necessário. A admissão de culpa mostrava-se extremamente favorável ao inquisidor, pois permitia que obtivesse acesso às motivações do espírito maligno que determinou a prática do crime. Nesse sentido, Paulo César Busato afirma que:

O modelo inquisitivo, como se sabe, tem por base a ideia de que é possível, através do método processual, reproduzir a verdade absoluta dos fatos. Esta descoberta da verdade real seria a única forma de repetir, na justiça dos homens, o perfil da justiça divina, pois ela permitiria afirmar o que realmente aconteceu, assim, para atingi-la, seria válido o emprego de qualquer meio. (2010, p. 136)

Paralelamente, na Inglaterra, surgiam os primeiros esboços do sistema acusatório, também advindo de motivações políticas. Num período de eclosão de movimentos populares de insurgência contra o poder real, a estratégia adotada não foi a repressão direta, como ocorreu no sistema inquisitorial, mas a divisão dos poderes de gestão. Nesse sentido, concebeu-se a criação de um procedimento democrático de tomada de decisões, o Grand Jury, composto por um corpo de jurados advindos do povo. Neste rito, acusação e defesa debatiam e traziam provas,

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defendendo posições diametralmente opostas e, ao final do processo, o acusado era sentenciado por seus pares, cabendo ao soberano tão somente a execução da pena. (COUTINHO, 2010, p. 107-108)

De acordo com Geraldo Prado (2005, p. 153-156), o sistema inquisitorial começou a ter seus ideais questionados com a ascensão dos ideais iluministas, a eclosão da Revolução Francesa e a consequente tentativa de secularização do Estado. Na França, abriu-se espaço para a progressiva adoção de mecanismos processuais típicos do sistema acusatório, a partir da divisão do processo penal em dois momentos: a investigação e a instrução.

O primeiro deles, a investigação, tinha por característica marcante a atuação de um juiz-inquisidor, que procedia à colheita secreta de elementos que constituiriam o núcleo de trabalho a ser desenvolvido na fase seguinte, sem qualquer participação do acusado ou direito de defesa. Já no segundo, a instrução, todas as atividades eram praticadas publicamente, garantindo às partes o direito de controvérsia e debate no maior nível possível de igualdade e paridade de armas.

Essa concepção inicial é denominada pelo referido autor como “sistema inquisitorial garantista”, também conhecido atualmente como sistema “acusatório formal” ou “misto”. O primeiro diploma legal que a adotou foi o Code d’instruction criminalle francês de 1808.

A partir da evolução histórica e filosófica do sistema acusatório, a doutrina atualmente o concebe enquanto um complexo no qual a plena igualdade entre as partes no processo depende da imparcialidade do julgador. Essa ideia preceitua não só a abstenção do juiz em participar da acusação, mas, também, de que sua tarefa primordial advém da consciente e meditada opção entre duas alternativas: condenar ou absolver; as quais, durante todo o transcurso do procedimento, manteve-se igualmente suscetível de acatar. (PRADO, 2005, p. 178)

Além disso, para Geraldo Prado (2005, p. 178), o sistema acusatório também é caracterizado pela acusação enquanto prerrogativa exercida por pessoa distinta daquela que é incumbida de julgar, além de uma gestão da prova e uma titularidade da ação penal que escapam às mãos do juiz.

Nas concepções de Matheus Castro (2018, p. 181) e Aury Lopes Jr. (2013, p. 32-33), a distinção entre sistema acusatório e inquisitório não pode mais se ater meramente à separação de competências entre órgão acusador e órgão julgador. Esse critério de distinção já não é suficiente quando analisados os estudos mais recentes sobre o funcionamento do sistema inquisitorial. Dessa forma, para esses autores, a principal diferença entre os dois modelos reside na gestão da prova: se a sua produção cabe às partes, então estamos diante do sistema

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acusatório; se, ao contrário, a prova puder ser produzida de ofício pelo juiz, trata-se do modelo inquisitório.

Para Jacinto Nelson Coutinho (2010, p. 110), não existe mais, no mundo inteiro, nenhum sistema processual penal que seja integralmente puro. O que se verifica, conforme aduz o autor, é a adoção de sistemas mistos, caracterizados não pelo somatório de elementos que integram os dois modelos, mas sim pela prevalência, em uns, de aspectos do sistema inquisitório e, em outros, do sistema acusatório.

No entanto - conforme entendimento de Franco Cordero (apud BORGES, 2010, p. 26- 27), com o qual concordamos -, a ideia de sistemas denominados “mistos” já se encontra ultrapassada. Na prática, existem modelos predominantemente inquisitórios, com adição de elementos acusatórios, ou modelos majoritariamente acusatórios, com resquícios de inquisição.

É o caso do modelo vigente no Brasil, no qual se verifica forte prevalência inquisitorial. Nossos Código Penal e Processual Penal, datados da década de 1940, foram diretamente influenciados pelo ordenamento jurídico criminal italiano, elaborado por Alfredo Rocco, ministro da justiça do governo de Mussolini. O ideário por trás desses diplomas legais, conforme seus pares concebidos na Itália fascista era sistematizar o processo penal através de uma norma que propiciasse ao Estado uma forma de punir eficientemente os seus inimigos (SCANDELARI, 2010, p. 177).

Geraldo Prado, no entanto, considera que a Constituição Federal de 1988 implicitamente adotou o sistema acusatório no processo penal, de matriz evidentemente garantista. (2005, p. 227-229)

Essa afirmação se comprova, de acordo com sua concepção, a partir da redação dos preceitos fundamentais previstos no catálogo do artigo 5º - quais sejam: a adoção do princípio da legalidade no direito penal (inciso XXXIX), presunção de inocência (inciso LVII), direito ao contraditório e ampla defesa (inciso LV), a inadmissibilidade de provas obtidas ilicitamente (inciso LVI), vedação à tortura (inciso III) e a penas de caráter perpétuo e cruéis (inciso XLVI e alíneas), e no artigo 129, I37, o qual estabelece a iniciativa privativa do Ministério Público na

propositura da ação penal pública.

Além disso, a Carta de 1988 também firma a competência do Ministério Público e da Polícia Civil na fase de produção de provas e investigação do indiciado38. Essa seria, para o

37 Cuja redação é a seguinte: “São funções institucionais do Ministério Público: I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

38 Conforme preceituam os artigos 129, VIII e 144, §4º, respectivamente: “Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos jurídicos de suas manifestações processuais” e “Art. 144, § 4º Às polícias civis, dirigidas por

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mencionado autor, uma evidência de superação das nuances inquisitoriais. No entanto, entendemos que essa previsão não se mostra suficiente, tendo em vista que a referida norma superior deixou de vedar expressamente a participação do magistrado na fase instrutória.

Entretanto, Roberta Andrade (2013, p. 156-157) advoga que ainda não houve a plena adequação dos dispositivos penais e processuais penais do Código de 1941 com as garantias estabelecidas na Constituição Federal de 1988. Para ela, essa omissão configura uma verdadeira inconstitucionalidade e inversão da pirâmide normativa, pela qual uma lei infraconstitucional tem mais aplicabilidade do que um preceito emanado de diploma superior. Isso se deve, segundo a autora, a uma incompleta transição do período ditatorial militar para a Nova República democrática.

Em sua concepção, ademais, a ideia de que exista um sistema misto – conhecido como acusatório formal, ou, ainda, inquisitório garantista – é equivocada, porque os dois modelos se contrapõem e se anulam. A mera verificação de uma separação de atividades entre acusação e julgamento, de princípio da oralidade e publicidade, de livre convencimento do juiz, entre outras características, não bastam, por si sós, para a configuração do sistema acusatório. (ANDRADE, 2013, p. 156-157)

O que ocorre no atual modelo é que algumas brechas trazidas na legislação processual penal ainda permitem uma atuação de ofício por parte do magistrado. São elas: a possibilidade de requisição de instauração do inquérito policial39, determinação da produção de provas40, inquirição de testemunhas41, decretação da prisão preventiva42 e condenação do réu, ainda que o Ministério Público tenha pedido sua absolvição43. Para Nereu Giacomolli (2015, p. 148),

delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”.

39 Nesse sentido é a redação do artigo 5o, II do Código de Processo Penal: “Nos crimes de ação pública o inquérito

policial será iniciado: mediante requisição da autoridade judiciária ou do Ministério Público, ou a

requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”. Grifei.

40 Conforme dispõe o artigo 156 do CPP: “A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado

ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas

consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II –

determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante”. Grifei.

41 Assim estabelece o artigo 209 do CPP: “O juiz, quando julgar necessário, poderá ouvir outras testemunhas, além das indicadas pelas partes”. Grifei.

42 “Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva

decretada pelo juiz, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante

ou do assistente, ou por representação da autoridade policial”. Grifo meu.

43 “Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério

Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada”.

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todos os dispositivos acima são resquícios da ideologia da busca da verdade real, típica do sistema inquisitorial.

1.2. As delações premiadas sob a ótica dos dois sistemas

Roberto Kant Lima e Glaucia Mouzinho defendem que as colaborações premiadas são típico instituto de matriz inquisitorial. Realizando um paralelo com a confissão - considerada a “rainha das provas” naquele sistema -, os referidos autores aduzem que os inquisidores comumente se valiam do emprego de métodos coercitivos, como a tortura, para coagir o acusado a confessar a prática da infração penal. Isso porque, por meio da admissão de culpa, é possível descobrir a motivação do réu, bem como obter uma confirmação formal daquilo que as autoridades já haviam tomado conhecimento através da prévia reunião de provas. (2016, p. 515)

Para Foucault (2013, p. 37-41), a confissão nada mais é do que o chamamento do acusado ao processo para que ele desempenhe um papel na construção da verdade real contra si. É o momento em que o próprio investigado dá o atestado de que todos os indícios construídos obscuramente contra ele são legítimos, desincumbindo a acusação do ônus de produzir outras provas.

Além disso, a confissão sempre esteve intimamente relacionada à ideia religiosa de expiação de culpa:

“[...] A confissão no Brasil, processualmente, se constitui inclusive em uma atenuante (Art, 65, II, do Código Penal), merecedora de um prêmio na aplicação de uma pena menor, pois ela, conservando o mesmo nome do instituto religioso, implica não só

a submissão do acusado à acusação do Estado, como também o arrependimento daquele que confessa e, em consequência, a sua salvação espiritual”. (LIMA,

MOUZINHO, 2016, p. 515) Grifei.

Nesse sentido, Matheus Castro (2018, p. 183-185) entende que as delações premiadas derivam diretamente das confissões. Previstas já no Directorium Inquisitorum44, configuram uma prática recorrente há muitos séculos, e é apenas mais recentemente que lhes foi atribuído o estigma negativo que possuem. À época, eram largamente incentivadas pelos inquisidores, pois o ato de delatar os pecados de terceiros era visto como obediência à fé divina.

Roberto Lima e Glaucia Mouzinho (2018, p. 515) criticam a associação desse instituto ao direito anglo-saxão e ao plea bargaining, porque, nos Estados Unidos, país que utiliza 44 Também conhecido como o Manual dos Inquisidores, trata-se de um documento elaborado por Nicholas Aymerich, datado do século XIV, que tinha por finalidade descrever os procedimentos a serem aplicados na caça às bruxas. (CASTRO, M., 2018, p. 184-185).

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largamente os mecanismos de justiça penal negociada, o devido processo legal é um direito ao qual o réu pode renunciar.

No Brasil, ao contrário, não só o oferecimento da denúncia é obrigatório quando verificados os requisitos para a ação penal (conforme será melhor tratado no tópico seguinte), como o processo também o é, pois configura uma garantia constitucional do acusado, impassível de abdicação, portanto.

Máximo Langer (2001, p. 115-120, tradução nossa), por outro lado, defende que os mecanismos de justiça penal negociada têm origem mais compatível com o sistema acusatório - o qual ele denomina “sistema de disputas” - e mais especificamente com o plea bargaining do direito estadunidense.

Isto porque, nesse modelo, fundado no contraditório entre as partes, recai sobre acusação e defesa o direito de decidir quanto ao rumo do processo. Dessa forma, não seria lógico que a ação penal tivesse que seguir até o fim se, por exemplo, o réu admitisse sua culpa e aceitasse os termos de cumprimento de pena oferecidos pelo Ministério Público, já que não haveria nenhuma controvérsia a ser dirimida entre as partes.

Assim, para esse autor, os mecanismos de justiça pactual não poderiam ser oriundos do sistema inquisitório - ou “sistema de investigação oficial” -, porque, nele, condiciona-se o término do processo à descoberta de uma suposta verdade real. Como a justiça penal negociada admite que a verdade possa ser relativizada e moldada pelos contraentes, não seria compatível com um sistema que coloca o magistrado, e não as partes, como protagonistas. (LANGER, 2001, p. 119-120, tradução nossa)

Essa perspectiva não nos parece acertada. Consideramos que as delações premiadas se aproximam do sistema inquisitório tanto no aspecto histórico - pois, como visto, encontravam- se previstas já nos procedimentos da Inquisição - quanto no aspecto de sua conceituação dogmática.

Na atribuição de competências no processo penal, o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, detém tão somente a pretensão acusatória, isto é, a prerrogativa de apurar e investigar o fato criminoso, oferecer denúncia contra o indiciado e utilizar-se dos meios legais para atingir seu objetivo.

Por outro lado, quem possui a pretensão de efetivamente punir o acusado - o denominado

jus puniendi - imputando-lhe uma sanção penal, é o Estado, na figura do juiz (LOPES JR., 2016,

p. 30). Nesse sentido, Aury Lopes Júnior ensina que:

[...] No processo penal existem duas categorias distintas: o acusador exerce o ius ut

47 que presentes os requisitos legais; e, de outro lado, está o poder do juiz de punir. Contudo, o poder de punir é do juiz [...], e esse poder está condicionado (pelo princípio da necessidade) ao exercício integral e procedente da acusação. Ao juiz somente se abre a possibilidade de exercer o poder punitivo quando exercido com integralidade e procedência o ius ut procedatur. (2016, p. 30)

Não se pode admitir, sob pena de retornarmos às formas inquisitoriais, que o órgão acusador extrapole as suas competências. Percebe-se, nos contratos de delações premiadas, que é o Ministério Público, e não mais o magistrado, quem vem aglutinando em si a função de produzir a prova para a condenação, cominar a pena do acusado e fixar os parâmetros da execução da sanção. Isso quando efetivamente existe a exibição de provas, pois a justiça penal negociada, ao abreviar a fase instrutória do processo, tende a permitir que a condenação seja respaldada apenas nos elementos trazidos pelo delator.

Almeja-se, com a adoção do sistema acusatório, que cada uma das partes assuma seu lugar constitucionalmente demarcado; isto é, que acusação e defesa contraponham-se em suas posições e que o juiz permaneça equidistante delas e alheio à produção da prova.

O que não pode ocorrer, no entanto, é reservar ao julgador a mera tarefa de homologação acrítica dos acordos. Justamente por não assumir a posição de parte no processo - e, portanto, não possuir qualquer interesse na resolução do caso -, deve ser atribuída ao juiz a prerrogativa de análise da legalidade, proporcionalidade e voluntariedade dos contratos de negociação de pena, sob pena de se permitir que o Ministério Público usurpe a função jurisdicional.

2. O princípio processual da obrigatoriedade da ação penal e sua relação com os