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2. A ASSISTÊNCIA SOCIAL E OS PROGRAMAS DE TRANSFERÊNCIA DE RENDA NO

2.1. As demandas por proteção social e a atuação do Estado: Delineamentos da Regulação

Desde a década de 1980, em face das intensas transformações políticas, sociais e econômicas impulsionadas pela reestruturação do capitalismo (COSTILLA, 2006, MARANHÃO, 2008), a sociedade contemporânea vivencia uma série de mudanças no mundo do trabalho. Dentre essas mudanças estão o desemprego estrutural, a flexibilização das relações trabalhistas e a precarização do trabalho, as quais reverberam sobremaneira no cotidiano da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2005).

Em virtude desse cenário, são crescentes as demandas por proteção do Estado. Tais demandas, por sua vez, ampliam o debate sobre os Programas de Transferência de Renda, uma alternativa proposta por estudiosos das questões sociais e políticos frente à pobreza e à desigualdade social (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2007; MAGALHÃES; BURLANDY; SENNA, 2007; ZIMMERMANN, 2008; MONNERAT et al, 2007).

Tal debate integra a discussão sobre a atuação do Estado na garantia da proteção social, ou seja, na maneira pela qual ele organiza-se para fazer frente às atribulações físicas ou sociais que afetam, em alguma medida, o seu povo. Segundo Silva, Yazbek e Giovanni (2007,

p.16), “um dos traços mais definidores das formas e sistemas de proteção social [...] implica sempre numa transferência de recursos sociais, seja sob a forma de esforço ou trabalho, seja sob a forma de bens e serviços, ou sob a forma de dinheiro”.

Os sistemas de proteção social dos países que integram o chamado Terceiro Mundo, entre eles o Brasil, desenvolveram-se de maneira distinta dos sistemas dos países desenvolvidos (COSTILLA, 2006; SPOSATI, 2002). A consolidação do Estado do Bem-Estar Social nestes países remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando, face às crises econômico-sociais e políticas evidenciadas naquele período, houve uma considerável presença do Estado na regulação das políticas econômicas e na concretização de políticas sociais (SPOSATI, 2002; TELLES, 1998; BEHRING; BOSCHETTI, 2008):

A convicção de que a sociedade não pode ser deixada simplesmente à deriva das leis de mercado – face à experiência negativa dos efeitos perversos da crise capitalista dos anos 1930 –, e o vivo desejo de justiça social, reforçado pelo espírito de solidariedade e pela premência da consolidação da paz mundial, constituíram os fundamentos que legitimaram a ação do Estado a favor da expansão e da generalização dos sistemas de proteção social, a partir, especialmente, da concepção do modelo baseado em princípios universais de cobertura das necessidades básicas da população como um todo. (SOUSA, 2006, p. 173- 174).

A materialização destes sistemas de proteção social se deu sob a égide das noções de cidadania e de pleno emprego, constituindo uma sociedade salarial, com vistas ao alcance de maior igualdade social, mediante forte intervenção estatal. (SPOSATI, 2002; BEHRING; BOSCHETTI, 2008). Houve, assim, uma ampliação e solidificação dos direitos sociais.

Nos países do denominado Terceiro Mundo, por seu turno, a expansão dos direitos sociais se deu de forma tardia (SPOSATI, 2002; RÊGO, 2008), notadamente no final do século XX, período em que o modelo do Welfare State22 estava em crise nos países desenvolvidos e momento no qual o neoliberalismo estabelecia-se mundialmente, interferindo decisivamente no desenvolvimento dos sistemas de proteção social daqueles países. Para Telles (1998), uma das conseqüências do neoliberalismo foi a constituição de uma “operação ideológica” que vincula, a um só tempo, o Estado à noção de atraso e o mercado à idéia de modernidade e eficiência.

Desse modo, o mercado passa a ser o potencial regulador da sociedade e da política, ao passo que se suprime a questão da responsabilidade pública. Os direitos sociais, neste caso,

22 A expressão Welfare State remete à consolidação da sociedade do bem-estar social, que, através de forte intervenção estatal, viveu sob os pilares do pleno emprego, do crescimento econômico e da família estável (SILVA; YAZBEK; GIOVANNI, 2007).

configuram-se como ônus que atrapalhariam a modernização da economia, posto que sua efetivação demandaria investimentos por parte do Estado.

Ao contrário do que ocorreu nos países desenvolvidos, a construção dos sistemas de proteção social dos países do terceiro mundo esteve distanciada da noção de pleno emprego, uma vez que neste caso houve a centralidade da categoria mercado em detrimento da categoria trabalho (SPOSATI, 2002). Segundo Costilla (2006), o processo de consolidação do neoliberalismo impeliu os Estados da América Latina a romperem com os compromissos populares, a acelerar o processo de concentração e centralização do capital, a procurar a integração subordinada aos distintos blocos econômicos e a oferecer mão-de-obra barata, matérias-prima e recursos biológicos exportáveis a baixos custos, a fim entrar na concorrência internacional.

Como mencionei no início deste capítulo, o processo de reestruturação do capitalismo vem produzindo inúmeras conseqüências negativas nos mais variados países, com destaque para as repercussões no mundo do trabalho, mas se percebe que as peculiaridades desse processo em países como o Brasil e os demais países da América Latina causaram efeitos ainda piores (MARANHÃO, 2008; ANTUNES, 2005). Costilla (2006, p.32-33) aponta exemplos desses agravos:

A sociedade latino-americana sofreu as conseqüências das novas políticas para beneficiar o grande capital transnacional: dobrou o desemprego, aumentou a exclusão, o trabalho fez-se precário e se informalizou; a sociedade, desgarrada, fragmentada e polarizada, em situações extremas de pobreza; as regiões internas, desligadas das cadeias produtivas nacionais.

Dada essa particularidade, julgo que a discussão sobre os Programas de Transferência de Renda em países como o Brasil ganha contornos específicos e envolve uma complexidade ainda maior, considerando a multiplicidade de demandas existentes e o enorme contingente de pessoas que não possuem condições básicas de existência. Conforme aponta Sousa (2006), problemas relacionados à habitação, ao saneamento básico, à segurança e à educação foram praticamente sanados em países europeus, ao passo que ainda são bastante evidentes em países do terceiro mundo.

Além disso, considerando os efeitos da já descrita “operação ideológica” de que fala Telles (1998), percebo que o desenvolvimento dos Programas de Transferência de Renda nestes

países pode ser compreendido por boa parte da sociedade como algo anacrônico e que atrapalha o seu desenvolvimento, tendo em vista os investimentos envolvidos nesse processo.

Outro fator que pode reforçar essa compreensão é a restrição da noção de direitos à esfera da pobreza e da necessidade (TELLES, 1998), em detrimento de uma visão universal. Tal restrição reverbera consideravelmente na maneira pela qual se desenvolvem as políticas sociais de um país e na forma como a sociedade se posiciona diante disso. Sobre isto, segundo Zimmermann (2006, p. 146), a pouca vinculação das políticas sociais brasileiras à esfera dos direitos faz com que essas políticas obedeçam “muito mais ao discurso humanitário e ao da filantropia”.

Para Sposati (2002), a centralidade do mercado, característica do neoliberalismo, provoca uma substituição da noção de cidadão pela de consumidor, o que situa a proteção social como destinada exclusivamente aos que não possuem condições de suprir suas necessidades via consumo do mercado. Nas palavras da autora:

A forte desigualdade econômica-social nos países de inserção subalterna no mundo econômico traz como impacto na regulação social tardia uma redução do alcance da política social. Desloca-se a cobertura e a noção de demanda da universalidade dos cidadãos para reinscrevê-la como limitada àqueles com baixa ou inexistente capacidade de consumo no mercado. Esse procedimento focaliza as políticas sociais nos mais pobres, o que resulta em equivaler a provisão social em atenção à pobreza. (SPOSATI, 2002, p.7).

Diante de tais argumentos, algumas hipóteses relativas às significações que circulam socialmente sobre os programas em causa podem ser estabelecidas. Se são vários os significados possíveis acerca deles, suponho, por exemplo, que muitos dos posicionamentos contrários aos Programas de Transferência de Renda no Brasil, especialmente dos segmentos populacionais com maiores condições de prover suas necessidades mediante o consumo do mercado, são frutos desse processo de enfraquecimento da noção de direitos sociais (TELLES, 1998), ou seja, da sua associação exclusiva aos segmentos populacionais de baixa renda23.

Feita essa breve análise acerca de características da regulação social em países da América Latina, passo agora a me deter mais precisamente no desenrolar do Sistema de Proteção

23 Uma situação presenciada por mim recentemente pode ilustrar essa reflexão. Eu estava na sala de espera de um consultório médico particular numa área nobre da cidade, quando ouvi uma conversa entre duas senhoras que, entre outros temas, discutiam sobre o Programa Bolsa Família. Na ocasião, uma das senhoras disse com bastante veemência: “O Lula comprou o povo pobre com esse Bolsa Família”. Naquele instante, pensei que tal afirmativa carregava consigo a conotação de que o benefício não se configura como um direito social, mas simplesmente como uma moeda de troca destinada ao “público pobre”.

Social brasileiro, procurando situar o contexto de emergência dos Programas de Transferência de Renda nesse processo.

2.2. O Sistema de Proteção Social Brasileiro: notas sobre a atuação do Estado