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As (des)venturas da Historia Magistra Vitae.

No documento PIERO DI CRISTO CARVALHO DETONI (páginas 114-118)

A história, as ciências sociais e a abertura sintética Pedro Lessa e as suas Reflexões sobre o conceito da Historia

II. As (des)venturas da Historia Magistra Vitae.

Circunscrito o contexto de inserção de Lessa entre os considerados historiadores stricto

sensu analisaremos, por agora, as suas Reflexões sobre o conceito da História. Nela, não

fugindo a regra, o jurista mineiro foi buscar na antiguidade grego-romano as raízes da narrativa e da pesquisa histórica em um âmbito de tipo ocidental. A sua preocupação materializou-se em um esboço de história da historiografia. Valdei Lopes de Araujo notou que esse tipo de reflexão consolidou-se pari passu com a própria efetivação da história como um discurso autônomo desde fins do século XIX. Algo que faz sentido quando historicizarmos a produção de Lessa e os espaços da história a qual ela teve condições de enunciação. Essa coincidência não se apresentou ocasional: “uma das suas principais funções foi traçar o progresso da pesquisa histórica desde a antiguidade até sua forma científica moderna” (ARAUJO, 2006: 79). Iniciou, assim, os seus estudos verificando que tanto na Grécia quanto em Roma a missão historiadora consistia em “narrar os acontecimentos memoraveis” do passado. Tal empresa conectava-se com a “obra d’arte” e não, como era o desejado por um saber moderno racional, com a “sciencia”. A história, naqueles idos, “se escrevia geralmente para perpetuar, encarecendo os feitos militares, ou politicos”. O seu “merecimento” localizava-se, tão somente, na reprodução de “tradições e chronicas, muitas vezes infieis, sob os primores litterarios do estylo descriptivo” (LESSA, 1908: 198). Elevando o argumento ao limite, deparamo-nos com a intenção primeva do autor: averiguar o progresso da história levando em conta a sua inerente dificuldade. Ou, para retornarmos o título original da sua monografia: É a história uma ciência?

Encontrar uma ciência histórica entre os antigos seria coisa vã. Através dos seus apontamentos acerca da escrita da história na antiguidade mostrava-se apreensível, então, a projeção de algumas das suas concepções sobre a especialidade, bem como para grande parcela dos historiadores coevos a ele. Tais prerrogativas, em um primeiro momento, ligavam-se ao chamado gosto pelo arquivo: uma acepção de história “orientada pelas operações de busca, seleção e ordenamento dos ‘documentos’ - bases confiáveis para a narrativa do historiador - e acompanhada pelo exercício da ‘crítica interna’ a tais documentos” (GOMES, 2009: 43; GOMES, 1999). Entre tais relatos

historiográficos era inverificável o esforço de apuração da “fidelidade das suas informações”, sendo que a inquirição da “verdade dos factos” escapava pelos dedos. Os mesmos ofertavam formas narrativas meramente “attrahentes ou empolgante”, sem o compromisso com a veracidade das coisas. Não se observava, naqueles textos, “os canones da heuristica, da diplomatica e da critica de interpretação, sem os quaes ninguem [se aventurava] á ardua tarefa da historiographia” (LESSA, 1907: 196). Faz-se mister prestarmos atenção frente a essa alegação. Nela encontravam-se eixos requeridos pela experiência historiográfica localizada entre as décadas de 1870 e 1930, resumidos, como apontado, pela latente tensão entre prática erudita e teoria/reflexividade - componentes epistemológicos conformadores da operação de síntese. A antiguidade passou ao largo dessa tensão e nem mesmo a primeira etapa da pesquisa, a da empiria, alcançou. Raros teriam sido aqueles que procederam ao “escrupuloso exame das provas, ou se [deram] ao improbo labor de cirandar meticulosamente os documentos” entendidos enquanto pertinentes ao exame (LESSA, 1907: 197).

Tanto na historiografia grega quanto na romana, e isso incluía uma miríade de autores, tais como, Tucídides, Quintilhiano, Políbio, Tito Lívio, não se encontraria a “coordenação methodica dos factos, a systematização scientifica dos elementos preparados pelos historiadores”. Sem isso a tarefa historiadora estaria seriamente comprometida. Não construiria as sólidas bases empíricas para as generalizações das ciências sociais. Hyppolyte Taine foi quem informou o protocolo à Lessa. O intelectual francês caracterizara bem a história compreendida no período clássico: ella [oferecia] unicamente uma successão de acontecimentos, e não classe de factos”. Os historiadores clássicos circunscreveram, em suas abordagens, somente os “feitos bellicos” e as “acções politicas”. Muito pouco, a seu ver, se levado em consideração a infinidade de temas e de problemas que acompanhavam as travessias dos homens no tempo (LESSA, 1908: 201).

Essa modulação historiográfica atendia as prerrogativas de ser mestra da vida, alimentava “a pretensão de fazer da historia um vasto repositorio de lições politicas e moraes” (LESSA, 1908: 202). Ela apresentava-se incrustada em um registro histórico dissonante ao experienciado, em larga medida, no século XIX. Momento esse em que se concebia, mormente, o devir como produto de uma evolução histórica progressiva, linear e cientificamente orientada rumo a um telos em aberto. Lessa tomava tal registro enquanto parâmetro comparativo - frisando as suas insuficiências ou as suas virtudes - para averiguar a história da historiografia de forma geral. Era uma experienciação

histórico-temporal que agregava, segundo ele, todas as condicionantes que estruturavam a realidade dita humana. Realidade que necessitava ser narrada por intermédio do acúmulo de momentos dispostos em uma escala de sucessão passado-presente-futuro, os quais poderiam, igualmente, ser identificados através das projeções teóricas científicas manipuladas pelos analistas preocupados com os fenômenos histórico-sociais (Cf. KOSELLECK, 2006).

Não foi à toa, então, que a escrita da história emergida na Idade Média e na

Renascença tivesse sido desabonada. Essas peças formais ou eram iluminadas por

preceitos metafísicos, de orientação providencial, ou afastavam-se dos delineamentos

científicos que sustentavam uma epistemologia da história plausível, que referendasse

um método e uma agenda investigativa preocupada com a perquirição precisa das

fontes; que fosse autorizada a desvelar leis adstritas aos fenômenos históricos no tempo

através de uma síntese teórico-interpretativa, no caso sob o auxílio do saber sociológico. Na Idade Média o que a peneira do tempo unicamente lograra foram “toscos esboços de historia universal, modelados que estavam pelos escriptos de Eusebio, Osorio e outros historiadores catholicos”. O seu merecimento se localizava, apenas, no desenvolvimento da prática das glosas, de utilidade para o direito e para a pesquisa histórica. Seus resultados foram fecundos quando aplicados às coleções documentais ou quando permearam certas dissertações críticas caras a primeira modernidade. Cifrara-se nisso o progresso dos espaços da história no medievo, posto que ali não se subordinava as “investigações ou a exposição do historiador a nenhum principio, doutrina, methodo, ou classificação scientifica” orientadora de sentido junto às transformações do tempo (LESSA, 1908: 202).

Já na Renascença destacaram-se os escritos de Maquiavel e, para os interesses de Clio, o que “bosquejou [na] sua original concepção de historia, baseada em um abstruso semi-fatalismo”. Seria inadmissível sustentar o princípio orientador da teoria do historiador florentino, aquele pautado no movimento cíclico das esferas. Em tal esquema, “a direção dos astros, o curso das estações, a passagem da vida para a morte, tudo [era] preestabelecido e dominado pela evolução circular do universo”. Algo válido, também, para os homens, para as instituições sociais e políticas, ou mesmo para os artefatos simbólicos produzidos no correr dos tempos. Isso, na pena de Pedro Lessa, teria como explicação se observado através da concórdia de que “as continuas mutações [eram] resultantes do impulso communicado pelas espheras, e os homens nunca [poderiam] adivinhar o fim definitivo do universo”(LESSA, 1908: 202). Algo de difícil

aceitação para um intelectual como Pedro Lessa, porquanto o mesmo assumia o passado, a tradição de forma geral, menos como uma fonte única de exemplaridade e mais como uma instância múltipla da realidade a ser sofisticada constantemente.

Um princípio teórico ordenador do devir que respeitasse os ditames de deus, da

fortuna ou do destino, supostos eixos regentes das coisas deste mundo, não apreenderia

a temporalização da realidade histórica de maneira processual e unificada, incidindo, inclusive, na captura explicativa de leis. As proposições maquiavélicas, desse modo, não atenderiam as exigências implicadas nas diretrizes do que se queria como ciência. Resumindo e mostrando o seu distanciamento em face ao modelo mais representativo de história visto na Renascença: a “hodierna concepção da natureza da sciencia” dificilmente reconheceria naqueles escritos uma “theoria scientifica da historia” (LESSA, 1908: 202).

“Era dado ao homem conhecer o futuro de um modo sobrenatural”. Portanto, a marcha do devir histórico era garantida por meio de uma inteligência superior, cuja comprovação vazava ao exame empírico. Isso para Maquiavel, e também para Bossuet. Se as considerações de um estavam em consonância com uma movimentação cíclica da temporalidade, fomentada pela dialética fortuna/destino, as do segundo informavam que “Deus [intervinha] na direção das coisas humanas, obrigando constantemente a natureza a sahir das leis por elle proprio estabelecidas; [era] um senhor absoluto, despotico, cuja vontade [constituía] o unico vinculo que [mantinha] a ordem do universo” (LESSA, 1908: 204). Essas propostas se desviavam de uma história compatível com a ciência moderna, desejosa por capturar as leis impressas na empiricidade mesma das coisas desse próprio mundo.

Nem a providência, muito menos o acaso, estruturariam uma fundamentação de natureza racional à “explicação scientifica”. Os elementos de origem providencial exprimiam algo “superior as leis, e sem conhecimento destas, isto é, das relações necessarias derivadas da natureza das cousas, do que [era] comum, constante, permanente, na produção dos phenomenos, não [existiria] sciencia” (LESSA, 1908: 210). Em função disso, tais homens mantiveram-se dependentes de elaborações teóricas com tons metafísicos - geralmente providenciais - em suas explicações sobre o sentido último da história. Já os problemas concernentes ao acaso na história, como argumentado por Koselleck, emergiram metodologicamente a partir do momento em que se substituíra “a providência por causas que não eram mais suficientes para esclarecer prodígios, milagres ou mesmo os próprios acasos”. Dessa maneira, tornar-se-

ia fundamental a identificação de tipos determinados “de causas de caráter histórico imanente, algo como causas psicológicas ou pragmáticas” que estivessem autorizadas a excluírem a “Velha Fortuna” (KOSELLECK, 2006: 149). As palavras enunciadas por Pedro Lessa são capazes de confirmar a asserção colocada anteriormente: “O acaso [era] a antithese directa da lei. [Atribuíamos] ao acaso aquillo que não [sabíamos] como subordinar a uma lei” (LESSA, 1908: 210).

Esse motivo o levou a compreender as filosofias da história de Vico, de Hegel, de Voltaire, de Montesquieu, de Herder ou de Condorcet, como as primeiras tentativas de se demitir as teorias da história providenciais/fatalistas, ou de se ordenar o caos dos eventos junto ao plano da temporalidade, dado que elas se atentavam que uma doutrina

da história só estaria acessível por intermédio do estudo da empiricidade mesma das

coisas mundanas30. A historia magistra vitae e uma história que acreditava no acaso

estavam fadadas ao esvaziamento gradativo. Até aqui, dessa maneira, para além das suas descrições gerais acerca do progressivo caminhar historiográfico ao longo dos tempos, Lessa imprimia considerações pontuais junto ao que considerava ser o mais acertado no que concernia ao fazer historiador e, portanto, apontava quais seriam as operações requeridas aos seus artífices em seus exercícios intelectivos: a capacidade de alinhavar um metodismo erudito capacitado a verificar a correção das informações advindas das fontes e, outrossim, a premência de se estabelecer uma consistente base

científica em suas observações sobre os fatos, entendida enquanto a manipulação e o

conhecimento de noções próprias às leis das teorias sociais as quais orientariam a compreensão das travessias do tempo histórico. Ou seja, as suas prescrições, até o momento, coadunavam-se à grande parte das expectativas do campo na passagem para o século XX. Porém, adiantando ao leitor, a ordem dos fatores se complexará um pouco daqui por diante em suas Reflexões.

No documento PIERO DI CRISTO CARVALHO DETONI (páginas 114-118)