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As diferentes perspectivas de participação na gestão pública

1.2. Relação complementar entre democracia representativa e democracia

1.2.2. As diferentes perspectivas de participação na gestão pública

O receituário neoliberal17, conforme Duriguetto (2007), fez-se acompanhar pela atribuição às organizações da sociedade civil, do papel de agentes do bem- estar-social, mediante práticas voluntárias, filantrópicas e caritativas. “Nesta perspectiva a sociedade civil é transformada em meio, em instrumento para a operacionalização da atual estratégia do projeto neoliberal de desresponsabilização do Estado e do capital com as respostas à questão social.” (DURIGUETTO, 2007, p.174).

No projeto neoliberal ocorreu a necessidade de ajustar a economia, removendo as barreiras para a expansão do grande capital internacional, liberando o mercado dos obstáculos que o impediam de funcionar como organizador da vida em sociedade. Em outras palavras:

O primado do mercado, enquanto eixo reorganizador da economia, é visto como devendo se estender ao conjunto da sociedade; a busca de eficiência e de modernização passa então a legitimar a adoção do

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“O termo neoliberalismo tem um significado específico no que concerne a um conjunto particular de receitas econômicas e programas políticos que começaram a ser propostos nos anos 70. Ocorre no mundo uma mudança histórica nas relações institucionais entre o mercado e o Estado e entre as empresas e os mercados [...] O neoliberalismo se caracteriza por sustentar que não existe solução fora do modelo que propõe: uma confiança cega na dinâmica do mercado.” (ANDERSON, P.et al. 1996,p.139 e 178).

mercado como organizador da vida social e política. (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006, p. 55).

Nesse caminho destacam-se as ações de transferência de responsabilidades e funções estatais que podem ser geridas e executadas pelo Estado, para organizações públicas não-estatais e por organizações privadas, constituindo-se, muitas vezes à desresponsabilização do Estado, frente às questões sociais. Nessa concepção, a sociedade civil tem o papel de resolver problemas sociais substituindo o Estado em suas atribuições. “Trata-se de um trabalho apolítico, que não altera substancialmente a desigualdade social e as contradições decorrentes do modo de produção.” (LUIZ, 2010, p. 72-73).

Esse modelo de transferência de responsabilidades objetiva a minimização da ação pública estatal no que tange aos serviços e políticas sociais, especialmente as políticas que compõem o campo da seguridade social e sua transferência para a sociedade civil, convertida em terceiro setor18 e mercado. A sociedade civil “[...] é cada vez mais reduzida a um amorfo “Terceiro Setor” em que cabem todos os tipos de associações civis, entendidas como entidades privadas para a ação pública.” (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006, p. 22).

Nessa direção, compartilhamos com as colocações de Duriguetto (2007), quando diz que, nesse modelo, a sociedade civil é instrumentalizada pelo Estado e pelo capital para torná-la uma esfera de representação indiferenciada e homogênea de interesses. “Procura-se encobrir seu caráter classista pelo manto da solidariedade e, com isso, despolitizar os conflitos sociais.” (DURIGUETTO, 2007, p.180).

Nessa concepção, a sociedade civil é vista como esfera em que os indivíduos buscam a expressão e a realização de seus interesses particulares, sendo o mercado o motor da regulação das relações sociais. “Tais práticas podem acentuar a despolitização, que se expressaria na deslegitimização da política e no afastamento dos indivíduos das arenas de discussão pública.” (DURIGUETTO,2007,p.168).

Outro fato importante nesse modelo é a noção dos direitos substituída pela solidariedade, sendo deslocados da luta política, convertidos em bens ou serviços adquiridos no mercado. Em Duriguetto (2007) visualizamos que a consequência é

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uma des-cidadanização de grandes setores sociais, onde deveriam predominar categorias de justiça e igualdade.

O projeto neoliberal redefine a noção de cidadania, diluindo o núcleo fundamental da concepção de cidadania - os direitos universais. Assim,

[...] com a transferência das políticas sociais para organizações da sociedade civil, para a filantropia e para o voluntariado, a cidadania é identificada e reduzida à solidariedade para com os pobres, entendida no mais das vezes como mera caridade. Os alvos destas políticas não são vistos como cidadãos, com direitos a ter direitos, mas como seres humanos “carentes”, a ser atendidos pela caridade, pública ou privada. (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006, p. 57). Os mesmos autores colocam que, no projeto neoliberal, as concepções de cidadania, de sociedade civil e de participação expressam uma visão minimalista da política e da democracia, apoiando-se na redução da sociedade civil, com a exclusão de sujeitos e redefinindo seu papel ao de compensar as ausências do Estado frente às políticas sociais. Ao contrário, “[...] uma visão ampliada da política inclui a sociedade civil como uma arena política legítima e enfatiza a cidadania como um processo de constituição de sujeitos políticos [...]” (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006, p. 58).

Emerge, nesse modelo, um significado neoliberal de cidadania, esvaziando a noção de cidadania de seu significado principal, o direito a ter direitos. Carvalho (1998) assinala que assistimos a uma progressiva destituição de direitos, e uma deslegitimação das formas de organização e participação social.

Importante questão a ser levantada é que, nesse modelo, a sociedade civil também é ativa e propositiva e se insere na esfera pública para compensar as ausências do Estado mínimo, porém acaba absorvendo para si a responsabilidade frente aos direitos sociais e, consequentemente, ocorre a redução da democracia. Nesse sentido, apontamos as colocações de Luiz (2010):

[...] qual a participação que se requer: de proposição e cogestão, de relacionamento com o Estado em decisões conjuntas ou de substituição do Estado? Essa categorização alerta sobre o perigo da absorção dos preceitos neoliberais sobre uma sociedade civil participativa, solidária, e voluntária, naturalizando o enxugamento do Estado na regulação dos direitos sociais e a despolitização da sociedade civil. (LUIZ, 2010, p. 74).

Isso posto, compreendemos que, sociedade civil é instância de luta de diferentes perspectivas e diferentes classes sociais, um espaço de luta por direitos e

ao mesmo tempo como espaço de construção de um pensamento crítico, Luiz (2010).

Paralela e contraditoriamente a esses questionamentos, consideramos os aspectos positivos e avanços conseguidos pela sociedade civil brasileiras nas últimas décadas, quanto às perspectivas democráticas de gestão pública com a presença de segmentos da sociedade civil em espaços que eram limitados à esfera estatal.

Tem sido bastante discutido a importância das décadas de 1970 e 1980 no Brasil, quando reemergem os movimentos sociais19 que se organizaram como espaços de ação reivindicativa. Em referência a esses movimentos, Carvalho (1998) coloca que esses sujeitos sociais constroem uma cultura participativa e autônoma, constituindo uma teia de organizações populares que se mobilizam em torno da conquista, da garantia e da ampliação de direitos, ampliando sua agenda para a luta contra as mais diversas discriminações. Assim: “Essa nova cultura participativa, construída pelos movimentos sociais, coloca novos temas na agenda pública, conquista novos direitos e reconhecimento de novos sujeitos de direitos.” (CARVALHO, 1998).

Os movimentos sociais, sindicatos, intelectuais, ONGs e outras organizações da sociedade civil, bem como partidos políticos de esquerda, contribuíram para a formulação do aprofundamento democrático, por meio da extensão da participação. Essa concepção de participação,

[...] se concretizou institucionalmente na Constituição de 1988 que, ao consagrar o princípio de participação no exercício do poder no seu artigo 1º, abriu caminho para a implementação de instâncias participativas de vários tipos, tais como os Conselhos Gestores e os Orçamentos Participativos. (DAGNINO, OLVERA e PANFICHI, 2006, p. 49).

Paoli e Telles (2000) enfatizam a importância da Constituição de 1988, colocando que, além de incorporar uma agenda universalista de direitos e proteção social, o texto constitucional “[...] traduz uma exigência de participação na gestão da coisa pública e acena com as possibilidades da construção partilhada e negociada

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“Os movimentos sociais constituem-se como um dos sujeitos sociopolíticos presentes no associativismo no Brasil porque eles foram, e ainda são, as bases de muitas ações coletivas no Brasil a partir de 1970. [...] Sabemos que os movimentos sociais têm sido considerados [...] como elementos e fontes de inovações e mudanças sociais.” (GOHN, 2010, p.40-41).

de uma legalidade capaz de conciliar democracia e cidadania.” (PAOLI e TELLES, 2000, p. 109). Assim, configura-se a institucionalização por meio de instrumento legal, para o exercício da participação da sociedade para além da prática do voto. A questão da participação social esteve presente no processo de transição do regime autoritário ao democrático no Brasil, como aponta o Grupo de Estudos sobre a Construção Democrática, Ideias (1998,1999). Nesse período houve várias experiências participativas nas gestões públicas que incluíram setores vulnerabilizados nas discussões e deliberações.

O pano de fundo dessa discussão foi uma necessidade da sociedade civil em conquistar mais espaço de participação nas estruturas políticas mediante as lutas sociais das décadas de 1970 e 1980, tendo como reivindicação “uma cidadania que privilegiava o fortalecimento do papel da sociedade civil na condução da vida política do país.” (IDEIAS,1998,1999, p.77-78). A nova Constituição Federal era vista como uma oportunidade de mudanças nas relações entre Estado e sociedade. Uma importante reivindicação de participação apresentada ao Constituinte era a “necessidade de desprivatizar o Estado” (IDEIAS,1998,1999, p. 78), retirando da elite o acesso exclusivo aos espaços de produção das decisões políticas, ampliando a participação e garantindo instrumentos que possibilitassem um maior controle social sobre as ações estatais.

Esses movimentos que ocorreram a partir dos anos de 1980 e podem ser caracterizados como movimentos sociais, sindicatos, intelectuais, ONGs e outras organizações da sociedade civil, bem como partidos políticos de esquerda, contribuíram para a formulação do aprofundamento democrático, por meio da extensão da participação.

A Constituição Federal de 1988 ampliou os diretos de cidadania e introduziu novos modelos de gestão e organização nas áreas sociais, por intermédio da garantia constitucional da participação da sociedade civil na formulação das políticas e no controle das ações públicas em diferentes níveis. De acordo com a manifestação de Duriguetto, a esse respeito, temos que:

[...] passa-se a ter, como foco de convergência, a defesa de que uma nova estratégia para a democratização estaria na criação e ocupação, pela sociedade civil, de novos espaços públicos de debate, negociação e deliberação. Nesses espaços, não monopolizados ou controlados pelo Estado, se buscaria reformular a

noção de interesse público, bem como o papel e as responsabilidades estatais. (DURIGUETTO,2007,p.168).

O Estado de direito tem o cariz democrático porque reconhece não somente os conflitos políticos, como também os sociais, instituindo os direitos sociais podendo promover a participação das coletividades na formulação das políticas públicas. Segundo Bobbio, “O Estado de direito, o indivíduo tem, em face ao Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos.” (BOBBIO, 1992, p.61).

Segundo alguns estudiosos, a Constituição Federal de 1988 representou um avanço para a democracia brasileira, que passaria a vigorar nas políticas públicas. Essa nova institucionalidade traz em seu bojo importantes mudanças, principalmente na elaboração das políticas governamentais com a participação de segmentos da sociedade civil no processo decisório. Do estudo realizado, depuramos então que, configuram-se num mesmo espaço as diferentes nuances da participação da sociedade civil na gestão pública. A participação para o aprofundamento da democracia e, por outro lado, a negatividade da perspectiva neoliberal que delega para a sociedade civil responsabilidades do Estado no enfrentamento das questões sociais.

Essa nova institucionalidade, a partir dos conselhos gestores de políticas públicas, é aspecto discutido na sequência.