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3. A PARTICIPAÇÃO DO DG-USP FRENTE À AÇÃO CENTRALIZADORA DO ESTADO

3.6. AS PRIMEIRAS TESES DE GEOGRAFIA DO BRASIL

3.6.1. As divisões regionais de Deffontaines e Monbeig

Como já afirmado, logo que chegou a São Paulo Pierre Deffontaines iniciou os estudos para a compartimentação regional do território paulista, à semelhança da divisão regional realizada na França. Seu trabalho Regiões e Paisagens do Estado de São Paulo (1945)129

poderia orientar a realização de inúmeras monografias regionais, dentro de um potencial programa departamental de pesquisa.

Além da proposta de Deffontaines, Pierre Monbeig também publicou uma proposta de divisão regional intitulada A divisão Regional do Estado de São Paulo (1946)130 e, juntos, os

trabalhos parecem ter influenciado o recorte regional dos primeiros trabalhos defendidos junto ao DG-USP. Ambos propuseram uma divisão regional para o Estado de São Paulo, que orientariam a priori futuras pesquisas em geografia regional.

O trabalho do professor Deffontaines é a primeira tentativa científica de divisão regional do Estado que se faz entre nós. Será inútil encarecer a utilidade de um tal estudo: a divisão regional é um primeiro passo necessário em qualquer estudo sério de Geografia local, uma base imprescindível para o conhecimento geográfico de um país. A falha até hoje existente neste terreno era sensível e tornava quase impossível uma compreensão verdadeiramente científica do nosso Estado. O professor

129 DEFFONTAINES, P. Regiões e Paisagens do Estado de São Paulo. Boletim Geográfico, v. 2, n. 24, p. 1837-

1850; v. 3, n. 25, p. 18-27, 1945. Publicado originalmente nos Annales de Géographie, n. 253, jan. 1936. Trad. de Orlando Valverde.

130 MONBEIG, Pierre. A divisão regional do estado de São Paulo. (Relat. apres. à Assembleia Geral da AGB,

reunida em Lorena (1946), em nome da Sec. Reg. São Paulo. Anais da Associação dos Geógrafos Brasileiros, v. 1 (1945-1946), p 19-36, 1949. Este trabalho sequer foi consultado por nós.

Deffontaines, que em 1934 regeu a cadeira de Geografia da Universidade de São Paulo, com sua dupla experiência de cientista e professor sentiu-a muito bem, e não quis deixar o nosso país sem antes prestar mais êste serviço à causa da Geografia nacional. [...] (DEFFONTAINES, 1945, p. 1837. Nota da Redação.)

A influência relativa de ambos os trabalhos sobre as teses analisadas carece de investigação, mas a perspectiva de realização de numerosas monografias regionais sobre o Estado de São Paulo, ao estilo francês, formando mesmo, quiçá, um Programa de Pós- Graduação, parece bastante claro. Essa leitura fortalece a hipótese de que o Departamento de Geografia da USP orientava suas preocupações eminentemente para São Paulo.

Em relação aos artigos dos mestres franceses, frente à necessidade de análise pormenorizada situada além da perspectiva do presente trabalho, restringimo-nos a destacar, dentre outros aspectos de fato relevantes, a “monotonia” experimentada por Deffontaines ao encarar o território paulista, que lamenta: “As cartas não indicam nenhum nome regional, isto é, nenhum nome de paisagem, análogo por exemplo às nossas Beauce, Brie, Morvan.” (DEFFONTAINES, 1945, p. 1837) E continua:

Donde provém esta dificuldade especial de destacar diferenças regionais? É o homem, mais que a natureza, que cria a paisagem, é êle que constitui sobre a terra estas vestimentas particulares que fazem nascer os nomes de regiões. No Brasil Meridional, o homem ainda não se ligou bastante à terra, não há nomes de regiões e tampouco de paisagens especializadas porque não se formaram ainda verdadeiros “homens da terra”, as paisagens não estão acabadas. (DEFFONTAINES, 1945, p. 1837)

O geógrafo francês procura, primeiramente, em fatores da natureza, critérios para uma divisão regional, mas se depara com nomes imprecisos em relação aos tipos de solo e às formações vegetais. O regime instável de explotação da terra pelo homem, diretamente relacionada à baixa fixidez da população, também contribuem para a dificuldades de aparecimento de nomes de regiões.

O país ainda não descobriu uma economia estável, fixadora do homem, que permita a lenta elaboração de uma paisagem. [...]

As divisões regionais acham-se aqui ainda totalmente na infância. Na falta de melhor, adotou-se a divisão arbitrária criada pelas companhias de estrada de ferro e fala-se correntemente na zona da Central, da Paulista, da Sorocabana, da Noroeste, faixas de território que cobrem as regiões mais disparatadas e que não podem absolutamente fazer as vêzes de divisões naturais. (DEFFONTAINES, 1945, p. 1838)

Segundo critérios eminentemente naturais ou em função do maior ou menor desenvolvimento econômico do homem rural, cujo trabalho ainda não foi capaz de criar paisagens, Deffontaines propõe, segundo a síntese de Conti (2014, p. 243), uma macrodivisão regional: Litoral, Zona cristalina, Depressão periférica e Planalto arenítico-basáltico do oeste, além de duas ou três subdivisões internas para cada região.

Do exposto em relação à proposta do mestre francês, cumpre-nos, apenas, questionar o fundamento teórico-metodológico de uma divisão regional a priori, tendo em vista a perspectiva fortemente indutivista das pesquisas da época, ancoradas na observação e na descrição de paisagens. Trata-se da constatação da crítica ao conceito tradicional de região segundo a qual, na análise da paisagem, deveria haver questionamento quanto ao que é próprio da realidade e o que é próprio da observação do pesquisador. A divisão regional de Deffontaines para o estado de São Paulo parece mesmo assimilar-se à proposta de Paul Vidal de La Blache para o território francês, ao menos a partir da leitura crítica de Yves Lacoste.

O cerne da crítica do famoso livro de Lacoste (2012) ao que chama de “região- personagem” parece estar, mesmo, justamente nessa “maneira de recortar a priori o espaço num certo número de ‘regiões’, das quais só se deve constatar a existência, essa forma de ocultar todas as demais configurações espaciais”. (LACOSTE, 2012, p. 63)

Segundo Lacoste (2012), em seu Quadro da geografia da França (1905) La Blache teria ensinado aos franceses e ao mundo como se fazer “geografia por excelência”, através da descrição de paisagens historicamente constituídas de fatores naturais e humanos. Privilegia, contudo, “as permanências”, banindo “tudo que decorre da evolução econômica e social recente, de fato, tudo o que tinha menos de um século e traduzia os efeitos da ‘revolução industrial’.” (p. 57/58) Sua concepção de homem-habitante expulsa para fora “da reflexão geográfica o homem nas suas relações sociais, e com mais forte razão ainda, nas relações de produção.” Daí La Blache falar pouco sobre cidades, em especial a cidade moderna, metropolitana. O procedimento de descrição de um certo número paisagens identificadas na realidade – “individualidades”, “personalidades” – como representativas de um país “impregna, hoje, todo o discurso sobre a sociedade, toda a reflexão econômica, social e política” (p. 59). “É um dos obstáculos capitais que impedem de colocar os problemas da especialidade diferencial, pois admite-se, sem discussão, que só existe uma forma de dividir o espaço.” (LACOSTE, 2012, p. 59-60)

Na maioria dos casos, as configurações espaciais de diferentes grupos de fenômenos identificados e categorizados pelo pensamento, de um mesmo lugar, não coincidem umas com as outras, mas formam uma série de interseções complexas. “Uma das razões de ser fundamentais da geografia é a de tomar conhecimento da complexidade das configurações do espaço terrestre.” (LACOSTE, 2012, p. 66)

O método que permite pensar eficazmente, estrategicamente, a complexidade do espaço terrestre é fundamentado, em grande parte, sobre a observação das interseções dos múltiplos conjuntos espaciais que se podem formar e isolar pelo raciocínio e pela observação precisa de suas configurações cartográficas. (LACOSTE, 2012, p. 66-67)

Conjuntos espaciais são as diversas instâncias da realidade sobre a qual se debruça cada especialidade científica, “representações abstratas, objetos de conhecimento e ferramentas de conhecimento produzidos pelas diversas disciplinas” (p. 67). São espaciais na medida em que se quer ressaltar o fundamental procedimento de análise do verdadeiro raciocínio geográfico que é o traçado dos limites de cada conjunto, na carta. E deve se ressaltar, ainda, a raridade em torno de dois conjuntos espaciais que coincidem em seus contornos, o que provavelmente expressa uma relação de causalidade.

A representação mais operacional e mais científica do espaço não é a de uma divisão simples em ‘regiões’, em compartimentos justapostos uns aos outros, mas a de uma superposição de vários quebra-cabeças bem diferencialmente recortados. (LACOSTE, 2012, p. 68)

Mas, ainda segundo Lacoste (2012, p. 69-70) seria necessário ir além, e raciocinar sobre as ordens de grandeza das diferentes espécies de conjuntos espaciais, que podem ser bem distintas. Não se trata, pois, de identificar a priori “realidades geográficas” evidentes ou coincidências de contornos de diversas categorias de conjuntos, que antes de serem regra, seriam exceção. Mas as representações tranquilizantes das regiões lablachianas, ideologicamente poderosas na constituição da ideia de pátria, ao naturalizar a repartição do espaço, pouco serviriam efetivamente para a ação, já que não refletiriam a realidade.

Não se pode perder de vista que a crítica de Yves Lacoste é direcionada à ciência geográfica praticada na França. Não se pode automaticamente direcioná-la às primeiras monografias regionais produzidas sob brigada da Faculdade de Filosofia da USP apenas pelo fato de estas serem tributárias diretas da tradição francesa de pesquisa e por guardarem similaridade com as dos mestres franceses. De todo modo, a proposta de divisão regional de Deffontaines, e também a de Monbeig, parecem, mesmo, orientar alguns dos primeiros trabalhos defendidos junto ao DG-USP. Apesar disso, em graus distintos, todas as teses consultadas parecem aproximar-se do fenômeno do dinamismo próprio da região Centro-Sul do país na primeira metade do século XX, em pleno processo de apropriação econômica, com grande instabilidade de estruturas e fluidez migratória.