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AS ERUPÇÕES PLONGEANTES DE MARIE-CÉLIE AGNANT

A voz de minha bisavó ecoou criança

nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida.

(Conceição Evaristo) Bwa Kayiman

Na noite do dia 14 de agosto de 1791, um grupo de escravos se reúne para, sob a proteção dos deuses, rebelarem-se contra o jugo colonial. Liderados pelo houngan121 Dutty Bookman122

e pela mambo Cécile Fatiman123, eles vivenciam a cerimônia vaudou mais celebrada da história

do Haiti: aquela que lhes daria a tão sonhada liberdade.

Embora Bookman, conhecido sobretudo por suas habilidades racionais, ganhe os livros de História, é Cécile quem interfere no tempo: sacrificando um porco negro aos lwa, com cujo sangue se banharão os rebeldes, a sacerdotisa inscreve no tempo histórico a intervenção do tempo mítico. Possuída por Erzulie Sept Kout Kouto124, estágio máximo de ira da mãe que luta

121 Hougan e mambo são os termos utilizados para referir-se aos sumos sacerdotes da religião vodu e são, respectivamente, as nomenclaturas conferidas aos homens e mulheres que presidem as cerimônias dessa religião. Vaudou, por sua vez, é a grafia francesa de vodu, religião de matriz africana que, na diáspora, se formou em território haitiano. Seu nome advém das tribos Fon e Ewé, e significa “inspiração divina, força de vida”, o que, segundo Heike Owusu (2009, p.13), testemunha a orientação positiva dessa religião, fundamentada na ideia de que todas as coisas, seres e acontecimentos estão indissociavelmente ligados uns aos outros no cosmos.

122 Dutty Boukman (? – 1791) foi um escravo de origem jamaicana que, tendo sido vendido por seu senhor britânico a um francês dono de plantações, manteve de sua vida pregressa o apelido de Book Man, o “homem do livro” – para cuja razão há duas razões aventadas pelos historiadores: uma, a de que seria muçulmano (os muçulmanos seriam chamados assim, à época); outra, a de que seria alfabetizado. De fato, a segunda teoria parece ser a mais correta, uma vez que Boukman sabia ler e que, sendo um hougan, lhe seria impossível estar minimamente relacionado à religião muçulmana, avessa às práticas vodus. Boukman trabalhou como commandeur (uma espécie de diretor de escravos) e como cocheiro. No papel de hougan, liderou, ao lado de Cécile Fatiman, a cerimônia do Bwa Kayiman (também grafada como Bois-Caïman, numa versão afrancesada da expressão créole), tendo realizado algumas profecias relacionadas à libertação dos escravos e incitando à Revolução. Foi assassinado em novembro daquele ano, e sua cabeça foi exposta pelos franceses a fim de dirimir sua fama de invencível. Os haitianos teriam honrado sua existência colocando-o entre os espíritos sagrados do vodu.

123 Cécile Fatiman (? - ?) foi uma escrava vendida em Saint-Domingue, junto com a mãe e apartada de seus irmãos, de quem se perderia. Seus dados biográficos são escassos: não se sabe onde nem quando nasceu, não se sabe quando morreu. Sabe-se apenas que teria vivido cerca de 112 anos e que cumpriu com um papel fundamental na cerimônia presidida por Boukman. Trajando uma túnica branca, Cécile teria sacrificado um porco negro em honra dos lwas (ou loas: deuses do vodu haitiano) e, possuída por Erzulie Sept Kout Kouto, teria dado de beber aos escravos o sangue do sacrifício, a fim de torna-los invencíveis. Sabe-se também que Cécile possuía os olhos verdes e que era filha de uma escrava com um corso – especula-se que teria sido filha de um dos netos do único rei da história da Córsega. Finda a Revolução Haitiana, Cécile teria casado com Jean-Louis Pierrot, príncipe do temporário reino do Haiti e primeiro presidente da república haitiana. Ele se divorciará de Cécile em 1812 para casar-se com uma das irmãs de Cécile. Há especulações de que o verdadeiro sobrenome dela fosse Attiman, e não Fatiman – este último tendo causado outras especulações, equivocadas, de que ela, como se dizia de Boukman, fosse muçulmana.

124 Erzulie é um dos lwas mais populares do vodu haitiano e corresponderia, no candomblé brasileiro – que partilha com o vodu alguns de seus orixás: Exu, Ogum, Oyá, Iemanjá, Oxalá, Xangô e Loko – a Oxum, sendo raramente assim nomeada também no vodu. Deusa do amor e do poder criativo, Erzulie encanta os homens e incute neles a paixão. É bastante procurada pelas mulheres, por conta disso. Regente das artes plásticas, seus símbolos e referências estão frequentemente presentes na arte haitiana. Apesar de todos esses atributos, Erzulie não é uma

67 por seus filhos, ela incutirá neles a sede por justiça, bebendo com os seus do sacro líquido animal. Abençoados por Erzulie, os escravos banharão as terras de seus senhores com sangue: não mais o sangue negro, que deste a terra e o mar já estavam repletos, mas o sangue branco do senhor e do carrasco. Em poucos dias, a vileza colonial sentirá na pele a vingança de milhares de escravos: quatro mil brancos serão mortos, cento e oitenta engenhos de açúcar dizimados, centenas de pés de café e anil destruídos pelo fogo125. A revolta dos escravos, que ficou conhecida como Revolução Haitiana, possibilitará que em dois anos a escravidão chegue ao fim e que, treze anos depois da intervenção de Erzulie, graças ao trabalho de Cécile, o país conquiste a sua independência126. Em 1804, a nação negra seria a primeira das Américas a conquistar sua liberdade.

Cento e cinquenta anos após a independência, Port-au-Prince receberá em seus braços a pequena Marie-Célie. Negra, ela carrega, no sangue e na alma, a bravura histórica de Cécile e a força mítica de Erzulie. Mas o tempo lhe será cruel: ela conhecerá o regime de Duvalier e saberá que a liberdade dos livros talvez não se efetive na crueza da realidade cotidiana. O que Marie – cujo primeiro nome católico evoca a Virgem e, por sincretismo, sob a pele branca imposta, invoca Erzulie – ainda não sabe é que, destinada a migrar, ela reconstituirá, pelo verbo, sua ilha natal àqueles que tanto lutaram por ela. Carregando consigo os seus ancestrais, Marie- Célie Agnant será uma Erzulie Dantor a empunhar literatura.

Palavra-pão

Os primeiros passos da pequena Marie pelo mundo da palavra escrita, segundo aquilo que a memória lhe permite recuperar127, se dão a partir dos três anos: embora ainda não

divindade pacífica: mãe das feiticeiras, ela se maquia com o sangue de seus inimigos. Muitas vezes representada como mulâtre, ela carrega com ela o jugo racial sofrido pelos negros do Haiti. É comumente conhecida sob dois avatares complementares: Erzulie Freda, a mulher amorosa, vaidosa e sedutora cujo símbolo é um coração; e Erzulie Dantor, a mulher negra com uma cicatriz no rosto que faz o sacrifício que for necessário para proteger seus filhos e que carrega, em seus braços, uma criança e um punhal. A versão mais sombria de Erzulie Dantor é Erzulie Sept Kout Kouto (Erzulie Sete Facadas), aquela que bebe o sangue do animal sacrificado e que, possuindo Cécile Fatiman, impulsiona o começo da Revolução Haitiana.

125 Segundo CENSER, Jack; HUNT, Lynn. Liberty, Equality, Fraternity: Exploring the French Revolution. State College: Penn State University Press, 2001. p. 124

126 A escravidão no Haiti chega ao fim com a proclamação do francês Léger-Felicité Sonthonax, em 29 de agosto de 1793, graças ao engajamento do filho de escravos Toussaint Louverture, quem se comprometeu em colaborar na guerra contra os britânicos que vinham conquistando as terras haitianas desde que os franceses libertassem os escravos. A independência do país é proclamada por Jean-Jacques Dessalines, líder da Revolução Haitiana, em 1 de janeiro de 1804.

127 A autora fala a respeito disso em um encontro ocorrido na Boutique d’écriture, em Montpellier, em 28 de novembro de 2016. A Boutique d’écriture é uma associação de educação popular e de promoção da cultura que se dedica a inúmeras atividades de relacionadas à literatura, à arte e à francofonia. Dentre essas ações, uma delas é o

68 alfabetizada, Marie já vai à escola, acompanhando as tias, institutrices, em seu labor diário. O corpo, para a pequena, já é silêncio: sendo a “criança da professora”, é preciso que apresente um comportamento exemplar – o que, no ocidente, sempre foi sinônimo de silenciamento dos corpos128.

Crescida em meio a uma família cercada de livros, a menina tem acesso e incentivo, desde muito cedo, à leitura. Além da palavra escrita, a oralidade também a alimenta: do pai, por exemplo, conhece apenas aquilo que lhe contam. Envolvido com as lutas contra o regime de Duvalier129, o pai de Agnant é farouche130 antes de ser pai – e como ser farouche lhe ocupa muito tempo... Apenas a palavra, pão dos olhos e dos ouvidos, pode presentificar e dar corporeidade ao mito que se tornou o pai ausente.

Mas a ausência paterna não é sinônimo de fragilidade: Marie é criada por um clã de mulheres independentes, que aprenderam desde cedo o significado de ser mulher no mundo. Além da mãe e das tias, convivem com ela também algumas primas e a avó, pedra elementar da casa e do clã. É com a avó, poto-mitan, que Marie aprende, sobretudo, a força que exige ser mulher: das imagens que carregará de sua raiz, a mais viva será a de vê-la enfrentando os

macoutes de Duvalier. Mulher de fibra, a avó não baixará a cabeça para os desmandos da

ditadura131.

Do governo imposto, aliás, a pequena Marie carregará consigo o medo e a revolta. Depois de adulta, olhando para trás, a imagem mais vívida que terá daquele período será a da casa da família Benoît, sua vizinha, incendiada. Lembrará para sempre da invasão militar, da

encontro com autores, evento para o qual Marie-Célie Agnant foi convidada por duas vezes. O registro em áudio desse encontro está disponível na plataforma SoundCloud, na internet (ver referências).

128 A respeito da escola como um espaço de domesticação dos corpos, ler STRAZZACAPPA, Márcia. A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola. Cadernos Cedes, Campinas, v. 21, n. 53, 2001, p. 69-83. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-32622001000100005&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em 07 abr. 2019.

129 François Duvalier (1907 – 1971) foi um médico sanitarista que, tendo sido eleito para a presidência do Haiti em 1957, mergulhou o país na ditadura mais severa de sua história, da qual o povo haitiano nunca chegou a se recuperar. Apelidado carinhosamente como Papa Doc, por ser uma espécie de “doutor-pai”, tamanho o seu cuidado para com os pacientes durante sua vida anterior à presidência, Duvalier converteu-se no maior pesadelo da população, tendo convertido seu mandato em vitalício e reprimindo qualquer manifestação de oposição ao seu governo, principalmente através de assassinatos e incêndios. Ao final do governo de Duvalier, o Haiti era o país mais pobre das Américas, com índices de analfabetismo altíssimos e saúde mergulhada no caos. Com sua morte, tomou-lhe o posto o filho, Jean-Claude Duvalier, apelidado ironicamente de Baby Doc. Neste trabalho, toda vez que me refiro ao governante pelo sobrenome Duvalier, me referirei ao pai. Quando fizer referência ao filho, esta estará devidamente apontada.

130 A palavra farouche, que significa “selvagem”, foi utilizada para designar o movimento de resistência ao governo duvalierista.

131 A figura da avó, aliás, será bastante presente não só nos escritos de Marie-Célie Agnant como em toda a literatura haitiana, uma vez que, culturalmente, a avó desempenha um importante papel no núcleo familiar, como transmissora de saberes tradicionais e como pilar da família. Em uma cultura que preza muito pelo respeito e obediência aos mais velhos, a avó representa o que há de mais sagrado no âmbito familiar.

69 casa em chamas, das vidas queimadas pela ditadura, das cinzas – vestígio final daquelas mortes – pelas quais cruzou todos os dias, indo à escola. Os acontecimentos que sucederão o trauma que demarca sua efetiva consciência da dimensão do horror causado por Duvalier serão apagados de sua memória. Do período vivido dos dez aos dezessete anos não recordará mais coisa alguma.

Aos dezessete, será enviada pela família ao Québec, para viver com uma madrinha, tamanho o terror que habita a terra natal. O pai, naquele mesmo ano, será assassinado pelos militares. Mas não serão esses os acontecimentos que farão com que Agnant se sinta desterritorializada. Ainda na infância, ela e as mulheres de sua família são obrigadas a abandonar a casa em que vivem por um capricho macoute: desejando construir sua casa no terreno em que vivia a família de Agnant, um militar as obriga a abandoná-la. Com o passar dos anos, Marie-Célie tomará consciência de que já era estrangeira há muito, em seu próprio país.

Palavrestrangeira

Professora de língua francesa, Marie-Célie Agnant atua também como tradutora e intérprete cultural em sua vida profissional. Sua estrangeiridade é essencial ao posto que ocupa: recebendo famílias de imigrantes haitianos e latino-americanos na escola, Agnant cumpre a dupla função de, por um lado, acolher essas famílias, auxiliando-as em sua inserção na nova sociedade, sobretudo no que tange à entrada de seus filhos no universo escolar quebequense (suas normas, suas culturas, seus processos) e, por outro, dialogar e instruir os estabelecimentos escolares com relação à bagagem cultural e familiar que carregam seus novos alunos, a fim de que eles sejam mais bem incluídos em sua nova realidade.

No entanto, ainda que lhe encantem os alunos, os colegas, as famílias – de alguma forma, o ambiente escolar se fez casa para ela – lhe incomodam os processos administrativos, as burocracias, os papéis mortos da vida cotidiana. Além disso, pulsa em Agnant o desejo de retornar ao Haiti de suas memórias, tão escassas graças a Duvalier. Em 1991, Marie-Célie põe em prática o plano de sua viagem de retorno: em permanente contato com a editora de um jornal de mulheres na ilha natal, para quem irá trabalhar, ela acerta o que lhe é necessário para matricular os três filhos na escola e enfim traçar seu caminho de retorno à terra-mãe. Mas o golpe de estado132 instituído pelos militares haitianos neste mesmo ano – retirando Jean-

132 O golpe militar ocorre em 30 de setembro de 1991, quando, descontentes com o governo democrático de Jean- Bertrand Aristide (1953 –), as forças armadas, lideradas por Raoul Cédras e incentivadas pelas elites econômicas do país, depõem o presidente à força do poder. Sem amparo, Aristide se refugiará nos Estados Unidos, onde

70 Bertrand Aristide, à força, do poder – frustra qualquer vestígio de esperança que ainda habite em Marie. É a partir de então que ela toma consciência de seu entre-lugar: seu espaço é um “trem em marcha, um avião em pleno ar, a própria transição”, como diz Kristeva133. Sem

possibilidade de retorno, Agnant viverá o Haiti que tece com suas próprias palavras.

A voz ficcional de Agnant ocupa espaços efêmeros: aparece num ou noutro poema, num ou noutro pequeno texto publicados em revistas, sobretudo em revistas feministas. Há textos que sequer chegam à publicação: são lidos em alguma soirée de poesia para depois se perderem no caminho entre as gavetas e a lixeira. São, como ela mesma diz134, poemas de circunstância, textos combativos que desejam quebrar muros, sem qualquer intenção de publicação. Um dia, o diretor de uma maison d’édition lê um de seus poemas em uma revista e a convida para publicar sua literatura. Temerosa, ela recua.

Não convencido, o editor volta a procurá-la um ano depois. Marie-Célie se vê dividida entre o desejo de aceitar o convite e a desafortunada necessidade de negação por não ter textos o suficiente para a publicação: os perde todos, afinal. Mas Marie não conta com um fator fundamental: os textos que lê para o público nas soirées e que publica em pequenos jornais são tesouro para quem os recebe. Seus amigos – dentre eles, o marido – guardam consigo as palavras de Agnant. Resgatadas, elas darão à luz seu primeiro livro: contando com subsídio do Conselho das Artes do Canadá e dos Programas de Multiculturalismo do Ministério do Patrimônio Canadense, a editora do Centro de Documentação e de Informação Haitiana, Caribenha e Afro-canadense traz a público, em 1994, Balafres.

Balafres

Agnant anuncia, desde o começo, que não está sozinha: uma obra de Ronald Mevs135, reconhecido artista haitiano, ilustra, em diferentes tons de marrom, a capa do livro. Uma figura mais ou menos abstrata, uma linguagem não muito referencial: há uma espécie de quadrado, quase como uma janela-moldura. É possível perceber uma noção de profundidade que parte do interior da figura. Dentro dela, o indiscernível: formas não muito bem demarcadas, manchas irregulares, jogos de sombra e luz. A dedicatória reforça a importância do coletivo: a escritora

permanecerá até que um acordo estabelecido pelas relações diplomáticas entre Estados Unidos e Haiti devolva-lhe o poder, em 1994. Aristide governa o Haiti de 1994 a 1996 e, mais tarde, de 2001 a 2004, quando se vê novamente obrigado a deixar o país por conta de um novo golpe de estado.

133 KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 15

134 Agnant fala sobre isso também em seus encontros na Boutique d’écriture, em Montpellier, já citados aqui. 135 Ronald Mevs (1945) é um artista de origem haitiana, reconhecido sobretudo por seu trabalho com a arte abstrata. Com apenas 16 anos, Mevs abandona a terra natal para estudar Artes Gráficas nos Estados Unidos, onde inicia sua carreira. Atualmente, o pintor e escultor vive em Montréal, no Canadá, espaço em que habita também Agnant.

71 agradece “a todas aquelas e aqueles que [a] apoiaram e encorajaram tão generosamente136”. A

palavra “merci”, escrita em letras garrafais e sem ponto final, encerra em aberto uma dedicatória que apenas começa. Afinal, graças a essas pessoas, Agnant pode reunir seus poemas para publicar. Cada poema carrega um pouco de si com ele.

Figura 2 – Capa de Balafres137

Os trinta e seis títulos que compõem a obra antecipam o tom da escrita agnantiana: não só uma poesia militante, de perspectiva feminista, voltada para o coletivo, mas também uma poesia intimista, afetiva e empática, voltada para aqueles que ama. Recorrendo muitas vezes à memória, o que a literatura de Agnant faz é lutar contra os silêncios. Não à toa, três de seus poemas carregam, em seus títulos, a palavra “grito”: “Deuxième cri”, “Troisième cri”, “Dernier cri”. Em sequência, o segundo, o terceiro e o último grito atestam a existência de um grito primeiro, grito ausente, não nomeado – um provável grito silenciado. O silêncio imposto tem alvo bem definido: a mulher, sobretudo a mulher negra (como o demonstrarão as palavras que figuram em “Orphée”) e o estrangeiro (“L’étranger”, “Ô ma terre”), que carregam consigo e em suas memórias as cicatrizes (“Balafre”) de uma terra destroçada pela violência (“Ô ma terre”, “Perejil138”, “Île índigo”, “La ville”). Nesse sentido, o que o sujeito lírico convoca é uma

136 No original: “À toutes celles et ceux qui m’ont apporté si généreusement soutien et encouragement. MERCI”. 137 Foto capturada pelo pesquisador.

138 Em nota de rodapé referente ao título do poema, em Balafres (p. 88), Agnant explica que a palavra perejil (salsa, em espanhol) fora usada na República Dominicana – durante o massacre dos trabalhadores haitianos envolvidos na safra da cana, ocorrido em 1937 e comandado pelo ditador Rafael Leonidas Trujillo – para identificar quem era dominicano e quem era haitiano e, por consequência, quem deveria permanecer vivo e quem deveria ser dizimado. Uma vez que os francófonos não conseguem pronunciar o som da letra j da mesma forma que os hispano-falantes, a simples ordem de que dissessem tal palavra era eficaz o suficiente para permitir a identificação dos sujeitos.

72 revolução pela palavra: a possibilidade de, recuperando a voz, o oprimido gritar e se rebelar contra o opressor (“Inventaire”, “Vade Mecum”, “Vos grands pieds” e “Posons le pied” são capitais nesse sentido).

Além de seu aspecto de denúncia e da possibilidade do grito, a poesia de Agnant, em

Balafres, vai permitir à autora iluminar também seus afetos, sobre os quais falará ao leitor ou

aos quais se dirigirá pelo verso, por vezes quase em forma de oração (“Jaculatoire139”). À mãe

e à filha ela dedica, respectivamente, as palavras de “Sources chaudes” e “Extase”. Em outros poemas, como “Fête des Mères”, “Ma sœur”, “À mes fils”, “Manuel” e “Mimose”, o título falará do íntimo por si mesmo, ainda que, muitas das vezes, a palavra dirigida aos entes queridos seja de advertência, de conscientização, de revelação da dor histórica infligida, de guardiã da memória coletiva.

Como aponta Lucie Lequin140, Balafres é, ao mesmo tempo, um grito de revolta contra o mal e uma oração afetuosa àqueles que Marie ama e a essa coletividade, à qual ela também pertence, marcada pelo medo e pela cólera. Poesia encolerizada e amante. E um eu que se constitui pela possível janela da capa: esse interstício entre a revolta internalizada e a possibilidade de gritá-la.

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