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4 MERLEAU-PONTY: MÚSICA E PERCEPÇÃO

5.2 AS ESCOLHAS MUSICAIS

A análise que atribui a alienação musical da sociedade apenas ao poder da Indústria Cultural é uma visão simplista da teoria musical de Adorno. Tanto o indivíduo, quanto a sociedade são participantes e corresponsáveis, juntamente com a estrutura dominante, pelos processos musicais. A importância que se dá à ação da Indústria Cultural no processo de massificação da música é superestimada, mesmo assim tornou-se um hábito imputar aos meios de comunicação a culpa pelo declínio da formação musical (WIKTIN, 2003, p. 261). Quando se coloca toda a responsabilidade pelo “mau gosto musical” na Indústria Cultural, cai-se num determinismo pessimista que aponta para a decadência musical gradativa. Um julgamento musical guiado pela crença na decadência do gosto musical tenderá a acusar grupos sociais e repertórios musicais de mau gosto, retirando assim a legitimidade e relevância de determinadas práticas musicais.

A crítica de Adorno se levanta contra os mecanismos de alienação musical, não contra o sujeito alienado, esta crítica não é especificamente direcionada à música apreciada por determinada classe social ou dela oriunda, como já vimos anteriormente, o que Adorno afirma contundentemente é a decadência do gosto das massas, em todos os níveis intelectuais e econômicos (ADORNO, 2011, p. 408).

Esta decadência se deve não apenas ao fato da música ter se tornado um bem de consumo, ela se relaciona mais diretamente à opção do ouvinte por aquilo que lhe parece ser mais apropriado ao momento de divertimento e é assim oferecido pela Indústria Cultural. Esta opção do ouvinte, também não pode ser vista de maneira simplista como resultado de sua ingenuidade; são complexos os fatores que o levam a esta opção, dentre eles a mecanização do corpo pelo trabalho na sociedade capitalista. O corpo, mecanizado pelo sistema capitalista de exploração do trabalho, responderá à música, segundo Adorno, mecanicamente, obedecendo aos ditames da Indústria Cultural, cujo principal objetivo é incentivar o ouvinte ao consumo da música produzida por ela da mesma maneira que ele, o corpo, responde ao trabalho. Assim, seja no estado de atividade ou de repouso o corpo permanecerá sob controle das forças de produção, impedindo que se ele insurja contra a perversidade do sistema.

A imposição que obriga adequar-se à mecanização da produção requer, ao que tudo indica, que se repita imitativa e neutralizadamente o conflito entre esta última e o corpo no tempo livre. Em termos simbólicos, festeja-se uma espécie de reconciliação entre o corpo desprotegido e a maquinaria, entre o átomo humano e a violência coletiva. (ADORNO, 2011, p. 375).

Concordo com a afirmativa de Adorno sobre a intenção da Indústria Cultural em manipular o gosto dos corpos mecanizados, mas discordo no ponto em que ele afirma que sob o efeito da música de massa o sujeito torna-se totalmente inconsciente e passivo. Enquanto colocamos o corpo em repouso na sala de estar ao som de uma música ou dançamos freneticamente durante uma festa, estamos respondendo ativamente à música, pois ao ouvirmos construímos conceitos, vivenciamos emoções, reativamos a memória, tudo isso conectados à música. Esta vivência corporal, aparentemente passiva e manipulada, é, na verdade, a expressão de uma consciência corporal musicalmente ativada. Sobre isso comenta Tia DeNora (2003, p. 92):

Os ouvintes não são simplesmente ' afetados' pela música, mas são, sim , ativos na construção de sua "passividade" perante à música - sua capacidade de ser 'movido'. O 'usuário' da música é, portanto, profundamente envolvido como produtor de seu/sua própria resposta emocional,é ele que timidamente se esforça para satisfazer as condições que o deixarão ser apreendido e tomado por uma força potencialmente exógena. "Passividade", então, não é um momento de inércia por falta de vontade do usuário, que de repente deixa de ser um todo. A passividade acrescenta à ação e potencializa a ação.

Cabe acrescentar à observação de Tia DeNora, que, sob uma perspectiva pontyana, esta resposta emocional é a reconstrução corporal de uma experiência vivida e não a resposta psicológica dada após um estímulo corporal e sob a perspectiva adorniana a desatenção auditiva, num conceito sociológico, não é a supressão da consciência corporal, é a recusa em ouvir por si mesmo; mesmo aparentemente passivo e desatento à música o sujeito tem consciência da sua presença. Ao efetuarmos uma atividade cotidiana, por exemplo, ao som de um fundo musical, tem-se a sensação de que o mundo silenciou-se quando a música acaba, isso porque a sensação auditiva provocada pela música é recebida e respondida pelo ser como um todo.

A música de massa pode ser considerada cópia de cópias, mas a recepção, ou neste caso, a percepção da música pelo ouvinte será sempre única, original. Pode-se renunciar à autonomia de realização da crítica musical ao se valer das sugestões ideológicas da estrutura social, mas dificilmente, mesmo que haja uma exposição cotidiana a difusão musical, perde-se totalmente a capacidade de reagir subjetivamente à música; baseando-se nesta reação subjetiva é possível fazer escolhas musicais autônomas dentro do repertório musical, aparentemente massificado. O gosto musical é diretamente influenciado pela sociedade, mas é, em si, inalienável.

A autonomia de escolha das massas é, neste trecho, mesmo que de forma pessimista, atestada por Adorno: “Não se deve imaginar que os ouvintes seriam violentados e que, em si, tal como em um feliz estado natural musical, estariam automaticamente abertos ao diferente, caso o sistema permitisse tanto” (ADORNO, 2011, p. 371).

A citação acima é a confissão do determinismo musical adorniano: mesmo que a Indústria Cultural se dispusesse a veicular a “boa música”, as massas optariam sempre pela “música ruim”. Se desconsiderarmos o juízo de valor que admite a existência de música boa e música ruim, a citação de Adorno nos anima por perceber que o esforço da Indústria Cultural para a massificação das preferências musicais, pode ser frustrado.

A sociedade e em especial os que trabalham pela educação e Educação Musical, deveriam sair da frente de batalha contra a música de massa e investir esforços na assunção das possibilidades musicais da massa, o que não quer dizer conformismo, mas deixar de aceitar os discursos que afastam as massas, seus gostos e preferências, de uma consciência musical válida. Portanto, Adorno não coloca um ponto final na questão do gosto das massas, ao contrário, ele nos convida a:

Sondar até que ponto o assim chamado gosto das massas acha-se manipulado e até que ponto ele concerne às massas mesmas, bem como investigar em que proporção, lá onde ele tem de ser atribuído às massas, o gosto reflete uma vez mais aquilo que lhes foi apregoado durante séculos [...]. (ADORNO, 2011, p. 407).

Por fim, Adorno citará a espontaneidade da arte como característica que dificulta sua manipulação pela Indústria Cultural. Ou seja, por mais que a Indústria Cultural controle a reprodução e a difusão musical, pois estes são passiveis dos mecanismos de massificação, ele não consegue dominar totalmente a sua criação, que para Adorno ainda segue o modelo manufatura: o compositor, o arranjador, o intérprete (ADORNO, 1986, p. 121). A força produtiva, que neste caso corporifica-se no músico, que é anterior ao processo de massificação, pode insurgir-se contra as forças de produção, saindo do alcance dos mecanismos que cristalizam a música.

O que está em jogo, na teoria de Adorno é mais que uma disputa de gostos. Não obstante Adorno considere a impossibilidade de se fazer escolhas musicais em tais condições sociais, a irracionalidade racionalizada para a instauração da barbárie não pode, nem será o ponto final e definitivo, há sempre o fator espontâneo e inalcançável da arte e da vontade humana. O ponto de convergência entre Merleau Ponty e Adorno é a necessidade da autonomia do corpo para a fruição musical. A forma correta de ouvir, de julgar musicalmente

não pode estar atrelada a outro pressuposto, senão ao estético-corporal, portanto, nem a ciência, nem as mídias podem ditar o que ouvimos e como deveremos ouvir. Para Adorno e para Merleau-Ponty, a música fala por si, mediada, porém pela experiência estética, que por sua vez se desenvolve dentro de um contexto social. Sendo uma linguagem não verbal a música pode se tornar refém de discursos que mudam sua função, quando isso ocorre tornamo-nos, como ouvintes, presas fáceis da ideologia na música, cuja intenção é retirar-nos a autonomia do ouvir.

A composição escuta pelo ouvinte. Esse é o modo de a música popular despojar o ouvinte de sua espontaneidade e promover reflexos condicionados. Ela não somente dispensa o esforço do ouvinte para seguir o fluxo musical concreto, como lhe dá, de fato, modelos sob os quais qualquer coisa concreta ainda remanescente pode ser subsumida. A construção esquemática dita o modo como ele deve ouvir, enquanto torna, ao mesmo tempo, qualquer esforço no escutar desnecessário. (ADORNO, 1986, p. 121).

A forma de despertar a verdadeira consciência musical seria nos utilizando da única maneira que termos acesso a ela: ouvindo.

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