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As facetas de expressão/ manutenção de uma ideologia da

PARTE I IDEOLOGIA E DIREITO

CAPÍTULO 2 – A IDEOLOGIA E A UTOPIA EM KARL MANNHEIM

2.3. As facetas de expressão/ manutenção de uma ideologia da

particular de Karl Mannheim

Antes, porém, de concluir a discussão sobre algumas idéias de mannheim, trazemos mais um ponto para se somar à discussão da ideologia jurídica. Esta reclama a especificidade em dois aspectos fundamentais para seu entendimento.

A crítica à ideologia no direito chama a atenção para algumas visões de mundo ou idéias ideologicamente condicionadas, na terminologia mannheimiana, existentes no plano jurídico, seja no pensar sobre o direito, seja na atuação prática dos juristas, por exemplo ao transmitir uma determinada imagem de justiça destinada não tanto a mostrar a face de uma realidade concreta, mas a indicar qual deve ser tal realidade. Como diz Taruffo: “De fato a doutrina do silogismo judicial, mais que descrever o juízo, constrói um modelo abstrato e ideal dele [...]”76, e completamos que, no entanto, o próprio modelo, na medida em que é ideal, incorre ele mesmo em ideologia!

Pesquisar a ideologia no direito por si só seria tarefa hercúlea, pois caberia discussões nos planos da validade, vigência e eficácia das normas jurídicas, ou melhor especificando, desde o âmbito legislativo, passando pelo da concretização da norma com o trabalho dos juristas, pela recepção dos jurisdicionados e, last but not least, pelos juristas teóricos (doutrinadores,

76

“In effeti la dottrina del sillogismo giudiziale, più che descivere il giuduzio construisce um modello

astrato ed ideale de giudizio [...]”. TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza civile. Padova:

professores) que também cumprem papel fundamental esta seara de transmissão de idéias. 77

Como já mencionado, a delimitação da pesquisa focou o âmbito da magistratura, e aqui resta eminente a figura do juiz. A função destes já é lembrada por Bourdieu:

As ideologias devem a sua estrutura e as funções mais específicas às condições sociais da sua produção e da sua circulação, quer dizer, às funções que elas cumprem, em primeiro lugar, para os especialistas [...], em segundo, para os não-especialistas. Ter presente que as ideologias são sempre duplamente determinadas, que elas devem suas características mais específicas não só aos interesses das classes ou das frações de classe que elas exprimem (função sociodicéia), mas também aos interesses específicos daqueles que as produzem e à lógica específica do campo de produção. 78

Assim o juiz tem parcela de papel nesta perspectiva de manutenção da ideologia no direito, mas não se pode esquecer do trabalho realizado pelos “não-especialistas”, como disse acima Bourdieu.

A partir destes dois pólos citados por Bourdieu e cotejando com o pensamento de Mannheim quando subdivide ideologia em total e particular, pode-se pensar a especificidade da ideologia no direito como preferimos chamar “de dentro” e “de fora”.

Antes, porém, de argumentar sobre esta percepção, e para entender a dicotomia lançada, há de se entender que Mannheim fala naqueles dois significados distintos e separáveis do termo ideologia. Expõe que a concepção particular de ideologia é implicada quando o termo denota certa descrença

77

Sobre estas possibilidades de discussão da ideologia no direito ver CORREAS, Oscar. Crítica da ideologia jurídica: ensaio sócio-semiológico. Porto Alegre: SAFE, 1995, p.

78

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 2.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998, p. 13.

acerca das idéias e representações apresentadas, logo encaradas como disfarces mais ou menos conscientes da real natureza de uma situação. 79

Já a total seria mais inclusiva, visto representar “a ideologia de uma época ou de um grupo histórico-social concreto, por exemplo, a de uma classe [...]”. 80

Aproveitando o sentido geral defendido por Mannheim de ideologia como visão de mundo de um grupo humano, de uma classe social, podemos tomá-la como empréstimo para – por analogia de semelhança – discutir a ideologia da magistratura, assim temos no âmbito corporativo da magistratura uma identificação dela como a consciência de mundo, o compêndio de ilusões nas palavras de Gorender, sobre a própria classe, as profissões jurídicas, o poder judiciário, o ensino do direito etc. Uma tendência ao conservadorismo e tradicionalismo fica embutida nessa ideologia.

Aí a ideologia jurídica se expressa “de dentro”, no sentido da origem no próprio âmbito jurídico. Podemos também vislumbrar a ideologia jurídica “de fora”, em contraponto ao que seria essa veiculada “por dentro”. Assim nos referimos à ideologia jurídica transmitida e alimentada não especificamente por juristas, mas pelo senso comum a partir de uma concessão interessada ou até ideologicamente interessante para seus principais produtores, os juristas.

Ao falar de uma ideologia “de fora”, temos por base a noção particular de Mannheim, no que esta tem de alusão aos que recepcionam ou são “ideologiazados”, data vênia tal expressão para falar da forma passiva da ação

79

Diz Mannheim que a concepção particular de ideologia é implicada quando o termo denota estarmos céticos das idéias ditas por nosso opositor. Neste sentido estaria “o conjunto de contrafações mas ou menos deliberadas de uma situação real cujo exato conhecimento contraria os interesses de quem sustenta a ideologia” MANNHEIM, op. cit., 1968, p. 81-84; ABBAGNANO, op. cit., p. 532.

80

ideológica. Porém, a este aspecto 81 somamos uma perspectiva atuante também nestes, que no nosso parâmetro são os jurisdicionados, ou seja, estes também têm um papel ativo na manutenção e transmissão daquela ideologia “de dentro”.

Nas palavras de Óscar Correas, ocorre o reconhecimento do direito, isto é, “o único aspecto que permite entender porque um grupo conserva sua hegemonia é porque circulam na sociedade inúmeros outros discursos que reconhecem o discurso do direito”.

Assim, trata-se de como as pessoas podem se tornar tão eficazes na absorção, compartilhamento, transmissão de ideologias, o que podemos resumir na palavra legitimação daquelas idéias. 82

Podemos falar genericamente de uma ideologia específica dentro de cada categoria profissional, mas pensar o direito requer um quê de reflexão dado seu papel de controle social por excelência, com normas que são garantidas pela coercitividade estatal. Tais normas representam as preocupações e desejos de manutenção da ordem que interesse ser mantida. Estimular a crença na infalibilidade da justiça ou na imparcialidade absoluta do julgador, por exemplo, são maneiras de transmitir uma ideologia jurídica cuja precípua função é a consagração do status quo de um controle sobre o próprio controle que o direito tem por exercer.

81

Ressaltamos que Mannheim não discute sobre um papel ativo da parte dos que são apresentados a determinadas idéias. Esta variação é hipótese nossa, corroborando Oscar Correas, pois assim entendemos em complemento ao autor. Cf. CORREAS, op. cit., p. 78.

82

Nesse sentido Eagleton critica que “ninguém é, ideologicamente falando, um tolo completo, é o fato de que as pessoas ditas inferiores devem realmente aprender a sê-lo. Não é suficiente para uma mulher ou um colono serem definidos como uma forma de vida inferior, é preciso ensinar-lhes ativamente essa definição, e alguns deles revelam-se brilhantes bacharéis nesse processo. É surpreendente quão hábeis, engenhosos e perspicazes podem ser os homens e mulheres em provar para si mesmos que são incivilizados”. EAGLETON, op. cit., p. 14.

Em ambas as manifestações podemos nos referir ao controle social que a crença na ideologia jurídica fomenta, a qual subsiste dado um trabalho articulado ideologicamente – no sentido de prezar pela manutenção da estrutura – entre o poder judiciário e jurisdicionados.

Ressaltamos, porém, que nossa discussão sobre a manifestação da ideologia na magistratura não pretende desmerecer ou desqualificar o papel do judiciário nem do juiz na sociedade.

E justamente exaltando a importância da atividade do juiz, mesmo que entremeada de alguma crítica dada a postura realista de Cardozo ao falar de como os juízes decidem, é que passamos a discorrer no capítulo que segue sobre algumas contribuições dadas a este debate pelo que podemos chamar de pragmatismo jurídico.