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Fixados e debatidos os variados métodos propostos pela investigação na área __ ou, pelo menos, aqueles que consideramos mais relevantes para o nosso próprio projeto de observação -, é preciso determinar em rigor a questão da abordagem do processo criativo. Neste âmbito, optámos por utilizar as ferramentas propostas por duas investigadoras francesas, Sophie Lucet38 e Sophie Proust39, que pilotaram, nas últimas décadas, projetos de acompanhamento de processos criativos.

Graças ao trabalho de investigação desenvolvido em La Fabrique du Spectacle, Sophie Lucet e a sua equipa segmentam o trabalho de observação e de registo do processo em três frentes: antes dos ensaios, durante os ensaios e depois da estreia. Antes dos ensaios, faz parte o training, a escolha de textos, a produção, primeiros sonhos/primeiros problemas, a escolha da equipa artística e a escolha da distribuição. Durante os ensaios, é tido o processo de criação como manifesto: o espaço sonoro, tempo e locais de ensaio; as etapas do ensaio, aquecimento e training; a direção de atores, rituais e jogos; a cenografia, luzes, figurinos, ritmo e evolução do espetáculo; a presença do espetador e seu impacto. Depois da estreia, é estudado o impacto da estreia na criação, as influências da receção do espetador na criação, o impacto da crítica, as

38 Sophie Lucet é professora em Estudos de Teatro na Universidade de Rennes 2 e especialista na área da genética

teatral. Dirigiu, desde 2012, um programa de pesquisa internacional intitulado Arquivando a Ação Criativa na Era Digital no qual se inserem os resultados da Fabrique du spectacle, mediante o acompanhamento de vários processos de criação na região da Bretanha. Esses resultados podem ser consultados na plataforma do projeto em

www.fabrique-du-spectacle.fr.

39 Sophie Proust é professora de Estudos de Teatro e pesquisadora do CEAC (Centro de Estudos de Artes

39 memórias do espetáculo para outro sonho, comunicação e comentários. Os investigadores trabalharam num sentido imersivo de pesquisa-ação onde entrevistaram in loco todos os integrantes da equipa, sejam eles atores, técnicos ou pessoas da área da administração. Estes pesquisadores recolheram dados já existentes antes do seu envolvimento, como por exemplo, desenhos de cena, rascunhos, notas e criaram novos conteúdos que foram as entrevistas in loco com toda a equipa integrante do processo. Para além disso, elaboraram um esboço de uma grelha que tinha como objetivo, numa primeira fase, abordar várias equipas de trabalho e seus diferentes métodos – criar a hipótese de comparação entre as diferentes formas de trabalhar de cada equipa artística. Sendo esta grelha um rascunho, um trabalho em andamento, servia como uma bússola norteadora durante a recolha das entrevistas e do material que já pré-existia antes do envolvimento dos pesquisadores. Os elementos integrantes de cada segmento – Antes dos ensaios, durante os ensaios e depois da estreia – que se encontram na grelha são para meios meditativos do próprio projeto e seu andamento. No fundo, é como Jostte Féral diz, que já não existe um paradigma ou receitas para poder entender um processo gestacional artístico no seu sentido amplo, mas o que se pretende é desconstrui-lo. Mas podemos ir ainda mais longe, se situarmos as sugestões de Sophie Lucet no âmbito da perceção e encararmos o processo de acompanhamento como um diálogo entre o teatro e o mundo:

S’intéresser à l’archivage du geste créateur est donc une façon de relier le théâtre au monde, et de le revendiquer. Dès lors, l’œuvre d’art ne renvoie plus au durable ou à l’éternel – (on se souvient ici de la célèbre phrase de Hegel : « L’art consiste surtout à saisir les traits momentanés, fugitifs et changeants du monde et de sa vie particulière, pour les fixer et les rendre durables ») – mais à une vision délibérément historicisée du regard selon des codes de perception admis à une époque donnée, à un face à face, à des rencontres : à un dialogue entre regardeur et regardé, entre scène et monde.

40 5. O registo do processo e a figura do(a) assistente de cena40

O espetáculo é uma alavanca que aguarda a chegada da estreia como o ponto de partida. Para uma equipa que rema com o mesmo objetivo e que organizadamente trabalha para que a obra aconteça, é necessário que exista alguém que se ocupe de marcar e criar blocos de ensaios, segundo o texto/entradas em cena, coordenação de datas de ensaio/deadlines, circuitos de montagem de cenários, ensaios de luzes, reuniões de mesa, enfim, uma série de processos necessários dentro do próprio processo criativo. No entanto, no nosso país, nem todas as companhias de teatro estão dotadas das condições financeiras conducentes à contratação de um(a) assistente de cena e, apesar de ser uma profissão promissora, muitos são os grupos artísticos que esticam as suas possibilidades e tempo para serem eles próprios a fazer tudo acontecer durante o precioso tempo que têm para criar. Ter alguém que ocupe exclusivamente este cargo durante uma produção traz alguma segurança e estabilidade à equipa criativa. Podemos ver este valorizar do trabalho do assistente de cena no artigo Not Magic, but work - Rehearsal and the Production of Meaning de Gay McAuley (2008). O assistente de cena possui um diário de bordo que é referência do processo criativo da construção do espetáculo visto estar todo o registo por escrito sobre as decisões tomadas pelo encenador ao longo do percurso. Como referiu Patrice Pavis “é inegável o impacto estético, teórico e dramatúrgico da direção de cena sobre a encenação.” (Pavis, 2005: 99-100).

Podemos encontrar, na obra La notation du travail théâtral : du manuscrit au numérique (Monique Martinez Thomas e Sophie Proust, 2016), a proposta de grelha de anotações de Sophie Proust para o trabalho de assistente de cena. Esta grelha é fruto da sua longa experiência nessa qualidade em vários processos liderados por encenadores conhecidos da cena norte- americana e francesa41. Na grelha proposta, podemos encontrar diretrizes na horizontal e diagonal que permitem ao assistente criar um registo de todas as tarefas, que ocorrem antes dos ensaios (audições, reuniões de produção), no 1º dia de ensaio (leitura (s) à mesa sobre o cenário, criação dos figurinos, improvisações), no início dos ensaios (10 primeiros dias), no meio dos ensaios (training, figurinos, ensaio dos cantos…), no final dos ensaios (10 últimos dias) – (criação dos figurinos, ensaios com os figurinos – ensaios abertos), na antestreia, na estreia, na exploração, na recuperação e para além dos ensaios (1- Pausa, 2- Ensaios fora de horas, 3-

40 O papel atribuído ao assistente de cena é primordial no que respeita ao registo de todos os movimentos do

processo. Tal facto explica que esta figura seja vista como um insider, em contacto com todas as etapas e frentes necessárias para o encadeamento das diferentes fases da criação do espetáculo.

41 Ensaios alternados). Na vertical, numerado por letras, os separadores são os seguintes: datas e locais de ensaios (cidade, local de ensaios, local de representação); presença da equipa (completa, parcial, com ou sem o autor, o encenador, o dramaturgo e os diferentes técnicos [luz, cenografia, som…] com grelha de personagem para realizar o cronograma dos ensaios); constituição da distribuição; versão do texto (ou sequência trabalhada se não houver texto); trabalho de mesa; trabalho dramático; sequência de trabalho; cenografia (preparação dos ensaios [marcações, ponto de atração, cenário real]; figurinos [Maquilhagem, penteados, máscaras, prova de figurinos, guarda roupa]; acessórios; inserções de som (música, ruído, silencio); tempo de sequências.

Fig. 1 – Grelha proposta por Sophie Proust

No seu artigo Géneses teatrais ou um interesse renovado pelos estudos de genética teatral, Ana Clara42 Santos reforça a importância que deve ser atribuída ao assistente de cena: Retrata as funções desta figura importante para a montagem do espetáculo nas suas diversas fases de criação realçando a sua participação directa no trabalho

42 “Ana Clara Santos é professora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve,

investigadora do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especialista do Teatro francês do séc. XVII e da sua receção em Portugal. É co-autora (com Ana Isabel Vasconcelos) de dois volumes do Repertório teatral na Lisboa oitocentista (IN-CM).” (Santos, 2011).

42 dramatúrgico, desde a constituição de plannings até às repetições, verdadeiro trabalho de memória das diferentes versões de um espetáculo em construção. As repetições, inscritas numa duração variável, que podem ir de 2 semanas a 6 meses, constituem, na sua opinião, o núcleo da criação numa análise de diferentes fragmentos do espetáculo. (Santos, 2011: 78).

A autora refere que o método de registo feito pela figura do assistente de cena, de “fixação das diferentes versões das várias cenas do espetáculo” (Santos, 2011: 78), é importante para a área da genética teatral, pois enriquece os registos existentes da obra em análise.