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AS FONTES MUSICAIS LATINAS: PERFORMANCE E ESCRITURA

Os mais antigos livros de música são da tradição gregoriana, e os remanescentes mais remotos são livros com neumas do século X. São conhecidas também partes avulsas com notação datadas do século IX, sem relação com o contexto do divino Ofício. Existem livros de cantos completos (alguns identificados como “livros de arte musical”) do século IX e princípios do X, sem neumas, contendo apenas textos, alguns dos quais, contêm indicações dos modos eclesiásticos em que seriam entoados. A análise do corpus de melodias transmitidas pela escrita, em períodos posteriores, demonstra que a destinação litúrgica e os modos escolhidos assinalam, em conjunto, os gêneros dos cantos, determinando os textos escolhidos para se cantar. Por essa razão, o canto dos textos sem neumas não teria constituído problema, ou seja, os sinais supramencionados, em conjunto, forneceriam aos cantores treinados as noções necessárias à intonação, sem que fosse indispensável a notação.

A invenção musical como a atualização de composições escritas e não escritas é uma premissa para a compreensão das culturas musicais medievais. O repertório de cantos litúrgicos encontrável nos sítios em rede provê uma série de associações possíveis para a comparação entre melodias, textos e manuscritos medievais. Analisei melodias nas seguintes fontes:

Sequentia, da IREMUS (2019)103 (Institut de récherche en musicologie), E-Codices (2019)104,

Cantus manuscript database (2018)105 – que integra bases de dados de melodias, textos e

transcrições de manuscritos de vários países da Europa, do leste europeu e da América, Gallica (2019)106– da Biblioteca Nacional da França, contendo milhares de fac-símiles de manuscritos com notação neumática –, e The Gregorian repertoire107.

Algumas destas fontes possuem elos umas com as outras e permitem o cruzamento de informações, códigos, números de manuscritos, listas de gêneros lítero-musicais, bem como transcrições melódicas que acompanham os textos cantados, além de análises morfológicas dos textos latinos. Do estudo destas fontes, pude observar que há possibilidades de se estudar comparativamente os manuscritos medievais e suas transcrições melódicas.

103http://sequentia.huma-num.fr/

104https://www.e-codices.unifr.ch/en/list/csg 105http://cantus.uwaterloo.ca/home/

106https://gallica.bnf.fr/html/und/manuscrits/livres-liturgiques?mode=desktop 107https://gregorien.info/en

84 vocálicas sem, contudo, remeter diretamente aos movimentos da voz falada, isto é, não há relação direta e necessária entre a melodia do discurso e os movimentos melódicos cantados.

Embora o uso das fórmulas recitativas seja de atestada antiguidade, de acordo com Hiley (1993, p. 49), os manuscritos contendo tais fórmulas são raros. A escassez de fórmulas recitativas com notação musical é provavelmente um indício de que sua codificação e transmissão se daria de forma aural, constituindo um saber a priori, interiorizado na prática dos cantores litúrgicos.

A fim de aprofundarmos o estudo da composição e transmissão dos cantos na Cristandade, é necessário problematizar as representações gráficas das inflexões vocálicas, em que transparece uma ligação específica entre letra e voz.

2 – Grafias da voz: primórdios da manuscritura vocal

A notação musical no Ocidente se desenvolve no contexto da cultura escritural carolíngia. Manuscrever o canto surge como um ato aliado à linguagem escrita, ao ensino da linguagem. O tratado Musica enchiriadis (HOLLADAY, 1977), do século IX, traz as seguintes definições:

Sicut vocis articulatae elementariae atque individuae partes sunt litterae, ex quibus compositae syllabae rursus componunt verba et nomina eaque perfectae orationis textum, sic canorae vocis ptongi, qui Latine dicuntur soni, origines sunt et totius musicae continentia in eorum ultimam resolutionem desinit. Ex sonorum copulatione diastemata, porro ex diastematibus concrescunt systemata; soni vero prima sunt fundamenta cantus.

Assim como as letras são os elementos primários e indivisíveis da voz articulada, e consistem de sílabas das quais surgem verbos e nomes para formar enfim o texto do discurso integral, assim também os “tons” [phtongi] – chamados soni em latim – são elementos fundamentais, e a quintessência da música pode, em última instância, ser encontrada neles. Da combinação de sons [soni] surgem intervalos [diastemata], e da combinação de intervalos se formam sistemas [systemata]. Os sons são, logo, os elementos primários da canção [cantus]109.

109 Para esta tradução, tomo como referência a tradução inglesa de Richard L. Holladay (1977, p. 62) em The

musica enchiriadis and Scholia enchiriadis: a translation and commentary. The Ohio State university, 1977: “Just as the letters are the primary and indivisible elements of articulated speech, consisting of syllables from which arise verbs and nouns ultimately forming the text of perfect discourse, so too are pitches [phthongi] which are called soni in Latin, fundamental elements, and the entire essence of music ultimately can be reduced to them. From the combination of sounds [soni] arise intervals [diastemata], and from the combination of intervals are formed systems [systemata]. Sounds are, indeed, the primary elements of song”.

85 O termo systemata, nesse contexto, refere-se aos modos, que definem distintas sequências e relações intervalares entre as alturas da voz; nos manuscritos, os modos não são expressos pelos neumas, mas subentendidos, indicados antes das composições, ou por convenção e de forma oral. A concepção esboçada no trecho de Musica enchiriadis citado acima sugere a proximidade entre a língua falada e o canto na cosmovisão medieval. É de se notar que, para os escribas medievais, e para os lectores, os sinais de pontuação representavam indicações para a performance pública dos textos. A existência de algumas semelhanças entre os sinais de pontuação para intonação textual e as primeiras formas de notação musical indica a unidade funcional de melodia e texto, concebidas como um todo orgânico, nos primórdios da escritura musical no Ocidente, e sugere a forma como os escribas e compositores medievais possivelmente compreendiam a relação da manuscritura com as performances vocais.

Segundo Treitler (2007, p. 403),

A fonte primária de impulsos para a escrita musical mana da necessidade de prover ilustrações para Ars musica, erigida nos modelos da Ars grammatica [...]. Todas as notações do Ocidente representavam, no princípio, as inflexões do discurso oral. De hábito, os símbolos de notação eram as próprias sílabas das palavras (como no tratado Musica enchiriadis) ou eram grafados em coordenadas em sincronia com as sílabas. Neste contexto, é útil notar, ainda, que os exemplares mais antigos da música prática eram cantos destinados ao sacerdote e ao diácono [...]. Das fontes que remanescem, a escrita musical parece não ter sido autônoma a princípio. Isso corresponde à concepção de canto enquanto uma forma de discurso, algo que pode ser inferido de passagens de escritos poéticos e descritivos medievais, nos quais cantar é referido como “falar”.

Quer a notação musical tenha sido inventada ou se desenvolvido a partir de contínuas práticas escriturais (discursivas) mais antigas, provavelmente a relação entre escritura e performance se inscreve em uma dinâmica histórica em que conviviam proximamente uma inflexão discursiva próxima da recitação e o canto; a voz viva, no discurso articulado, é ouvida como movimento contínuo; mas ao cantar, a voz entretece espaços tonais formados por “saltos quânticos”, isto é, passa de uma a outra nota sem necessariamente se deter nas notas intermediárias entre elas (o oposto de “portamento”). A voz pode, de igual modo, projetar sopros contínuos na forma conhecida como repercussa110, em que grupos de duas ou três notas são cantadas em uma inflexão que une os sons parciais em uma única torrente, a partir de movimentos rítmicos da faringe e do palato mole.

86 Nos sistemas de notação primevos, o termo “diastemático” vem a significar, literalmente, “intervalar”; logo, uma notação musical diastemática seria uma notação intervalar. De modo sucinto, a notação intervalar resulta na sua decifrabilidade, sem a necessidade de prévio conhecimento da melodia.

Visando compreender as práticas escriturais da voz, tendo como ponto de partida o medievo, levamos em conta que o desenho e a forma dos neumas guardam traços de relação icônica e simbólica com os movimentos melódicos. A concepção do espectro tonal (das alturas melódicas) como um arranjo que perpassa a dimensão vertical, e o seu mapeamento sobre uma superfície gráfica são arbitrários e convencionais; constituem, pois, um componente simbólico de nossos sistemas de notação tonal. Já representar uma melodia desenhando uma imagem dela é uma forma de notação no modo icônico, em que os signos guardam alguma semelhança com o movimento da voz representada. Contudo, nenhuma análise dos signos de notação musical como significantes será suficiente se não levar em conta tanto o envolvimento ativo do intérprete no processo de representação e na concepção do referente (a melodia) como um mapa para a performance.

Parte dos manuscritos remanescentes recordam a música prática, dedicada a perpetuar os cantos dos ritos litúrgicos. A principal finalidade, portanto, de manuscrever o canto, além da coleção de cânticos, era o ensino, e a tarefa principal das notações pedagógicas era demonstrar os padrões tonais e as relações entre as alturas melódicas.

À parte as divergências de representações nos manuscritos, há alguns aspectos comuns. De acordo com Treitler (2007, p. 401), todas as notações compartilham ao menos duas características: são formadas pelo princípio de direcionalidade – baseado na metáfora espacial dos movimentos da voz –, e são também signos para a inflexão da linguagem.

Sabe-se, portanto, que os neumas estão relacionados com sistemas sígnicos arcaicos relativos à performance de textos – marcas de pontuação de articulações sintático-semânticas – , e que a ascensão e o descenso, nos movimentos da voz, representativos da ideia originária de “melodia” – designada accentus pelos escritores medievais –, eram denotados por sistemas sígnicos ainda mais antigos: os acentos prosódicos. Os neumas, logo, combinam essas funções. Mas a questão que permanece é se os sistemas sígnicos supramencionados teriam significação musical em período anterior ao uso dos neumas. No atual estado da arte, só descoberta de fontes desconhecidas poderia trazer novos horizontes para o problema, ampliando o entendimento da relação entre auralidade e escritura.

87 No primitivo sistema de escrita musical litúrgica no Ocidente cristão, logo, as inflexões melódicas das sílabas são os referentes dos signos de notação. Uma outra designação para “inflexões melódicas” era “neuma”; um signo para um neuma era um signum neumarum. De acordo com Treitler (2007, p. 334), por volta do século XI, a palavra “neuma” passa a ser usada para se referir aos signos de notação propriamente. Dito de outra forma, as figuras passaram a ser vistas como notas individuais, e isto se reflete na formação dos neumas.

De acordo com Treitler (2007), as mais antigas formas de escrita musical se desenvolveram sob condições diversas; seu surgimento na Idade Média segue dois propósitos distintos: 1 – prover exemplos para tratados de música, o que solicitava a grafia das alturas melódicas; e 2 – representar os cantos dos textos, eclesiásticos em sua maioria.

Um neuma é, na definição de Saulnier (2009, p. 16), a unidade formada pelo conjunto de sons melódicos entoados sobre uma única sílaba. Esta definição assume que uma simples nota é um neuma, mas também significa que um longo melisma floreado entoado sobre uma única sílaba é também considerado um neuma.

A notação neumática surgida no século IX, destinada ao uso prático, emprega signos específicos colocados sobre a palavra para sugerir as inflexões descendentes e ascendentes da melodia, que se pressupõe já conhecida (transmissão aural).

Dentre as numerosas teorias que se atêm à origem dos neumas, algumas delas referem-se ao caráter especificamente linguístico da melodia: os símbolos neumáticos seriam derivados da notação ecfonética (declamatória) bizantina, ou dos acentos utilizados pelos gramáticos tardo-antigos (CAVALLO et al., 1994, p. 539).

A hipótese sustentada na citação tem seu contraponto em outra perspectiva colocada por Taruskin (2009), dentre outros. Segundo o autor, os neumas seriam modificações dos sinais de pontuação introduzidos na escrita na época carolíngia e, assim como eles, teriam originalmente a função de garantir uma correta leitura ou entonação do texto, sugerindo inflexões ascendentes ou descendentes na articulação do discurso.

Logo, os princípios da escritura musical oferecem elementos para o estudo da coordenação de melodia e linguagem, pois nos permitem observar que o sistema mais antigo de notação conserva traços da unidade originária entre palavra e som. Segundo Barnum (2013, p. 8),

Ainda que livros de cantos apareçam já no século IX, tais como o manuscrito

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alguma indicação de ascensão e descensão da melodia. A primeira fonte reconhecida com neumas propriamente melódicos acompanhando textos aparece no manuscrito “Laon”, por volta do ano 900. Foi apenas após o desenvolvimento das linhas da pauta, recomendação do monge beneditino Guido d’Arezzo, no século XI, que alturas específicas começam a ser realmente explicitadas nos manuscritos de cantos. isto se deu pouco antes da introdução de marcas indicativas de aumento ou acentuação das notas. Pouco mais tarde, a clave foi introduzida.

Barnum nos dá algumas referências cronológicas, de maneira resumida, das complexas transformações por que passou o instrumental de manuscrição musical, indicando que o Códice “Laon 239”, da Biblioteca de Laon (LAON, 2020; GALLICA, 2019)111, seria o mais antigo

artefato manuscrito contendo neumas “propriamente ditos”. O que o autor parece sugerir por esta expressão é que a função dos neumas no referido manuscrito é estritamente mélica, e não apenas recitativa ou declamatória.

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Figura 16 – Manuscrito “Laon 239”, f. 8. Laon Bibliothèque municipale Ms. 239 (LAON, 2020)112

Em detalhe do recorte da página, podemos ver que o manuscrito apresenta o textos para a leitura declamatória (acima e à esquerda) – com sinais sobre algumas sílabas para a pontuação e o acento/entonação – e também o texto dos cantos com uma notação neumática específica (com caracteres nas cores verde e vermelha).

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Figura 17 - Manuscrito “Laon 239”, f. 1. Laon Bibliothèque municipale Ms. 2395 (LAON, 2020)113

A notação neumática no manuscrito supra é um dos exemplares primordiais da tentativa de se fazer ver as relações intervalares, tonais, para além da simples ascensão e descenso da voz. Se comparamos as revoluções das formas de manuscrição melódica, parece haver de maneira cada vez mais pronunciada a necessidade de um registro memorial minucioso, definindo os intervalos e o desenho melódico da voz; o que provavelmente se deve à atenuação e dissipação das práticas aurais, que fazia premente a propagação da memória das canções na forma gráfica, sobretudo com a unificação política e eclesiástica, e o programa de homogeneização dos cantos empreendido sob o reinado de Carlos Magno (século IX), tendo como modelo o Rito Romano (COLNATUONO, 2016, p. 18).

Para o estudo da vocalidade é, portanto, preciso indagar qual seria a função pragmática da escritura no interior da cosmovisão medieval. O que significava a notação para os primeiros escribas e leitores de música no Ocidente? Primeiramente, o que hoje chamamos melodia era percebido, originariamente, como um atributo da linguagem falada, especificamente, da linguagem escritural, tal como era declamada nos ritos da Igreja. Isso é perceptível no hábito de se referir à performance do canto como “falar”, e como “cantar”; o tropo litúrgico intitulado

Discipulus flamma, destinado ao introito da festa de Pentecostes (no calendário litúrgico cristão

medieval), contém a seguinte sentença: Ipsi perspicus dicamus vocibus odas (“Pronunciemos a Ele claras canções com nossas vozes”). De acordo com Treitler (2007, p. 333), as análises formais mais antigas que remanesceram descrevem as divisões das melodias por meio das divisões das palavras por elas declamadas, formando assim unidades de sentido.

91 Por esse prisma, a melodia era concebida e atuava como uma projeção da prosódia114 da língua. O fenômeno melódico nuclear, nesse contexto, era o movimento da voz ao recitar uma sílaba do texto; assim compreendido como o movimento da melodia mesma. A essas inflexões melódicas, Aureliano de Réome115 denominou accentus. Segundo a interpretação de Jacques Handschin sobre as ideias do tratado Musica disciplina, de Aureliano de Réome, accentus seriam os signos de notação do canto; no entanto, o termo diz respeito à inflexão melódica de uma sílaba (TREITLER, 2007, p. 333).

O fenômeno melódico elementar, podemos dizer, é o movimento da voz ao entoar uma sílaba do texto. É a estas inflexões vocálicas que Aureliano de Réome chama accentus. No

cantus medieval, quando cada momento melódico coincide com uma sílaba única, isso é

designado “arranjo silábico da sequência”. Em suma, essa concepção mostra que as sílabas e suas inflexões eram concebidas como as unidades primárias da melodia.

Sintetizando as perspectivas desta seção, o cantor, ou o escriba ou o teórico medieval (resguardadas as distintas necessidades que mobilizavam o emprego da escritura), de modo geral, se postavam ante a escritura como um instrumento de transmissão, e não como a construção de uma obra acabada; o ponto focal da escritura era a performance ou o ensino do canto.

3 – Manuscrever a voz: tecidos melódicos de linhas, pontos e letras

Aprofundando um dos pontos levantados na seção precedente: Leo Treitler (2007, p. 364) observara que o objetivo primeiro dos signos ecfonéticos era projetar a exata pontuação do texto. As diversas analogias de forma entre os neumas e os signos de pontuação – pontos, vírgulas, que são a base da formação dos neumas – são indícios da origem ecfonética da notação

114 Massini-Cagliari (2015, p. 18), define Prosódia segundo duas abordagens distintas, conforme os autores Trask

(2004) e Xavier e Mateus (1990): no nível fonético, prosódia refere-se às “variações em altura, volume, ritmo e tempo (velocidade de emissão) durante a fala”. No nível da ortoépia, a prosódia remete à “pronúncia regular das palavras no que respeita ao acento e à quantidade (ou duração), e que constitui a base da métrica”. Transcrevo, a seguir, o trecho do trabalho de Massini-Cagliari: “Segundo Couper-Kuhlen (1986, p.1), o termo prosódia, historicamente, remonta aos gregos, que o usavam para se referir aos traços da fala que não podiam ser indicados na ortografia, especificamente tom e acento melódico, que caracterizavam e opunham palavras no Grego antigo. Dessa forma, desde os primórdios, o termo associou-se a traços melódicos da língua falada. A autora mostra que, no século II d.C., o termo prosódia sofreu uma extensão de significado, passando a ser usado como referência geral a traços que não podiam ser expressos na sucessão da cadeia segmental de vogais e consoantes. Foi essa extensão semântica que possibilitou a aplicação do termo à duração vocálica. Por fim, segundo a autora, foi através da ligação entre duração vocálica e acento que, a partir do século XV, o termo adquiriu o significado de ‘versificação’, uma de suas primeiras denotações até hoje” (MASSINI-CAGLIARI, 2015, p 19-20).

92 neumática, mas a problemática ainda não foi elucidada pelos musicólogos e carece um estudo à parte.

Os Hinos Maniqueus116 estão escritos em uma notação ecfonética, consistindo de um sistema de pontos para a lectio solemnis, introduzida na Síria por volta do ano 500 d.C., segundo Wellesz (1975, p. 121), que descreve a existência de um estrato comum às igrejas do Oriente e do Ocidente, ao descrever o canto melismático, e atribui a origem dos melismas117 às práticas cultuais sírio-palestinas. É difícil, no entanto, oferecer relações substanciais sobre se os neumas da Igreja Romana derivam da mesma fonte que os signos bizantinos simplesmente pela comparação entre os acentos ou neumas hebraicos, gregos e romanos medievais, tal como é sugerido no estudo Musica e parola nell‘Antiquità (“Música e palavra na Antiguidade”), de Leopoldo Gamberini (1962). À parte a interpretação de que a ecfonese teria passado do hebraico ao culto bizantino, e deste à tradição ocidental, não há documentos remanescentes que atestem a prática da notação ecfonética no Ocidente.

Características do canto latino que poderiam ser tidas como residuais das práticas orientais são as estruturas formulaicas estereotípicas presentes nos inícios e finais de frases melódicas, e a coordenação de cadências melódicas formulaicas com tipos fixos de cláusula nos textos. Treitler (2007) pondera, contudo, que estas associações não dão base a que se postule o uso ecfonético na Igreja Romana, haja vista as características formulaicas serem aspectos comuns das transmissões orais, da vocalidade – que é o cerne de vários de seus estudos escritos ao longo de vinte anos e reunidos na obra With voice and pen (2007).

Nasce dessas observações a percepção do papel da melodia e dos signos musicais de

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