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3.6 Conhecimento do direito e efetivação da cidadania

3.6.2. As funções da educação

As considerações acima são suficientemente neutras e abertas para serem aplicadas praticamente a qualquer sociedade antiga ou atual. Não obstante, quando se aprofunda no tema em direção aos objetivos ou funções da educação começam a evidenciar-se fraturas entre diversas concepções que têm por trás de si divergentes orientações políticas de sociedades. Se se concebe a educação em sentido amplo, é válido afirmar que é um dever do lar e da escola o de equipar as crianças com o melhor para levar uma vida útil e satisfatória na sociedade contemporânea. Grosso modo podem ser elencadas duas concepções que se bifurcam: uma defende uma educação que se conforma aos padrões vigentes e outra que de variadas maneiras pretende sair deles. A primeira delas pode ser ilustrada na opinião de Lester Smith:

"É um truísmo [...] que se a educação deve ser uma preparação para o viver ela deve ser estreitamente relacionada ao tipo de sociedade na qual a maioria dos alunos tem a expectativa de viver suas vidas. A nossa é uma sociedade altamente industrializada [...]. É necessário fornecer uma educação destinada a ajustar meninos e meninas quando cresçam para ajudar o país a manter a eminência na indústria e no comércio dos quais nosso modo de vida depende".351

A essa visão de "educação para a cidadania numa Sociedade Industrial" (caso da Inglaterra, pátria desse autor) se contrapõe um bom número de concepções voltadas 350 Cf. LESTER Lester Smith, W. O. Education. 2ª ed. Londres, Penguin, 1976. 2ª ed. Londres, Penguin,

1976, p. 211.

351 LESTER Lester Smith, W. O. Education. 2ª ed. Londres, Penguin, 1976, p. 206. Cf. WITKER, Jorge

mais para a realidade dos países não industrializados, particularmente da América Latina, na qual a educação encontra condições complexas, atrasadas, de pobreza e limitação. Elas se posicionam como críticas à pedagogia de alinhamento à sociedade industrial. Estas concepções podem ser agrupadas em um torno de umas pedagogias que Witker denomina "rupturistas", as quais reúnem em suas fileiras uma diversidade de teorizações mais ou menos radicais352. Entre elas o autor elenca a obra de Paulo Freire, o

qual concebe a educação como a prática de atos cognoscitivos, e não de meros atos de narrar ou transmitir conhecimento, daí falar-se em educação criadora, problematizadora ou libertadora. Existem naturalmente posições radicais, das quais se destacam as críticas que certos pedagogos fazem, a partir da obra de Marx, do ensino na sociedade capitalista. Vale a pena deter-se brevemente em algumas particularidades dessa abordagem, pois ela se situa no pólo oposto daquela posição que se mimetiza com a sociedade industrial e pode ser identificada com a concepção liberal de educação. Além disso, por não ser hegemônica ela não é evidente. Cabe aqui uma apertada síntese de uma das fontes de crítica a esta concepção a partir da obra de M. Sarup353.

Há uma correspondência entre as relações de produção e as relações sociais da educação. O principal papel da educação é a produção de uma força de trabalho adequada a um sistema de produção hierarquicamente controlado e estratificado em classes. As escolas são fábricas (Sarup). É por causa dessa função de produzir uma força de trabalho para a empresa capitalista que o sistema educacional deve reproduzir a

Bráulio Farias. A burocracia, o Direito e a Educação Formal: requisitos para a integração social. Dissertação de mestrado, UFSC/CPGD, 1996. p. 108-110.

desigualdade econômica e deformar o desenvolvimento da pessoa. A educação é uma parcela da reprodução da divisão capitalista do trabalho, embora as raízes da desigualdade não estejam no sistema educacional, mas na própria estrutura do capitalismo. A principal função econômica do ensino escolar é facilitar a estratificação da força de trabalho a fim de manter a divisão hierárquica existente. Na sociedade capitalista há uma divisão entre os "especialistas" e os leigos. Há uma divisão entre a concepção ou trabalho mental (o papel da administração) e a execução ou trabalho físico. Nessas e noutras divisões um elemento é colocado mais alto que o outro, o que produz hierarquias. O "especialista", o trabalhador mental, o administrador, têm proeminência. O capitalismo promove e estimula essa segmentação. Há uma fragmentação causada por antagonismos raciais, sexuais e sócio-econômicos. O sistema educacional estimula e legitima a desigualdade econômica porque instala um mecanismo meritocrático para destinar os indivíduos a posições econômicas desiguais. Ele não exerce uma função igualitária, mas uma função integradora voltada para a reprodução de relações econômicas, pois produz uma força de trabalho cujas capacidades são ditadas substancialmente pelas necessidades de emprego na economia capitalista. A educação reproduz a desigualdade e justifica os privilégios ao atribuir a pobreza ao fracasso pessoal. É possível modificar todo esse quadro. Deve-se lutar por práticas educacionais igualitárias que reduzam o poder das escolas de fragmentar a força de trabalho. O problema só será superado por uma alternativa na qual os distintos objetivos dos diferentes grupos sejam atendidos simultaneamente. A luta para libertar a educação dos 353Cf. SARUP, Madan. Marxismo e educação: abordagem fenomenológica e marxista da educação. Rio

seus condicionamentos e a luta para democratizar a vida econômica e social estão ligadas, e deverão ser travadas mediante a atividade coordenada das classes. O autor referido concorda que a preparação da mudança do sistema econômico por meio da educação pode envolver a utilização das instituições capitalistas existentes. 354

Independente do modelo que se adote, tradicional ou mudancista, é sempre necessário redefinir constantemente o que se quer da escola, enquanto instituição formativa da cidadania. A partir disso se pode estabelecer o que é fundamental que a escola ensine para o desenvolvimento da cultura e o aprendizado de técnicas de trabalho que promovam em conjunto o desenvolvimento individual e social. Neste ponto é decisiva a educação política.355 Ela deve envolver todas as atividades da sociedade civil, para assegurar os objetivos da vida social. Se uma sociedade é democrática, é desejável que os seus cidadãos sejam educados para o exercício amplo da democracia. Esta vem a resultar da participação de todo o povo nos assuntos de interesse da sociedade. Ela se dá mediante a intervenção pessoal dos integrantes do povo ou através de representantes eleitos de um partido político. Mas a educação política é mais que um evento: é um processo. Não deve se limitar ao voto ocasional, pois se ele é feito sem uma imprescindível informação prévia seu valor é diminuto. A educação política se dá através da prática constante da liberdade, do crescimento da consciência dos direitos das pessoas, da fiscalização por elas dos atos dos governos e órgãos públicos. 356

de Janeiro, Guanabara, 1986. 191 p.

354Cf. SARUP, Madan. Marxismo e educação: abordagem fenomenológica e marxista da educação, 191

p.

355Cf. RODRIGUES, Neidson. Lições do príncipe e outras lições. São Paulo: Cortez, 1995. São Paulo:

Cortez, 1995, p. 63.

Na sociedade moderna os homens se distinguem em duas categorias diante do conhecimento organizado: os que sabem e os que não sabem, ou como foi dito antes: os especialistas e os leigos. Os primeiros são os que privilegiadamente opinam, agem, tomam decisões, dirigem e interferem sobre a totalidade da vida social, nos campos da cultura, do trabalho, da vida política, da ordem jurídica. É mesmo um lugar-comum: o saber é instrumento do poder. Embora ele não crie o poder, facilita-lhe o seu exercício, preparando os indivíduos para usá-lo com mais eficiência. Assim o conhecimento pode ser considerado uma propriedade privada e um "capital" cultural.357

Aqueles que detêm o controle da educação manipulam o conhecimento a ser transmitido aos outros, estabelecem o que eles devem e podem saber, e sobretudo o que a maioria deve ignorar. Então o poder nas várias instâncias da sociedade acaba sendo legitimado pelo que os indivíduos sabem e pelo que eles ignoram. "A educação escolar [...] longe de servir à equalização de oportunidades ou de democratização de competências para a vida social e política, é confinada ao estreito círculo dos interesses dos grupos que controlam a totalidade da vida social, transformando-a em um poderoso instrumento de diferenciação e de legitimação das diferenças".358 Pode-se discutir se é da natureza da educação o produzir essa diferenciação, mas é inegável que ela é efetivamente usada nesse sentido. Assim tem sido na história. Na Grécia e em Roma a educação era ministrada por intelectuais independentes vinculados organicamente aos círculos hegemônicos, os quais detinham a cultura, a ciência e a filosofia. Na idade média a educação foi assumida pela igreja e serviu para a formação do intelectual

comprometido com a verdade cristã.359 O mesmo vale para o capitalismo monopolista do século XX: a escola conservou os seus valores sociais e culturais.

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