• Nenhum resultado encontrado

Para Canotilho236 quatro são as funções dos direitos fundamentais: a função de defesa ou de liberdade; a função de prestação social; a função de proteção perante terceiros e a função de não discriminação.

A função de defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado e outros esquemas políticos coativos assume duas perspectivas: uma no plano jurídico-objetivo, no qual constituem eles normas de competência negativa para os poderes públicos, proibindo a ingerência destes na esfera jurídica individual; e outra num plano jurídico-subjetivo, no qual implicam eles no poder de exercer positivamente direitos fundamentais (liberdades positivas) e de exigir omissões dos poderes públicos, a fim de evitar agressões lesivas por parte dos mesmos (liberdade negativa).

Exemplifica o autor lusitano com o artigo 37º. da Constituição da República Portuguesa que garante: a) subjetivamente o direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o que consubstancia uma liberdade positiva; e b) o direito de a liberdade de expressão e informação ser feita sem impedimentos ou discriminações por parte dos poderes públicos, o que constitui uma liberdade negativa. Além disso, por força do referido dispositivo constitucional, impõe-se objetivamente aos poderes públicos a proibição de qualquer tipo ou forma de censura, conforme o art. 37º/2 da mencionada Constituição Portuguesa.

A função de prestação social significa o direito de o particular obter algo através do Estado, como saúde, educação, segurança social. Diz ele que tal função anda associada a três núcleos problemáticos dos direitos sociais, econômicos e culturais. O primeiro deles consiste em saber se os particulares podem fazer derivar diretamente das normas constitucionais pretensões prestacionais: por exemplo,

236 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.

exigir, com base na norma consagradora do direito à habitação, uma casa. O segundo diz respeito ao direito de exigir uma atuação legislativa concretizadora das normas constitucionais, sob pena de omissão inconstitucional e da configuração do direito do particular de exigir e obter a participação igual nas prestações criadas pelo legislador. Finalmente o terceiro núcleo diz respeito ao problema de saber se as normas consagradoras de direitos fundamentais sociais têm uma dimensão objetiva juridicamente vinculativa dos poderes públicos no sentido de obrigarem estes, independentemente de direitos subjetivos do indivíduo, a políticas públicas ativas conducentes à criação de instituições (ex: hospitais, escolas), serviços (ex: serviços de segurança social) e fornecimento de prestações (ex: rendimento mínimo, subsídio de desemprego, bolsas de estudo, habitações econômicas).

Em relação aos dois primeiros problemas entende Canotilho237 ser discutível a resposta. No entanto, em relação à última questão, sustenta, em relação ao direito português, ser líquido que as normas consagradoras de direitos sociais, econômicos e culturais da Constituição Portuguesa individualizam e impõem ao Estado políticas públicas socialmente ativas.

Parece-nos que tal entendimento deve ser estendido também ao ordenamento jurídico brasileiro, onde a implementação das políticas públicas destinadas à concretização da grande maioria dos direitos sociais, tais como habitação, saúde, educação etc., ainda se defrontam com grandes empecilhos e dificuldades.

Em relação à função de prestação social dos direitos fundamentais, também já se pronunciou o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento, aos 22 de novembro de 2005, do agravo regimental no recurso extraordinário nº 410.715-5 São Paulo, em que foi relator o Min. Celso de Mello, que, em seu voto, destaca o caráter de fundamentalidade de que se acha impregnado o direito à educação, autorizando a adoção pelo Judiciário de provimentos jurisdicionais que viabilizem a concreção dessa prerrogativa constitucional, mediante a utilização, até mesmo, quando for o caso, de medidas extraordinárias que se destinem a tornar efetivo o atendimento dos direitos prestacionais que congregam os valores inerentes à dignidade da pessoa humana, como é o caso do direito à educação fundamental. Assim vem redigida a sua ementa:

237 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p.

EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE – ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA – EDUCAÇÃO INFANTIL – DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) – COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO – DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO.

- A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e acesso à pré-escola (CF, arg. 208, IV).

- Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das “crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

- A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.

- Os Municípios – que atuarão prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) – não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social.

- Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão – por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório – mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à “reserva do possível.” Doutrina.

Também a função de proteção dos titulares de direitos fundamentais perante terceiros impõe ao Estado o dever de proteger, por exemplo, o direito à vida perante eventuais agressões de outros indivíduos. Aqui, diferentemente do que acontece com a função de prestação, a relação não se estabelece entre o titular do direito fundamental e o Estado, mas entre o indivíduo e outros indivíduos.

Esta função de proteção perante terceiros obriga também o Estado a concretizar as normas reguladoras das relações jurídico-civis de forma a assegurar nestas relações a observância dos direitos fundamentais. Como exemplo cita ainda Canotilho238 a regulação do casamento de forma a assegurar a igualdade entre os cônjuges.

Esta função de proteção perante terceiros também se destaca no julgamento, em 01/09/2005, da medida cautelar em ação direta de inconstitucionalidade nº. 3.540-1 – Distrito Federal, em que foi relator o Min. Celso de Mello. Nessa ocasião, entendeu o Plenário do Supremo Tribunal Federal que a atividade econômica não pode ser exercida em desarmonia com os princípios destinados a tornar efetiva a proteção ao meio ambiente, reconhecendo o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental de terceira geração ou de novíssima dimensão que consagra o postulado da solidariedade. Destaca o relator Min. Celso Mello, em seu voto, a função de proteção reservada ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o qual tem o sentido de preservação da integridade do meio ambiente em benefício das presentes e futuras gerações. Assim enuncia a respectiva ementa:

EMENTA: ...

O princípio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postulado, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não comprometa nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações.

Finalmente a função de não discriminação dos direitos fundamentais tem sido muito acentuada pela doutrina, especialmente a norte-americana, que deduz essa função primária e básica dos direitos fundamentais do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade específicos consagrados na Constituição, de modo a assegurar que o Estado trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais. Esta função se aplica a todos os direitos. Abrange tanto os direitos, liberdades e garantias pessoais (ex: não discriminação em virtude de religião), como

também os direitos de participação política (ex: direito de acesso aos cargos públicos), os direitos dos trabalhadores (ex: direito ao emprego e à formação profissional), estendendo-se aos direitos a prestações positivas (ex: prestações relativas à educação, à saúde, à habitação). É com base nessa função não discriminatória dos direitos fundamentais que se discute o problema das quotas (ex: parlamento paritário de homens e mulheres) e o problema das afirmative actions tendentes a compensar a desigualdade de oportunidades (ex: quotas de deficientes e pardos e negros no Brasil).

Em relação à função de não discriminação dos direitos fundamentais, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que o preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Reconheceu a Suprema Corte a prevalência dos princípios da dignidade humana e da igualdade jurídica, conforme trecho da ementa do acórdão relativo ao Habeas Corpus 82.424-2 Rio Grande do Sul, em que foi relator originário o Min. Moreira Alves e relator do acórdão o Min. Maurício Corrêa, tendo sido julgado aos 17 de setembro de 2003. Em seu voto, diz o Min. Maurício Corrêa:

70. José Afonso da Silva aduz que o texto constitucional que “proíbe o preconceito de origem, cor e ração e condena discriminações com base nesses fatores, consubstancia-se, antes de tudo, um repúdio à barbárie do tipo nazista que vitimara milhares de pessoas, e consagra a condenação do apartheid”. Finaliza dizendo que “o rascimo indica teorias e comportamentos destinados a realizar a supremacia de uma raça. O preconceito e a discriminação são conseqüências da teoria”.

71. Não se pode perder de vista, na busca da verdadeira acepção do termo, segundo uma visualização harmônica da Carta da República, dois dogmas fundamentais inerentes ao verdadeiro Estado de Direito Democrático, que são exatamente a cidadania e a dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º., II e III). Pretende-se, com eles, que todos os seres humanos, sem distinção de qualquer natureza, tenham os mesmos direitos, para que de fato se cumpra na sua inteireza o “direito de ter direitos”.

...

73. Parece-me evidente, por outra via, que o combate ao racismo tem clara inspiração no princípio da igualdade, que por sua vez se confunde com o reconhecimento mundial dos direitos do homem. A Constituição Brasileira o reitera em várias passagens, não sem razão, deixando consignada sua condição de preceito fundamental (CF, artigos 1º, II; 3º, IV; 4º, II e VIII; 5º, caput, I, XLI).

74. A efetiva aplicação desses postulados, e a conseqüente defesa dos direitos humanos, deve ser buscada obstinada e intransigentemente, sob pena de ruir-se a própria democracia, sendo o combate ao racismo, em seu 409.

sentido amplo, fator decisivo para a consecução desse objetivo fundamental.

Há, portanto, uma evidente superposição e correspondência entre as dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais com as funções a eles atribuídas, podendo estas ser consideradas um mero desdobramento daquelas ou mesmo uma nova perspectiva da questão.

Para Costa239 os direitos fundamentais têm ainda uma função

essencialmente democrática para o efeito de preservação e realização do princípio democrático, impondo que o exercício do poder se dê de forma que garanta a participação popular, no que se configura, mais uma vez, a importante função de proteção exercida por ditos direitos.

Portanto, vê-se que os direitos fundamentais exercem, no Estado Democrático de Direito, a importante função de impedir que o poder político possa prevalecer sobre o Direito, a fim de que o valor maior da justiça se concretize materialmente na sociedade. No constitucionalismo contemporâneo os direitos fundamentais exercem a função primordial de embasarem axiologicamente a interpretação constitucional. Por isso que o respeito aos direitos fundamentais legitima o exercício das funções estatais, dentre as quais se destaca a jurisdição constitucional.

No tocante ainda à função de proteção dos direitos fundamentais, cabe fazer-se menção à argüição de descumprimento de preceito fundamental, referida pelo parágrafo 1º. do artigo 102 da Constituição Federal e regulamentada pela Lei nº. 9.882, de 3 de dezembro de 1999, e que foi idealizada pelo constituinte originário como mecanismo de defesa dos direitos fundamentais.

Lembra Nobre Júnior240, contudo, que, fugindo inteiramente à concepção aventada à época da promulgação da Constituição de 1988, a referida Lei 9.882/99 desviou–se do propósito de defesa dos direitos fundamentais, que deveria informar o instituto em questão, para conferir-lhe a natureza de simples mecanismo de defesa objetiva da Constituição, impedindo, por essa forma, que o Supremo Tribunal Federal pudesse exercer, pela via direta, o controle de constitucionalidade daquilo

239 COSTA, Maria Isabel Pereira da. Jurisdição constitucional no estado democrático de direito. Porto Alegre:

Síntese, 2003. p. 114.

240 NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. Direitos fundamentais e argüição de descumprimento de preceito

que não poderia ser impugnado pela ação direta de inconstitucionalidade e pela ação declaratória de constitucionalidade.

Para Nobre Júnior241 a tutela dos direitos fundamentais constituiu, irretorquivelmente, o objetivo do art. 102, § 1º., da Lei Fundamental, à semelhança do recurso de amparo espanhol e da Verfassungsbeschwerde germânica. Reconhece ainda Nobre Júnior242 não se poder negar que a atribuição ao Supremo Tribunal Federal da competência originária para preservar ou remediar atentado a direito fundamental dos indivíduos, decorrente de ação ou omissão estatal, implicaria em uma sobrecarga de feitos. Aduz, contudo, que o acúmulo de processos que vem sobrecarregando o Supremo Tribunal Federal não decorre do exercício de atribuições inerentes à guarda da Constituição, mas sim da sua condições de órgão de última instância na organização judiciária brasileira, já que são basicamente os recursos extraordinários e os habeas corpus os processos que compõem a grande massa dos feitos que assoberbam a Suprema Corte.

A solução estaria, segundo Nobre Júnior243, na transformação do Supremo Tribunal Federal em corte constitucional, observado o modelo concentrado dos países continentais europeus, com a transferência de grande parte da sua competência para o Superior Tribunal de Justiça.

Com a adoção de tal modelo seria afastada a possibilidade de a argüição de descumprimento de preceito fundamental implicar na inviabilidade funcional da Corte Suprema brasileira, possibilitando ao legislador delinear a disciplina adequada de tal ação à sua função precípua de defesa dos direitos fundamentais, ao invés da utilização da mesma para a ampliação da fiscalização abstrata e concentrada da constitucionalidade, que já constitui objeto das ações direta de inconstitucionalidade e declaratória de constitucionalidade

241 Ibid., p. 97 242 Ibid., p. 100.

6. A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS